Um desespero surdo, um desespero incrível, aumentado por acidentes patológicos, fomentado por uma espécie de lepra contagiosa que brotara, rápido, em seu corpo, onde sangravam ainda, obstinadamente, lívidas marcas de castigo — um desespero fantástico enchia o coração amargurado de Bom-Crioulo. Não lhe restava mais esperança de que Aleixo fosse vê-lo ao hospital: estava desiludido. O grumete abandonara-o, esquecera-o, e nem ao menos dera-lhe uma satisfação! — Atrás dos apedrejados vêm as pedras. Uma pessoa, no fim de contas, era obrigada a tornar-se ruim, a fazer todas as loucuras... Isso de a gente pensar na vida, sacrificar-se, proceder bem, não vale nada, é uma grande tolice, uma grande asneira.

Tinha momentos de calma, procurando afastar do espírito qual­quer idéia de vingança, de desforra, como quem se julga superior às pequeninas misérias da vida. Durante o dia jogava a dama com o tal empregado que lhe fizera o bilhete, resignado, sem cólera, prazenteiro mesmo, não perdendo, entretanto, aquela vaga expressão de melan­colia que boiava em seus olhos traindo mistérios d’alma...

Era à noite, porém, que o caso de Aleixo voltava-lhe à imaginação, enchendo-a de fantasmas, povoando-a de sonhos, com a insistência de um remorso — à noite, nas horas de repouso, quando tudo era silêncio no velho hospital.

Positivamente não se conformava com a idéia de que Aleixo o abandonara por outro... E quem seria esse outro? Algum marinheiro também, decerto, algum “primeira-classe”... Era muita ingratidão, muita baixeza! Abandoná-lo, por quê? Por que era negro, por que fora escravo? Tão bom era ele quanto o imperador!...

Consumia-se em reflexões pueris, verberando o procedimento de Aleixo, uivando pragas que ninguém escutava, dardejando cóle­ras, tempestuoso e medonho na sua mudez alucinada. Eram noites e noites de um sonambulismo fantástico e enervante, de uma obsessão rude e esmagadora. E quando, pela madrugada, vinha-lhe o sono, era impossível dormir, porque vinham-lhe também o que ele chama­va “as coceiras”, um horroroso prurido na pele, no corpo todo, como se o sangue fosse esguichar pelos poros numa hemorragia formi­dável ou como se estivesse crivado de alfinetes da cabeça aos pés; — não podia fechar os olhos, nem tranqüilizar o espírito. Seu desejo era sair como um doido por ali fora, meter-se num banho e ficar n’água um ror de tempo agachado, nu em pêlo. Parecia uma maldição! Rebentavam-lhe feridas: havia uma grande aberta no joelho esquer­do. Não atinava com aquilo. Talvez alguma praga injusta... Era horroroso! Levar um homem a noite inteira sem dormir, pensando numa coisa, noutra, e, ainda por cima, o diabo de umas coceiras que punham a gente doida!

Então é que tinha raiva de Aleixo, então é que se revoltava contra o grumete, “o causador de todos os seus males”. Naquele estado aflitivo de desespero de corpo e d’alma ia-se-lhe a razão — Bom-Crioulo só tinha uma idéia: vingar-se do efebo, persegui-lo até a morte, aniquilá-lo para sempre!

Era um misto de ódio, de amor e de ciúme, o que ele experimen­tava nesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir o grumete, esse desejo aumentava em seu coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aquela torre de marfim construída pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma coisa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado, brutal como as cóleras de Otelo.......

Aleixo com outro homem! Esta idéia fazia-o enlouquecer de ciúme, torturava-o como um sofrimento agudo, como uma chaga viva e dolorosa.

Que felicidade, que alívio, que suprema ventura, quando pela manhã, já dia claro, o sol, tépido e loução, entrava cheio de mistério pela enfermaria dentro, e recomeçava em todo o hospital a bela vida!...

Foi justamente numa dessas noites de obsessão e desespero que Bom-Crioulo galgou a muralha do estabelecimento e abalou vertiginoso para a rua da Misericórdia, cego, às tontas, como quem vai precipitar-se num abismo.

Era um sábado feriado. Entre os marinheiros que tinham ido ao hospital visitar os amigos, Bom-Crioulo reconhecera o Pinga da corveta, seu companheiro de viagem outrora — o Pinga, o Herculano, que fora surpreendido a praticar uma ação feia e deprimente do caráter humano, junto à amurada, na proa, certa noite...

— Ó Herculano, vem cá!

— Oh, Bom-Crioulo!

— Então, que é feito de ti? perguntou o negro, interessado, conduzindo o outro pelo braço. Onde é que estás agora?

Herculano estava mudado, já não era o mesmo Pinga retraído e esquivo, com olheiras, falando pausadamente. Estava outro, admiravel­mente outro, o Herculano — gordo, rosado, o olhar vivo e brilhante, sem melancolia, nem sombra alguma de tristeza. Perdera a antiga palidez que lhe dava um arzinho pulha de coisa à-toa, falava desempenado, alto, e ria, como uma criança, por ninharias. — “Onde estava agora? Na corveta, sempre na corveta”.

— Ainda? fez Bom-Crioulo admirado, ocultando a satisfação que lhe fazia a resposta. Ainda estás na corveta, homem de Deus?

— Por que não? Aquilo é que é navio. Depois que saiu do dique, nem parece a mesma. Faz gosto vê-la. Toda pintadinha, toda nova, que é ver uma tetéia.

— Mas, como é que se muda assim, rapaz? Tu, que eras tão pobre de sangue, estás me parecendo bonito, homem!

— Qual o quê! sorriu Herculano. Já estive mais gordo...

Ia reparando em Bom-Crioulo. Como estacava acabado, o negro! Viam-se-lhe os ossos da cara; tinha uma grande cicatriz, uma espécie de ruga funda no pescoço....

— Estás doente? perguntou.

— Ando com umas coceiras, umas feridas no corpo.... Diz que é sarna.

— Ah!... Porque estás magro, meu velho, estás na espinha. Que diabo!

E depois de uma pausa:

— Eu vim ver o Anacleto, que está com uma carregação... Não sabia que tinhas baixado também, que andavas por aqui. Fazia-te longe.

— É verdade, há quase um mês nesta desgraça, me acabando!

Chegaram à enfermaria. Os doentes olhavam-nos, palrando, em grupos, nos corredores, nas dependências do hospital. Alguns convales­centes jogavam a peteca num largo donde se avistava o mar.

Ia para as seis da tarde. Os navios de guerra, imóveis e embandei­rados, tinham um aspecto festivo. Ouviam-se toques de cometa ao longe e sons de música em terra, na cidade. Barcas de Niterói cruzavam-se no meio da baía calma. Por toda parte, no mar e em terra, uma frêmito de alegria universal e domingueira, uma estranha alacridade perdendo-­se ao longe, nas primeiras névoas do crepúsculo. Já se não via o disco de ouro do sol; a claridade ia pouco a pouco tornando-se difusa, esmaecida, langue, como uma manhã de brumas. O perfil das embar­cações, o contorno das montanhas, torres e chaminés — tudo mergulhava na noite que descia palpitante de mistérios...

Ao Herculano pouco se lhe dava que anoitecesse, porque estava de folga; daí, do hospital, iria para terra num bote de ganho. Mas era preciso não demorar muito, sob pena de fechar-se o por­tão do estabelecimento, e ele amanhecer naquele “cemitério de vivos” ...

Bom-Crioulo tranqüilizou-o: — Ainda era cedo, homem. Que pressa, que vexame!

E muito jeitoso, muito amável:

— Senta um pouco. Nada de cerimônias: isto aqui é meu, é teu, é do Governo. Podemos conversar à vontade.

Herculano correu o olhar pela enfermaria, pelo chão, pelo teto, pelas camadas alinhadas. De resto, não era má vida... Boas camas, bom passadio, liberdade...

— É porque ainda não passaste uma noite aqui dentro, meu velho. Um inferno é o que isto é. Só mesmo para quem não pode aguentar-se. Boa cama temos nós a bordo.

— Pode-se fumar? perguntou o outro.

— É proibido, mas fuma lá teu cigarro.

Tinham-se sentado na cama do negro, muito encardida. —“Era só um instantinho”, avisou o grumete.

E Bom-Crioulo puxou conversa:

— Dá-me notícias daquela gente, ó Herculano. Como vai o Aleixo, como vai o guardião Agostinho, como vão todos?...

— Bem o guardião Agostinho sempre malvado, aquele cabra — malvado e “implicante”. Eu, felizmente, não lhe tenho caído nas unhas; felizmente! O Aleixo, aqui pra nós, anda muito metido com os oficiais. Vive na praça d’armas, é quem dá corda no relógio, quem arruma os camarotes, quem faz tudo. Está um pelintra, filho, um grande pelintra: é o nenenzinho de bordo. Sai quando quer, entra quando quer...

Bom-Crioulo pigarreou.

— Eu, por mim, não troco palavra com ele, continuou Herculano. Estamos de mal, por uma asneira, por uma tolice... Outro dia quase nos pegamos. Dizem até que está amigado, em terra, com uma rapariga.

— Amigado?

— Sim, amigado, um pitorra daquele. É o que dizem, eu não sei.

Bom-Crioulo tomava sentido, cheio de interesse, dominando-se, abafando uma golfada de palavrões, uma onda de cólera, que estava quase a irromper-lhe da boca. Desesperava. Na tépida penumbra da enfermaria o seu olhar tomava uma expressão dolorida e úmida, como o olhar de um náufrago perdido no circulo imenso das águas. Era uma tempestade surda e impenetrável, um desabar de todas as crenças, de todas as ilusões, de todas as forças que mantêm o equilíbrio de uma natureza humana em revolta...

— O Santana, esse desertou, foi-se embora, ninguém sabe para onde. Também, coitado! apanhava que nem boi ladrão. Era um pobre-diabo...

Trocaram ainda algumas palavras. Herculano contou episódios íntimos de bordo, muito loquaz, muito verboso; e como já fosse noite:

— Adeus, Bom-Crioulo, que eu me vou chegando. Estimo que fiques bom, hein! que fiques completamente bom. Eu lá estou, na corveta, para o que quiseres. Boa noite!

— Boa noite, murmurou o negro com uma voz triste e profunda, quase lúgubre.

Acendiam-se as estrelas no céu muito alto e de uma limpidez outonal...

Bom-Crioulo não pensou em dormir, cheio, como estava, de ódio e desespero. Ecoavam-lhe ainda no ouvido, como um dobre fúnebre, aquelas palavras de uma veracidade brutal, e de uma rudez pungente:

— “Dizem até que está amigado!”

Amigado, o Aleixo! Amigado, ele que era todo seu, que lhe pertencia como o seu próprio coração: ele, que nunca lhe falara em mulheres, que dantes era tão ingênuo, tão dedicado, tão bom.. Amigar­-se, viver com uma mulher, sentir o contacto de outro corpo que não o seu, deixar-se beijar, morder, nas ânsias do gozo, por outra pessoa que não ele, Bom-Crioulo!...

Agora é que tinha um desejo enorme, uma sofreguidão louca de vê-lo, rendido, a seus pés, como um animalzinho; agora é que lhe renasciam ímpetos vorazes de novilho solto, incongruências de macho em cio, nostalgias de libertino fogoso... As palavras de Herculano (aquela história do grumete com uma rapariga) tinham-lhe despertado o sangue, fora como uma espécie de urtiga brava arranhando-lhe a pele, excitando-o, enfurecendo-o de desejo. Agora sim, fazia questão! E não era somente questão de possuir o grumete, de gozá-lo como outrora, lá cima, no quartinho da rua da Misericórdia: — era questão de gozá-lo, maltratando-o, vendo-o sofrer, ouvindo-o gemer... Não, não era somente o gozo comum, a sensação ordinária, o que ele queria depois das palavras de Herculano: era o prazer brutal, doloroso, fora de todas as leis, de todas as normas... E havia de tê-lo, custasse o que custasse!

Decididamente ia realizar o seu plano de fuga essa noite, ia desertar pelo mundo à procura de Aleixo.

Inquieto, sobreexcitado, nervoso, pôs-se a meditar. O grumete aparecia-lhe com uma feição nova, transfigurado pelos excessos do amor, degenerado, sem aquele arzinho bisonho que todos lhe admira­vam, o rosto áspero, crivado de espinhas, magro, sem cor, sem sangue nos lábios... Pudera! Um homem não resiste, quanto mais uma criança! Aleixo devia de estar muito acabado; via-o nos braços da amante, da tal rapariga — ele novo, ela mocinha, na flor dos vinte anos —, via-o rolar em espasmos luxuriosos, grudado à mulher, sobre uma cama fresca e alva — rolar e cair extenuado, crucificado, morto de fraqueza... Depois a rapariga debruçava-se sobre ele, juntava boca à boca num grande beijo de reconhecimento. E no dia seguinte, na noite seguinte, a mesma coisa.

Bom-Crioulo desnorteava. Inconscientemcnte era arrastado para um mundo de idéias vagas que o não permitiam tornar uma solução pronta, definitiva. Só uma idéia conservava-se firme e clara em seu espírito: fugir, fugir quanto antes, não esperar mais nem um segundo, romper os diques de seu isolamento e amanhecer na rua, no meio da cidade, longe do hospital, “desse hospital de merda!”

Seus cálculos não podiam falhar. Deixava uma janela aberta, pretextando calor, arrumava a trouxa...— qual trouxa! nem era preciso trouxa! — e, alta noite, descia por um cabo. As janelas que davam para os Órgãos ficavam sobre um terreno anfractuoso, espécie de ladeira bronca, meio íngreme, despenhando para umas oficinas e estaleiros que havia embaixo, na ilha. Não eram, porém, tão altas que se não pudesse, embora dificilmente, com agilidade, tentar uma escalada. E Bom-Crioulo não seria o primeiro; antes dele, outros haviam desertado por ali. Contava-se de um que rolara a montanha, sendo encontrado quase morto ao pé de uma árvore, o corpo todo cheio de pisaduras, vertendo sangue pelo nariz; veio a morrer da queda, que lhe produzira uma doença grave na espinha.

O negro não teve dúvida ergueu-se (era uma hora da madrugada), foi à casinha, para não dar a perceber, amarrou na cintura uma navalha de marinheiro que o acompanhava sempre, vestiu, por baixo da roupa branca de doente, a camisa de gola, e voltou cauteloso, perscrutando o silêncio e a escuridão. Depois, foi tudo rápido: deu volta ao cabo na janela, um cabo grosso trançado, e — ... que os pariu! — saltou fora. Uma escuridão medonha na baía e um silêncio de arrepiar cabelo. Era a hora do sono forte, do sono pesado. As sentinelas bradavam, de instante a instante, o seu prolongado — alerta! que o eco repetia no mar e em terra. Nenhuma outra voz, nenhum outro sinal de vida. A cidade iluminada, estrelada de luzes microscópicas, era como vasta necrópole na lúgubre inquietação da noite.

Bom-Crioulo sentia um friozinho brando, um leve bafejo matinal arrepiar-lhe a nuca. Dirigiu-se tateando, tateando, rente com o paredão do hospital, sem olhar pra trás, sem ver nada. Tinha examinado bem o terreno antes de se aventurar; por esse modo, caminhando naquele rumo, ia direito a uma descida pouco escabrosa. Embaixo ficava o dique. Era preciso muita cautela, muito jeito para não precipitar-se. Foi indo, foi indo, ora agachado, ora em pé, segurando aqui, segurando acolá, às apalpadelas, e pôde enfim — ... que os pariu! — chegar ao cais, à beira d’água, sem o mais leve arranhão. Dava meia hora na Candelária — uma pancada sonora e cheia, que reboou longe, soturnamente, acordando os ecos. — “Faltava atravessar o canal, pensou Bom-Crioulo, medindo com o olhar a extensão líquida que separava o arsenal da ilha. Paciência, um pouquinho de paciência. Devagar...” Encolheu-se todo por trás de um guindaste, reflexionando. — Ia dali rente para o sobrado; queria ver como estava aquilo; queria fazer uma surpresa ao senhor Aleixo. E a portuguesa? Já se não lembrava dela!... É verdade, a portuguesa?...

Um relâmpago, uma dúvida passou rápida em seu espírito, deslumbrando-o: — Qual! Não era possível!... Que tolice!...

O friozinho aumentava. O relógio da Candelária, sonoro e profundo, badalou duas horas. Bom-Crioulo ergueu a vista para o céu: — as estrelas palpitavam; a via-láctea resplandecia, branca e tortuosa, na infinita serenidade da noite. Defronte, no arsenal, erguia-se o perfil de uma grande chaminé sombria. A água marulhava no cais monoto­namente, em seu eterno fluxo e refluxo. — Alerta! bradavam as sentinelas a cada instante, na ilha, no arsenal, na Alfândega, nos trapiches. Em toda parte o mesmo silêncio, a mesma quietação, a mesma calma profunda.

A noite parecia não acabar, não ter fim: era como uma eternidade. Arrastado pela maré, um objeto ia flutuando águas abaixo, vagarosa­mente. — Algum trapo velho, pensou o negro, talvez mesmo, quem sabe? algum “corpo”...

E nada de clarear, nada de amanhecer; já se ia impacientando! Que diabo fazia ele que não tomava uma resolução? Era pra isso que tinha fugido, pra estar ali de boca aberta, caindo de sono? Mas não havia remédio senão esperar, não havia outro jeito. Ir a nado? Qual! E as sentinelas?... Paciência, paciência...

Duas horas no relógio da Candelária. Apenas uma voz bradou, longínqua e desolada, sem eco: — Alerta!

Bom-Crioulo recostou a cabeça no guindaste, bêbedo de sono, um peso nas pálpebras, uma indisposição no corpo; e, não obstante as “coceiras”, que aí vinham-lhe subindo nas pernas, como um formigueiro, adormeceu ao rumorzinho da água no cais.

Quando ergueu a vista, momentos depois, era quase dia. Começava o tumulto de escaleres e catraieiros para o lado da Alfândega. Ouvia-se barulho de remos e o arquejar de uma lancha deitando vapor fora. Os Órgãos, indistintos ainda na meia sombra do alvorecer, iam pouco a pouco evidenciando a sua bela configuração de harmônium colossal. Uma ou outra luzinha pálida no anfiteatro da cidade. Tinha-se apagado a iluminação. No mosteiro de S. Bento um sino fanhoso vibrava matinas desde as três horas, insistentemente, num alvoroço de igrejinha d’aldeia que acorda proclamando os triunfos da cristandade. A bordo, nos navios de guerra, cometas preludiavam o hino do amanhecer. Do outro lado da baía, em Niterói, uma névoa fina, transparente, como a evaporação de um grande lago, fraldejava as montanhas, ocultando a paisagem de um extremo a outro. E lá fora da barra, para além do Pão d’Açúcar, um listrão cor-de-rosa pouco a pouco ia-se tornando mais vivo, mais fulgurante no céu lívido...

Bom-Crioulo circunvagou o olhar, muito admirado, muito sur­preendido, como se estivesse num lugar estranho, e a primeira palavra que lhe veio à boca foi uma obscenidade: — “... que os pariu! Ia-se desgraçando!... Mãos à obra! Felizmente ainda não era dia claro...”

Nenhum bote, nenhuma ernbarcação ali perto, no canal. O movimento era todo na vizinhança da Alfândega, no cais dos Mineiros. Passavam escaleres de guerra: Bom-Crioulo escondia-se para não ser visto. — Diabo! diabo! Tudo por causa de um grumetezinho!...

De repente, ouviu barulho n’água — aproximou-se: era um bote de ganho.

— “Até que enfim! Ora até que enfim!”

A pequena embarcação vinha-se chegando para a ilha, sem toldo, remada por um galego de suíças, meio velho. Trazia à popa, no recosto do paineiro, o dístico— Luís de Camões —, por cima de uma figura a óleo, que tanto podia ser a do grande épico como a de qualquer outra pessoa barbada, em cuja fronte se houvesse desenhado uma coroa de louros. Nessa infame garatuja, o poeta tinha o olho esquerdo vazado, o que, afinal de contas, não interessava ao negro.

— Quer me levar ao cais? perguntou Bom-Crioulo ao português.

— É já! disse o homem atracando. O Luís de Camões não dorme.

— Vamos.

— Pode embarcar.

— Upa!

E, com um salto, Bom-Crioulo embarcou. Estava, enfim, livre de perigo; — “... que os pariu!”.

Daí a instante perdia-se no labirinto da cidade, marchando no seu passo largo, muito desenvolto, quebrando ruas, dobrando esquinas, “bordejando”... Estava um dia lindo, lindo! um dia de galas no azul e nas montanhas, um dia de liberdade!