Amanhecera um belo dia de sol, quente, luminoso, de uma trans­parência fina de cristal lavado.

Logo pela madrugadinha, antes de apagar-se a última estrela, a corveta “acendera fogos”, e demandava o porto, em árvore seca, impulsionada pela sua velha máquina de sistema antigo — um estafermo quase imprestável, porejando vapor, abrindo-se toda em desconjuntamentos de maquinismo secular.

Enfim se chegava!

Agora cada um tratava de si, de sua roupa, do que trouxera da longa viagem ao sul, dessa viagem maldita que parecia não acabar nunca.

Lá estava bem defronte, por bombordo, o Pão d’Açúcar, talhado a pique, sombrio, íngreme, batido pelas ondas, guardando a entrada; e mais longe, para o sul — termo final de uma espécie de cordilheira primitiva e bronca — o cocuruto da Gávea, cinzento, dominando o mar...

— E aquela ilha com ponto branco? perguntou Aleixo curiosamente.

Estava ao lado de Bom-Crioulo, contemplando, embevecido, a costa fluminense.

— Aquela ilha é a Rasa, explicou o negro. Não vês o farol, aquilo branco?...

E começou a descrever o pedaço do litoral que se ia desdobran­do à luz, alcantilado e fulgurante, como essas terras lendárias de tamoios e caramurus... Aquela faixa de areia, muito estreita, do outro lado (e estendia o braço por cima do ombro do pequeno), beirando a água, chamava-se a Marambaia. Lá adiante, uma montanha quase apagada, era o cabo Frio...

E foi indicando, um a um, com exclamações de patriotismno, os acidentes da entrada, os edifícios: as fortalezas de S. João no alto, e de Santa Cruz à beira-mar, olhando-se, com a sua artilharia muda; a praia Vermelha, entre morros; o hospício; Botafogo...

— Tudo aquilo, dizia ele abarcando, com um gesto largo, morros e casas, tudo aquilo é a cidade de Niterói, ouviste falar?

Não...

— Pois é ali.

Aleixo, de resto, não experimentava grande surpresa. Entre montanhas havia ele nascido e perto do mar. O entusiasmo de Bom-Crioulo nem sequer o abalava: fazia outra idéia do Rio de Janeiro!

— Mas isto ainda não é a cidade, meu tolo, explicava o negro. Tu não viste nada por enquanto...

A corveta aproximava-se de Villegaignon...

Bom-Crioulo mal teve tempo de dizer ao grumete: — “Foi ali que eu comecei...” E desapareceu entre a chusma da marinhagem

Era quase meio-dia. Escaleres de guerra vinham em direção da fortaleza, cortando a água numa carreira macia de out-riggers. Ouvia- se a pancada igual dos remos acompanhando a voga.

Ao redor da barca de banhos pairavam botes de comércio. Lanchas apitavam cruzando a baía. Navios de guerra imóveis, aproados à barra, faziam sinais, içando e arriando bandeiras. Entre esses havia um grande couraçado ao lume d’água, raso, chato e bojudo, com uma flâmula azul no mastro grande.

A corveta diminuiu a marcha, seguindo vagarosa, e dominando, com o seu porte de nau antiga e legendária, o conjunto de embarcações que por ali estacionavam.

Pouco adiante de Villegaignon fez uma parada imperceptível, tocando atrás: ouviu-se um grande baque n’água e logo um rumor de amarras que se desenrolam, que se precipitam....

— Ora, graças! exclamaram algumas vozes ao mesmo tempo, como se houvessem combinado fazer coro de alegria.

Entretanto, Bom-Crioulo começava a sentir uns longes de tristeza n’alma, coisa que raríssimas vezes lhe acontecia. Lembrava-se do mar alto, da primeira vez que vira o Aleixo, da vida nova em que ia entrar, preocupando-o sobretudo a amizade do grumete, o futuro dessa afeição nascida em viagem e ameaçada agora pelas conveniências do serviço militar. Em menos de vinte e quatro horas Aleixo podia ser transferido para outro navio — ele mesmo, Bom-Crioulo, quem sabe?, talvez não continuasse na corveta...

Instintivamente seu olhar procurava o pequeno, acendia-se num desejo sôfrego de vê-lo sempre, sempre, ali perto, vivendo a mesma vida de obediência e de trabalho, crescendo a seu lado como um irmão querido e inseparável.

Por outro lado estava tranqüilo porque a maior prova de amizade Aleixo tinha lhe dado a um simples aceno, a um simples olhar. Onde quer que estivessem haviam de se lembrar daquela noite fria dormida sob o mesmo lençol na proa da corveta, abraçados, como um casal de noivos em plena luxúria da primeira coabitação...

Ao pensar nisso Bom-Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um delírio invencível de gozo pederasta... Agora com­preendia nitidamente que só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurara nas mulheres.

Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em sua vida tivera a lembrança de perscrutar suas tendências em matéria de sexualidade. As mulheres o desarmavam para os combates do amor, é certo, mas também não concebia, por forma alguma, esse comércio grosseiro entre indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria!, o fato passava-se agora consigo próprio, sem premeditação, inesperada­mente. E o mais interessante é que “aquilo” ameaçava ir longe, para mal de seus pecados... Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a “natureza” impunha-lhe esse castigo...

Afinal de contas era homem, tinha suas necessidades, como qualquer outro: fizera muito em conservar-se virgem té aos trinta anos, passando vergonhas que ninguém acreditava, sendo muitas vezes obrigado a cometer excessos que os médicos proíbem. De qualquer modo estava justificado perante sua consciência, tanto mais quanto havia exemplos ali mesmo a bordo, para não falar em certo oficial de quem se diziam coisas medonhas no tocante à vida particular. Se os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para resistir: a natureza pode mais que a vontade humana....

Começou a faina de arriar escaleres, uma lufa-lufa barulhenta e ensurdecedora, um incessante rumor de cabos e moitões, de vozes e apitos, confundindo-se em algaravia de mercado público, ressoando clamorosamente no silêncio da baía. Em torno da corveta agitava-se uma multidão de escaleres e lanchas conduzindo oficiais de marinha e senhoras, que acenavam para bordo — aqueles em uniforme de “visita”, espada e luva branca, afetando autoridade, aprumando-se no paineiro com essa desenvoltura natural dos homens do mar; aquelas em toilettes de verão, muito rubras do sol.

Houve um momento de geral precipitação, em que todos procuravam subir a escadinha do portaló, investindo a um tempo, quando a visita sanitária pôs-se ao largo. — Atraca daí! Gritava uma voz. — Larga a canoa! Bradava outra. — Ciando a ré! — Abre de proa! — Rema avante!

Ninguém se compreendia no tumulto.

Daí a pouco, porém, foi se restabelecendo a ordem, todo aquele alvoroço desapareceu e ouvia-se apenas a voz dos marinheiros conversando. Foi então que atracou um escaler com a bandeira inglesa, e um oficial ruivo, de suíças, muito parecido com o rei Guilherme, da Alemanha. Era o comandante do Ironside, cruzador britânico.

Austero, hermeticamente abotoado, subiu e desceu logo, sem se voltar, pisando forte nos degraus da escadinha.

Bom-Crioulo, que se debruçara na amurada, assim que o viu saltar no escaler — Inglês bruto! murmurou entre dentes, e ficou-se, com sua a indignação, olhando a água calma... Ele ali estava, enfim, na baía do Rio de Janeiro, depois de uma ausência de seis longos meses! Precisava ir à terra naquele mesmo dia para arranjar o negócio do quarto na rua da Misericórdia, antes que o pequeno se arrependesse; tinha umas compras a fazer...

Mas, havia ordem para não desembarcar, e Bom-Crioulo, como toda a guarnição, passou a tarde numa sensaboria, cabeceando de fadiga e sono, ocupado em pequenos trabalhos de asseio e manobras rudimentares. — Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando não era logo metido em ferros...... Ah! vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda parte... E cha­mava-se a isso servir à pátria!

Anoiteceu. Noite estrelada, cheia de silêncio, profundamente calma e reparadora. A guarnição da corveta dormia sem abalos um sono tranqüilo e delicioso de oito horas, ao ar livre, sobre o convés desbastado.

Bom-Crioulo nem sequer pensou em Aleixo: estava incapaz de trocar palavra, sucumbido pela canseira, o corpo mole reclamando conforto, o espírito parado; todo ele sem ânimo para coisa alguma. Trabalhara brutalmente; não havia resistir à fadiga. Momentos há em que os próprios animais caem extenuados... Deitou-se a um canto, longe de todos, e adormeceu imediatamente num sono cataléptico. Ao primeiro toque d’alvorada espreguiçou-se, abrindo os olhos com surpresa, e sentiu-se alagado. — Oh!... — Passou a mão no lugar úmi­do, tateando, e verificou, cheio de indignação, cheio de tédio, com um gesto de náusea, a irreparável perda que sofrera inconscientemente durante o sono — um verdadeiro esgotamento de líquido seminal, de forças procriadoras, de vida, enfim, que “aquilo” era sangue transfor­mado em matéria! Se ao menos tivesse gozado... Mas não sentira nada, absolutamente nada, mesmo em sonho! Dormira toda a noite, como um porco, e o resultado ali se achava no lençol — quase um rio de goma prolífica!

E triste, desesperado, maldizendo a natureza na linguagem torpe dos galés, ergueu-se e foi juntando a roupa de cama bruscamente, atabalhoadamente, como se alguém houvesse concorrido para a sua “desgraça”.

Entrou pelo dia com ares de quem não quer se incomodar, o semblante carregado numa sombria expressão de aborrecimento, falando pouco e em tom grosseiro, ameaçando: — que o deixassem, que o deixassem, não queria brincadeira; ainda rachava a cabeça dum!

Os outros pediam-lhe desculpa, humilhavam-se, adulavam-no, porque sabiam que “o negro era meio doido”.

A tarde, porém, esse estado nervoso amainou, graças ao Aleixo que lhe fora perguntar, com certo interesse e com uma meiguice na voz de adolescente, se ele, Bom-Crioulo, estava disposto a ir a terra.

— Por que não? Já estava concedida a licença.

— Ah! pensei que tinha se esquecido.

— Qual esqueci! Pois eu não te disse que hoje mesmo havíamos de arranjar o nosso ninho?

E muito carinhoso:

— Espero em Deus estrear hoje...

Faltava, entretanto, a licença do grumete. Aleixo não se animava a pedir que o deixassem ir a terra, com receio de uma negativa. Bom-Crioulo encorajou-o. — Não fosse tolo! Isso a gente dizia que voltava logo, que era um instante, ou então forjava qualquer história...

— Dize ao imediato que tens um padrinho rico em terra, uma coisa assim...

Aleixo criou ânimo, e daí a pouco voltava muito satisfeito, risonho, dando pinchos.

— Não havia nada como a gente ser um menino bonito! Até os oficiais gostavam...

Bom-Crioulo é que não gostou da pilhéria. Ferrou o olhar no pequeno — hum! hum! — como para o fulminar. Mas o grumete corrigiu prontamente: — Brincadeira, menino, brincadeira... Pois não se podia brincar?

— Isso não são brinquedos, repreendeu o negro. Eu quando gosto de uma pessoa gosto mesmo e acabou-se! Já lhe disse que ande muito direitinho...

Vestiram-se e abalaram no escaler das cinco horas, depois da ceia.

— Vamos primeiro tomar um golezinho de jeribita, disse Bom-Crioulo ao saltar no cais Pharoux. Aqui mesmo no quiosque... E preciso esquentar os rins.

— Eu não quero.

— Hás de tomar nem que seja um copo de maduro.

— Maduro?

— Sim, maduro. É uma bebida muito boa.

Foram andando...

O relógio das barcas marcava seis horas menos um quarto, e a cidade, mergulhada no crepúsculo, adormecia lentamente, caía pouco a pouco numa estagnação de praça abandonada, num triste silêncio de aldeia longínqua...

Acendiam-se as luzes e rareavam os transeuntes no largo do Paço. Um ou outro grupo retardatário, em pé na sombra, e sujeitos que saltavam dos bondes em frente à estação das barcas, conduzindo embrulhos. O velho pardieiro dos Braganças, o sombrio casarão, em que, durante quase um século, a monarquia fez reclamo de suas pratas, imobilizava-se lugubremente, ermo e fechado aquela hora.

Bom-Crioulo tomou à esquerda, por baixo da arcada do Paço, enfiando pela rua da Misericórdia, braço a braço com o grumete, fumando um charuto que comprara no quiosque.

Lá adiante, nas proximidades do Arsenal de Guerra, pararam defronte de um sobradinho com persianas, de aspecto antigo, duas varandolas de madeira carcomida no primeiro andar, e lá cima, no telhado, uma espécie de trapeira sumindo-se, enterrando-se, dependu­rada quase. Embaixo na loja, morava uma família de pretos d’Angola; ouvia-se naquele momento, no escuro interior desse coito africano, a vozeria dos negros.

— É aqui, disse Bom-Crioulo, reconhecendo a casa, e desapare­cendo no corredor sem luz, que ia ter ao sobradinho. Aleixo acompa­nhava-o taciturno, silencioso, cosendo-se à parede, como quem pela primeira vez entra num lugar estranho.

— Anda, tolo! fez o outro, segurando-lhe o braço. De que tens medo?...

Subiram cautelosos, por ali acima, uma escada triste e deserta, cujos degraus, muito íngremes, ameaçavam fugir sob os pés.

O negro puxou o cordão que pendia da cancela e lá dentro, na sala de jantar, uma campainha fez sinal, timbrando surdamente.

Ninguém apareceu.

Bom-Crioulo tornou a puxar com força.

— Quem é? Oh!.

— Sou eu, D. Carolina: tenha bondade.

— Já vai...

E com pouco o marinheiro atirava-se nos braços de uma senhora gorda, redonda e meio idosa, estreitando-a contra o peito, suspen­dendo-a mesmo, apesar de toda sua gordura, com essa alegria natural de pessoas que se tornam a ver, depois de uma ausência.

— Conta-m’lá, Bom-Crioulo, anda, entra... Quem é este pequeno?

— Este pequeno?... Por causa dele mesmo é que eu estou aqui. Depois conversaremos...

— E tu, como vais, meu crioulo? Dize, conta... Ora, se eu soubesse que eras tu... Dá cá outro abraço, anda!

Abraçaram-se de novo, com grande alvoroço, rindo, gargalhando, ela de avental, muito rechonchuda, o cabelo em duas tranças, partido ao meio, Bom-Crioulo fazendo-se amável, cobrindo-a de exclamações, achando-a mais gorda, mais bonita, mais moça...

D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na rua da Misericórdia somente a pessoas de “certa ordem”, gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do sujeito. Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima coisa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.

Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês ou por hora. Tinha o seu homem, lá isso pra que negar? Mas, independente dele e de outros arranjos que pudesse fazer, precisava ir ganhando a vida com um emprego certo, um emprego mais ou menos rendoso para garantia do futuro. Isso de homens não há que fiar: hoje com Deus, amanhã com o diabo.

Quando moça, tinha seus vinte anos, abrira casa na rua da Lampadosa. Bom tempo! O dinheiro entrava-lhe pela porta em jorros como a luz do dia, sem ela se incomodar. Uma fortuna de jóias, de ouro e brilhante! Já era gorducha, então: chamavam-na Carola Bunda, um apelido de mau gosto, invenção da rua...

Depois esteve muito doente, saíram-lhe feridas pelo corpo, julgou não escapar. E, como tudo passa, ela nunca mais pode reerguer-se, chegando, por desgraça, ao ponto de empenhar jóias e tudo, porque ninguém a procurava, porque ninguém a queria — pobre cadela sem dono... Passou misérias! até quis entrar para um teatro como qualquer coisa, como criada mesmo. Foi nessa época, num dia de carnaval (lembrava-se bem!), que começou a melhorar de sorte. Um clubezinho pagou-lhe alguns mil-réis para ela fazer de Vênus, no alto de um carro triunfal. Foi um escândalo, um “sucesso”: atiraram-lhe flores, deram-lhe vivas, muita palma, presentes — o diabo! Durante quase um ano só se falou na Carola, nas pernas da Carola, na portuguesa da rua do Núncio.

A pobre mulher narrava isso com lágrimas e suspiros de profunda e melancólica saudade, e repetia: — Bom tempo! Bom tempo!

Esteve duas vezes amigada, tornou a cair doente, foi a Portugal, regressou ao Brasil cheia de corpo e de novas ambições, amigou-se outra vez, e, afinal de contas, depois de muito gozar e de muito sofrer, lá estava na rua da Misericórdia, fazendo pela vida, meu rico!, explo­rando a humanidade brejeira, enquanto o seu “macacão” trabalhava por outro lado em negócios de carne verde e fornecimento para os quartéis.

De resto, essa aliança com o açougueiro, um senhor Brás, homem de grandes barbas e muitos haveres, essa aliança pouco ou nada lhe rendia, a ela, porque o sujeito era casado e só de mês em mês dava um ar de sua graça, deixando-lhe a ninharia de cento e cinqüenta mil-réis para o aluguel do sobradinho, fora a carne que mandava diariamente.

— Tenho quarenta anos de experiência, dizia, quarenta anos e alguns fios de prata na cabeça. Conheço este mundo velho, meu amor tudo isso pra mim, é miséria.

Estimava Bom-Crioulo desde o dia em que ele, desinteressadamente, por um acaso providencial, livrou-a de morrer na ponta de uma faca, história de ladrões... Era caso até para beijar os pés ao marinheiro, porque nunca vira tanta coragem e tanto desinteresse!

D. Carolina buscava sempre ocasião de recordar o fato, narrando­-o com todas as cores, dando-lhe mesmo umas tintas de paleta rocambolesca, desfazendo-se em elogios à gente da marinha, gabando os homens do mar, “uns benfeitores da humanidade”.

Uma noite — só ao pensar tinha calafrios! — vinha de assistir o Drama no alto-mar, que se representava na Phenix, quanto, ao meter a chave na porta, foi surpreendida por dois indivíduos, cuja fisionomia não pode reconhecer, e que lhe pediram os anéis e o dinheiro que porventura trouxesse.

Ela, com efeito, além de um anel de brilhante, lembrança dos bons tempos! e duas esmeraldas, levava cinqüenta mil-réis. Ora, já passava de meia-noite e a rua da Misericórdia estava deserta que nem um cemitério. Nenhum guarda por ali! Quis abrir a boca e pedir socorro, mas os gatunos foram dizendo logo que, se ela ousasse gritar, morria. E brandiram os punhais, duas lâminas de bom aço, tamanho de facões! Ah! mas Deus é grande! Nesse momento ia passando o vulto de um marinheiro e ela disparou, correndo, sobre ele: — Socorro! Socorro! —Travou-se uma luta. O marujo saltava fugindo aos punhais e investindo logo, como uma fera, de navalha em punho. Felizmente (Deus sabe o que faz!) aos gritos de socorro, encheram-se as janelas de gente em camisa de dormir, soaram apitos no escuro e a polícia chegou a tempo de prender os ladrões, completamente desarmados pelo bem-vindo marinheiro. — Qualquer pessoa nos casos dela faria o que ela fez: abriu cerveja para o seu protetor, que disse chamar-se Amaro, vulgo Bom-Crioulo, marinheiro de um navio da esquadra. E, como no sobradinho moravam praças de bordo, Bom-Crioulo deu-se a conhecer, havendo logo uma intimidade entre ela, Carolina, e o negro. Palavra d’honra como nunca vira tanta coragem num homem!

Estimava-o por isso: porque era um marinheiro valente — homem pra quatro!

Bom-Crioulo começou a freqüentar o sobradinho, onde iam outros marinheiros, e daí a grande amizade da portuguesa por ele, não que houvesse outra intenção: ela sabia que o negro não era homem para mulheres...

— Vamos, conta-m’lá essa viagem!

Tinham-se sentado os três, na sala de jantar, à luz do gás. D. Caro­lina estufada, muitíssimo gorda, cabeceando, sem fôlego, estava ansiosa por saber notícias. O negro, de boné no alto da cabeça, recostado familiarmente, acabava o charuto, cuja cinza abria-se de vez em quando num clarão rubro e quente. Aleixo, imóvel numa cadeira, olhava as paredes, examinando o papel do forro, os quadros — oleografias de carregação figurando assuntos de alcova, duas em cada parede, colocadas simetricamente —, o guarda-louça quase vazio, e uma coleção de estampilhas de caixa de fósforo armadas em leque. Tudo velho e incolor, poento e maltratado. Respirava-se uma atmosfera de sebo e cânfora, renovada por uma triste janelinha que abria para a espécie de área pertencente à loja.

Bom-Crioulo resumiu em poucas palavras a viagem da corveta: —Seis meses de estupidez! O Aleixo é que trouxera um pouquinho de alegria, na volta...

E desfiou a história do grumete.

— Agora D. Carolina vai nos arranjar um quartinho, mesmo que seja no sótão, rematou; mas um quartinho sem luxo, para quando viermos à terra.

— Uma cama ou duas? perguntou sorrindo a quarentona.

— Como quiser... Marinheiro é gente que dorme aos quatro, aos cinco.., aos cinqüenta! Se houvesse uma caminha larga...

— Arranja-se, meu Deus, arranja-se, tornou a portuguesa. O comodozinho de cima está desocupado, e, quer que lhe diga?, eu acho que ficavam melhor...

Sempre risonha e trêfega, sufocada pelo calor, a mulher piscou o olho a Bom-Crioulo.

— Então, já sei que vens outro... Bendita viagem! Ou o mar ou as tais cantáridas!...

Riram, compreendendo-se, enquanto Aleixo, debruçado à janela, cuspia para baixo, para o quintalejo dos africanos.