Um dia do mês de maio de 1842, numa das últimas janelas de uma casa, que forma a esquina da rua Hautefeuille e da rua Serpente, estava encostado um moço pensativo e melancólico.

Era — para usar da expressão da Torre de Nesle — uma bela cabeça que mais de uma rapariga teria visto passar em seus sonhos. Não uma bela cabeça, à maneira dos keepsakes mas a pálida e inteligente fisionomia que se encontra muitas vezes nas obras de Lemud e em seu mestre Volfrand, além de outras; bem o sabeis, leitor, este ouvinte atraente e grave do primeiro plano.

Percebia-se a vida da alma através do invólucro do corpo; e depois de contemplar aquele rosto que revelava o trabalho interior, não podia haver engano, e era força exclamar: — É um artista ou um poeta.

Henrique d'Auberseint era com efeito uma e outra coisa. Poeta, ele o era, como todas as criaturas felizmente dotadas e maravilhosamente organizadas para o sofrimento. Porquanto a alma do homem inteligente, o coração do poeta, do artista ou do filósofo, é um alaúde que vibra harmonioso e sonoro ao sopro de todas as paixões humanas, grandes, fortes e belas.

Henrique era, pois, poeta. Mas sobretudo era artista. Há nos cais, nas exposições de amostras de certos comerciantes, essas fitas que não estão seladas com um nome, mas que são obras-primas. Uma obra-prima, assinada com um nome obscuro, será acaso uma obra-prima? Obscuro — quanto nos temos votado a este rude trabalho, orvalhado de suor do sangue, que se chama vida de artista — obscuro quer dizer pobre. Henrique era pobre. Ah! Implacável e madrasta natureza, bem faz aquele que te morde no seio para forçar-te a alimentá-la! É andar — há de ser sempre feliz...

Henrique foi perturbado em seu cismar por um rumor de passos precipitados que se fez ouvir na escada. A porta da mansarda abriu-se bruscamente e entrou uma mulher.

— Bagatela! — exclamou o artista levantando-se e indo ao seu encontro.

— Onde está ele? — pronunciou ela com uma voz entrecortada pela fadiga, tomando a mão do mancebo e voltando para ele seus olhos obscurecidos pelas lágrimas.

Henrique não compreendeu ao princípio esta pergunta proferida de envolta com um soluço aos seus ouvidos inquietos, e durante alguns minutos ele contemplou Bagatela com admiração.

O semblante da moça radiava neste momento com uma beleza sobrenatural que não lhe era comum talvez. As grandes dores desfiguram, assim como as grandes alegrias.

Ela era bela, como uma bela virgem — com a elegância de maneiras e fineza de trato de uma parisiense. Era bela, muito bela!

— Mas o que acontece? pergunta Henrique com uma ansiedade, que crescia de minuto em minuto.

— Mas desapareceu! Há dois dias que não se tem notícias dele! — respondeu Bagatela com um ar sombrio. E se meus pressentimentos não se enganam, — ajuntou ela com um novo soluço e novas lágrimas — morreu!

Henrique soltou um grito.

— Tomai, — continuou a moça apresentando-lhe uma carta — lede depressa... eu vo-lo conjuro... Lede depressa... Acabam de ma entregar e é para vós... Reconheci a letra do nosso amigo... Estive a ponto de abri-la... Vede... Lede, Henrique, lede em nome do céu!

Henrique, trêmulo, com os olhos perturbados, abriu convulsivamente a carta que a moça lhe apresentara, e leu o que segue:

É um morto que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com a tinta negra do Estígio lago, e com uma pena arrancada à asa de uma qualquer ave noturna ou maligna, vampiro ou o que quiseres.

Não grites, não lamentes, não chores. As lamentações ensurdecem, e as lágrimas, vês-tu, são uma parvoíce... O fato está já consumado, e não é mais possível uma volta:

— Quem volta de tão longe?...

Faço-te a minha derradeira confissão, com certos conselhos e certas recomendações, que te peço tenhas sempre em vista.

Tive uma mãe, como qualquer porteiro, mas, conquanto saibamos sempre que procedemos de alguém — segundo a opinião de Brid'oison, estou, todavia, embaraçadíssimo quanto a afirmar de quem sou filho. É imoral, mas é verdade. Quanto ao meu nome — nada sei de legal — pela ausência de qualquer declaração de meus autores nos registros da municipalidade. Mas eu tenho um, fantasiado, todo ao acaso, entre os nomes calendários: é — Máximo — nem mais, nem menos.

Máximo — fui criado; Máximo — cresci; Máximo — vou desta para a outra vida. Tu sabes, além disso, que entre a rapaziada chamava-me Max, por enquanto a vida é tão curta... e inútil é alongá-la com três letras realmente inúteis.

Isto, quanto ao meu nascimento e quanto ao meu passado — um pouco semelhante às origens do Nilo. Não sabendo donde vinha, compreendes bem que eu nunca saberia onde ia. Um bastão tem sempre duas pontas; — um começo e um fim. Por muito tempo embalei-me na esperança de ter um fim e assemelhar-me, ao menos por aqui a um bastão. Eu acreditaria de boa vontade na eternidade das rosas, mas sempre me repugnou acreditar na eternidade da eternidade...

Se eu não conheci os meus autores — em desforra conheci a vida — triste conhecimento, entre parênteses. Tiveste muita vez um espécimen de meu caráter fantástico e razoável. Eu era ao mesmo tempo o mais jovial rapaz, e o mais aborrecido indivíduo que se possa imaginar. Pamérgio forrado de Trenmor. Muitas vezes me levantava com projetos fantásticos que, postos em execução teriam feito arrebentar de riso a venerável estátua do Hospital. Muitas vezes entrava para casa com o semblante pálido, enrugado — e envelhecido horrivelmente. Lançava-me à cama, enchia de fumo o cachimbo, fumava-o e atirava-o pela janela com uma raiva surda — sem respeito à sua cor poética de bistre. Nesses dias eu seria capaz de devorar um policial — com as bandeirolas, mas sem as botas, entretanto.

Não repares nos arabescos do meu estilo; estes gracejos são um vestido de arlequim — o coração palpita embaixo. Hoje, ao escrever-te, sinto-me disposto a rir e rio-me. Vale isso mais, acredita-me, do que atirar poeira ao céu, como os Gracos. É meia-noite, acabo de encontrar alguns frangos éticos, fugindo de mim nas ruelas sombrias da Cité. Deu-me isso uma alegria! Por quê? Ah! sim, porque! sempre este ponto de interrogação!

Abro-te a porta da alcova dos meus sentimentos; não é a primeira vez, mas a última. Passava uma vida de tédio neste planeta, e além disso tenho um instinto viajor que me impelia sempre para as estepes infinitas do incógnito. Corro para lá, em teus braços, grande X., corro para lá, abre-os bastante!...

Estou, pois, a esta hora em marcha para a famosa viagem ao campo de que falam alguns. O abade de Saint-Pierre. Eu mesmo me forneci um passaporte inglês de Wester; não encontro, embora, alfândegas nas fronteiras da vida!... Meti audaciosamente a mão na urna do destino — e antes da minha hora — subtraí — o meu número... Eis tudo!

Agora falemos um pouco de ti — e dela, dela! dela!... Prometi-te um conselho, vou dar-to. Tu tens talento, Henrique, um grande talento: confirma-o perante a multidão, ela não achará dificuldades em acreditá-lo. Foste talhado por um Deus de Homero; em três passos atingirás ao termo, mas é preciso dar o primeiro; mãos à obra, os outros dois é apenas uma pernada.

Isto quanto ao conselho. Agora aos legados. Faço-te meu herdeiro universal. Tudo o que existe em minha oficina é teu. Sabes o que valem as telas de um artista morto? As minhas te ajudarão a viver. Vende-as!

Leva à Bagatela aquela pintura que eu fiz ligeiramente um dia em sua casa... Mostra-lhe esta carta, consola-a, ama-a, protege-a; responder-me-ás por ela.

Bagatela é a escolhida de meu coração... Um dia, em que ela estava triste e eu alegre, dei-lhe este nome de Bagatela que prevaleceu sobre o seu de — Gabriela. Peço-lhe que o conserve, é minha vontade; fui eu que lho deu! Tu e ela foram para mim o mundo. Ela era o amor — tu, eras a amizade. Por que me não bastavam estas duas felicidades? Por quê? ainda este maldito ponto de interrogação...

Assim, chego à recomendação que te queria fazer: — é grave, é um morto que ta faz, Henrique. Cumpre obedecer religiosamente. Que Bagatela seja tua irmã, Henrique; sê o seu protetor, seu amigo, seu pai — mas, nada mais. Pensai em mim algumas vezes e entretanto sede ambos fiéis à minha memória

Dixi — Adeus, Henrique, adeus, Bagatela, adeus ...

Máximo — vulgo o Velho!

“Todo como o velho Palma !...”