Brasileiras celebres (1862)/Introducção historica


 
INTRODUCÇÃO HISTORICA
 
A COLONIA — O RÉINO — O IMPERIO
 

Coube por herança aos brasileiros a melhor porção do Novo Mundo; país sem igual, chamado por invocação Terra de Santa Cruz, por tradição Brasil, por excelência império diamantino, e que parece destinado a ser ainda um dia uma das primeiras nações do Universo.

Situado na parte mais oriental da América Meridional, ocupa o Brasil quase metade desta região do novo hemisfério, confinando ao norte com as Guianas, Colômbia e Atlântico; ao sul com as repúblicas Oriental e Argentina; ao oriente com o mesmo oceano, e ao ocidente com os estados republicanos da Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai.

Banhado pelo oceano, oferece o Brasil uma costa extensa, que se estende por centenas de léguas, ora se abrindo em seguros portos, em perfeitos ancoradouros, em belas enseadas, em profundas e magníficas baías, capazes de conter as esquadras de todas as nações; ora se alargando em cabos, que se prolongam pelo mar, ora acompanhada de ilhas tão vastas como alguns reinos da Europa. Plana e andaimosa à beira-mar, a terra se empola para o interior e apresenta majestosas ramificações de montanhas, cujos cumes se ostentam prodigiosamente altos, escalvados e arrepiados de rochedos, ou revestidos de verdura e coroados de palmeiras e soberbas árvores; aqui interceptada de lagoas pitorescas e piscosas, nas quais a mão da natureza quebra a monotonia das águas, variando-se em ilhas, como esses fragmentos de florestas, que o Amazonas arranca das suas margens e leva baloiçando sobre as suas vagas, e ali retalhada majestosamente de assombrosos rios, maravilha da criação divina, que rolam fartíssimas torrentes, recebidas de seus tributários, outros rios não menos caudalosos e de primeira grandeza entre os impérios do mundo.

Que magníficas florestas revestem este solo privilegiado! Nem na Europa, nem nas outras partes do globo há cousa, que iguale a pompa da sua vegetação! Ainda a maior luz do dia impera sob essas abóbadas de verdura, sustentadas por troncos seculares, a sombra, que precede a noite; enormes trepadeiras se abraçando às arvores, se elevam às suas grimpas alterosas, e vão misturar suas flores com as flores dos troncos, que as sustentam, e confundir seus perfumes; entrelaça-as ainda mimosa variedade de parasitas com suas galas e primores; o canto das aves de variegada plumagem e as vozes humanas, que desprendem muitas dentre elas, adoça o mistério da solidão; miríadas de insetos, como alados diamantes e safiras, enchem os ares, ou brilham por entre as trevas da noite, como fogos diamantinos, enquanto o sibilo das serpentes e o bramido das feras quebram o encanto destas cenas e enchem de espanto e de terror o ente pensador, que mudo e silencioso, recolhido em si mesmo, contempla o reino de tantas maravilhas!

A essas florestas, que infelizmente desaparecem entregues às chamas devastadoras, sucedem-se campos, vastas planícies contornadas de alegres colinas, recamadas de verdura, mal povoadas algumas e desertas imensas outras, que pedem população, e que ainda um dia serão transformadas em ricas e amenas povoações agrícolas.

À fertilidade do solo junta-se a riqueza mineral, que é imensa, espantosa, e ainda não conhecida de todo. Às arriscadas e célebres pesquisas para a descoberta do ouro e dos diamantes, seguem-se agora as tentativas das explorações do ferro e do carvão de pedra, de que espera o império tantos progressos na senda da civilização e dos melhoramentos materiais.

À fertilidade e riqueza do solo reúne-se ainda a benignidade do clima, que varia pela extensão do país, segundo a situação de suas vastas províncias; a temperatura elevada à beira-mar é modificada pelas brisas, que sopram pela manhã da parte de terra, ou pela viração, que as sucede pela tarde adiante, vinda da parte do mar. Além de tanta prodigalidade da natureza deve ainda o Brasil conhecer o benefício, com que aprouve à Providência divina excluí-lo dos vulcões, dos terremotos, das tempestades tão horríveis em outros lugares da América Meridional, sem falar das epidemias, que assolam o Velho Mundo e despovoam as suas antigas cidades.

Todo esse vasto país era habitado por tribos bárbaras e tão selvagens como as florestas de sua solidão; ainda não tinham ouvido a palavra de Deus, e apenas reconheciam a sua existência no relâmpago do raio. Andavam nuas ou pediam emprestadas às aves as suas penas de vários matizes, para se adornarem nos dias de suas festividades; pintavam também cuidadosamente o corpo com o sumo de ervas ou frutos, talvez para se preservarem das picadas dos insetos, e se banhavam desde os primeiros cantos das aves até à noute. Algumas dentre elas possuíam suas choupanas, extensas e largas; outras viviam pelos matos, dormiam pelo chão sobre folhas ou encostadas às árvores, amparadas por ligeiros tetos de folhagem; e ainda outras tinham abrigo nos antros subterrâneos e por leito as peles dos animais ferozes, mortos na caça, e cuja carne lhes servia de alimento.

Pela tradição transmitida por seus anciãos ou cantada pelos seus bardos, que achavam no seu estro a voz do passado, e que pela sua idade ou talento mereciam a sua veneração ou captavam a sua estima, conservavam fracas idéias do Dilúvio e tenuíssimas lembranças de sua primitiva origem; diziam pertencer a uma grande nação, que se dividiu em muitas tribos a pretexto de domésticas contendas, que tomaram corpo.

Povos guerreiros, tudo entre eles respirava guerra. A tradição dos feitos belicosos passava de velhos a moços, educados mais para as batalhas do que para os pacíficos trabalhos de suas aldeias. Suportando a fome e a sede por dias, marchavam a sitiar os contrários, uns após outros, como um só homem, pisando sobre as mesmas pegadas, certos de que os prisioneiros lhes serviriam de alimento. Traziam gargantilhas dos dentes dos adversários mortos por eles; fabricavam de seus ossos os instrumentos guerreiros, e nos banquetes de carne humana bebiam pelos crânios dos inimigos. Com o arco e as setas nas mãos; com a aljava pendente das espáduas ou empunhando somente a clava pesada; com as cabeças coroadas por penachos de variadas cores, tendo o corpo desfigurado por figuras caprichosas e grotescas, que lhe imprimiam com vernizes, eram medonhos no campo dos combates, eram horríveis nas suas caiçaras. Como antropófagos, inspiravam aos filhos ódio contra os contrários, fatal herança de heroicidade, incitando-os nos festins, após os sacrifícios de sangue, com os cantos de vingança, e animando-os com danças guerreiras em torno ao fogo sagrado. Prezando a liberdade mais do que a vida, afeitos à guerra, não podiam ser submetidos facilmente ao cativeiro, por isso na incerteza do triunfo preferiam a morte, que lhes ofereciam os conquistadores, à sorte dos escravos, que lhes destinavam, que para eles era o pior de todas as afrontas. Os prisioneiros saudavam com júbilo o sacrifício; ouviam com alegria o som do trocano, o grande tambor, cujo convocar de guerra chamava homens e mulheres, velhos e moços, e ainda as criancinhas. As velhas com os fatais alguidares, e todos eles vestidos como para solene festa, armados como para o combate, se lhes aproximavam. Revestidos os prisioneiros de toda a coragem, assoberbavam a morte; ligados à muçurana, corda dos sacrifícios, tendo na cabeça a cangatara, essa carocha de plumas, e vendo as fogueiras, encaravam os inimigos com desprezo e recebiam tranqüilos o golpe da tangapema, essa maça rude e pesada, que os prostrava sem vida.

Amavam a dança, dedicavam-se à música, e a poesia era cultivada a seu modo por algumas tribos mais favorecidas da natureza e sobretudo pelos tamoios, que habitavam o Rio de Janeiro, e pensavam ter nas águas do Carioca a inspiração, e pois como as do Hipocrene as águas de tão afamada fonte ganharam celebridade por todo o Brasil; a sua língua poética e harmoniosa mereceu ser cultivada pelos jesuítas, que nela compuseram cantos místicos, que arrastavam inteiras tribos à civilização.

Sem religião, tinham apenas idéia da Divindade pelo conhecimento, que lhes inspirava essa potência excelente, grande, maravilhosa, que era Tupã, mas sem templo e sem culto. Ela se lhes revelava no relâmpago com tupaberaba, e lhes bradava pela voz do trovão como tupaçununga. Tinham idéias de espíritos maus pelo horror de Anhangá ou Jurupari, que afugentavam com fogueiras acesas em suas tabas ou com fachos quando caminhavam nas trevas da noite, como se fossem vampiros. Maraguigana, Macaxera e Curupira eram outros demônios, cuja aparição terminam buscando apaziguar-lhes a cólera com presentes e ofertas, que enterravam no lugar da fatal aparição. Tinham apreensões vagas, que os jesuítas procuravam destruir, afrontando-as, e eles atribuíam a sua vã realização à santidade e pureza dos padres. Acreditavam na imortalidade da alma, que não sabiam separar da matéria, já vendo-se, segundo a metempsicose, metamorfoseados no saci, já depositando sobre a sepultura dos seus mortos os necessários aprestos para a sua viagem de além-túmulo, talvez remotas reminiscências de sacrifícios, cujos vestígios lhes conservou a tradição. Nos Campos Alegres, como no paraíso maometano, esperavam delícias em recompensa dos feitos de bravura, obrados na guerra, e de intrepidez, assinalados na caça das feras, que enchiam as florestas.

Acreditavam nos seus profetas, esses sacerdotes e curandeiros, que tudo isso eram os seus pajés e caraíbas. Eles lhes pressagiavam dias de ventura, prometendo-lhes o cultivo das roças sem trabalho, e que suas enxadas por si sós iriam cavar a terra, e as setas ao mato para lhes obter a caça ou destruir os inimigos. Serviam-lhes também de médicos pelo conhecimento, que tinham, de certas ervas, adquirido no tremendo noviciado. Habitavam sós, em choupanas, que à primeira vista se conheciam pelo maracá, pendente do limiar, símbolo de dignidade, reverenciado por toda uma tribo. Não havia entre eles templos a derrubar, aras a destruir, ídolos a despedaçar, crenças arraigadas a combater. O cristianismo não teve que lutar com as dificuldades, que encontrou no Velho Mundo, acabando por fazer erguer no Capitólio e monumentos da guerreira Roma, o estandarte da civilização e da liberdade, consagrando as aras do gentilismo a seus heróis. Assim pois, ante à sabedoria dos padres jesuítas, caiu a máscara dos embustes, desvanecendo-se a falsidade de seus sacerdotes, os únicos prejudicados, e a palavra sublime, que seus lábios pronunciavam com espanto, servia para invocar o Deus da eternidade e bastou para lhes dar a conhecer o que mal poderiam compreender num vocábulo estranho.

Tais eram, falando relativamente a todas as tribos, apresentando os caracteres mais salientes, apontando os costumes e usos mais geralmente seguidos, traçando a fisionomia mais característica, os Brasis, que deviam ser chamados para o aumento da população dos estabelecimentos agrícolas, fundados pelos portugueses para a civilização e povoação do grande império. Com tão favoráveis disposições da parte dos indígenas, não era por certo difícil chamá-los ao grêmio do cristianismo, tornando-os de rudes e selvagens homens civilizados e laboriosos, e pois nos campanários celestes soou a hora de sua redenção!

“Não era possível”, diz um autor nacional, “que o mesmo Deus, que havia criado o homem para as harmonias da vida social, fosse por mais tempo indiferente à sorte de milhões de seres, que barafustavam na escuridão do erro, sem nem uma idéia do que era o homem, do que era Deus e do que eram as relações, que prendem o Criador à criatura.”

Além dos mares crescia e prosperava o reino português; sobre o seu trono sentava-se o príncipe, cujo cetro estendia-se pelo universo; suas esquadras sulcavam os mares nas mais remotas paragens, e a cruz, símbolo da redenção, era arvorada nos mais longínquos países, assinalando a conquista da fé, mostrando a civilização cristã. Cristóvão Colombo tinha patenteado à Espanha a existência do Novo Mundo, e Vasco da Gama, não menos atrevido, tinha descoberto o caminho da Índia, dobrando o cabo da Boa Esperança, franqueando as portas dos mares do Oriente, cujas chaves foram roubadas e para sempre ao gênio das tormentas, que Camões personalizou na figura de Adamastor. Estas empresas haviam excedido a expectativa do Velho Mundo; Lisboa tornara-se o empório do comércio do Oriente; o Tejo roubara o tridente ao mar Adriático, e o entusiasmo pela navegação redobrava no coração de uma nação, que se engrandecia com os seus descobrimentos.

As desinteligências em que ficaram muitos reis orientais para com os portugueses deviam ser harmonizadas por meio da guerra, e pois nova armada e mais poderosa, porquanto a terra devia estar em armas, e que manifestasse por não duvidosa toda a força do reino lusitano, a fim de poder prosseguir em suas empresas, achou-se em breve sobre as águas do Tejo, prestes a levantar o ferro. Pedro Álvares Cabral, senhor de Azurara e alcaide-mor de Belmonte, foi o escolhido para seu capitão-mor. Segundo os historiadores, tinha ele o cunho, que caracteriza os homens empreendedores, e por isso não desmentiu o conceito, que de suas qualidades se fazia, entregando-lhe uma das mais importantes armadas, que saiu do Tejo, cuja missão gloriosa devia eternizá-lo nas páginas da história de um reino e também nas de um império, que ainda um dia serviria de abrigo à monarquia bragantina!

A partida de Cabral foi honrada com todo o esplendor e pompa de uma festa. “Era”, diz um escritor nacional, “um belo dia de domingo. O sino da catedral batia grave e solene; em suas modulações festivas parecia anunciar de antemão as cenas altamente dramáticas, que dentro em breve se deviam passar além do Atlântico, nas férteis regiões do Novo Mundo. Invocando o auxílio dos céus, reuniu o rei D. Manuel no começado mosteiro de Belém, todos os grandes de sua corte. Admitiu em sua tribuna o ilustre capitão-mor e o conservou ao pé de si por todo o tempo da missa, que solenemente se disse, achando-se pendente do altar o estandarte real da ordem de Cristo. Pregou o bispo de Ceuta, que depois foi de Viseu, D. Diego Ortiz, castelhano de nação, que acendeu nos ânimos os desejos de partilhar dos grandes perigos, a que se iam expor esses atrevidos navegantes e louvando e agradecendo a quem tomara o comando da esquadra em tão importante missão.

Acabada a cerimônia religiosa, bento o chapéu, que mandara o papa, e que o rei colocara por suas mãos na cabeça de Cabral, e entregue a bandeira da cruz da Ordem de Cristo ao ilustre capitão, dirigiram-se todos para as margens do Tejo. Lisboa então apresentou um desses espetáculos faustosos, que raras vezes oferecem os povos, em que as lágrimas e soluços da saudade se misturavam com os risos e vivas, que retumbavam nos ares em aclamações.

Soprava fresca e amiga aragem, e enfunando as velas da vistosa esquadra, levou-a mar em fora, e em breve achou-se engolfada no imenso Oceano.

No dia 21 de abril de 1500 topara a esquadra sinais de terra em mares desconhecidos, e no dia 22, ao cair da noite, o grito de — terra — que retumba a bordo das naus!... Era a serra dos Aimorés, que erguia uma das suas cem cabeças além do grêmio do trovão, para receber esse nome de Monte Pascoal, que em respeito ao oitavário, lhe pôs o capitão-mor da famosa esquadra; era essa terra, que tão bela e majestosa surgia como por encanto do sepulcro do sol, e que mereceu ser chamada Terra da Vera Cruz; era esse porto, onde as naus ancoravam e onde pagava Cabral no nome que lhe dava, a segurança, que ele lhe oferecia.

Neste século tão transcendente pelos seus descobrimentos geográficos, imprimia a religião o seu cunho em todos os acontecimentos extraordinários; assim Cabral, tomando posse da nova terra para a coroa portuguesa, contentou-se com hastear uma cruz, apoiada no escudo das quinas, simbolizando em seus abertos braços a conquista pacífica da terra, que descobria. O incruento sacrifício da missa santificou as praias, manchadas pelo sangue da antropofagia, como outrora o sacrifício do homem Deus remiu a Terra do pecado da desobediência do primeiro ente, e a voz divina do Evangelho troou das praias de Porto Seguro às extremidades de um império, que repousava nas entranhas fecundas de três séculos.

Despachando Gaspar de Lemos em uma de suas naus, enviou Cabral a seu rei a nova do descobrimento, e, saudando pela última vez a terra, que descobrira, aproa para o Oriente, e abre as suas velas às brisas do Oceano.

A notícia do descobrimento encheu o reino português de alegria, e sucessivas esquadras foram enviadas para o reconhecimento de suas costas e magníficas baías. Nessa época o povo português não se media pelo seu número; pequeno em quantidade, era grande e heróico nas armas, e empreendedor e ousado nas conquistas. Com desmarcada ambição desejava possuir mais do que podia conservar; queria avassalar a Ásia, conquistar a África, apossar-se da América Meridional, devassar todos os mares, revistar todas as ilhas, que lhe apareciam todos os dias, como que surgindo do seio das ondas, quais a ilha dos Amores, e sem gente para conservar-lhe a posse, se contentava com plantar o marco das quinas vencedoras, coroadas com o estandarte do cristianismo, símbolo da fé.

Entretanto as esplêndidas vitórias, obtidas no Oriente, a conquista de tantas cidades asiáticas, importantes pelo seu tráfico, afamadas pelas suas riquezas, e célebres pelos seus nomes, a extensão, que ganhava o comércio naqueles ricos empórios, absorvia-lhe toda a atenção. O Brasil, apenas conhecido por suas vastas florestas e seus povos bárbaros e errantes, não mereceu para logo a atenção desses guerreiros, ávidos de glória, que nenhuma fama viam nessas vitórias, alcançadas na luta com tribos selvagens, que só podiam opor à resistência das armas de fogo e à tática militar as suas setas; que só tinham por trincheiras os troncos de seus bosques, e que por todo o comércio com os naturais só tinham a permuta das insignificantes produções da indústria ligeira pelo pau-brasil e alguns animais; e pois o Brasil ficou por mais de trinta anos como que esquecido, servindo apenas de interposto à navegação da Índia.

O reinado de Dom João III marcou nova era ao Brasil; mais sagaz do que seu pai, compreendeu a importância da possessão americana; viu a cobiça das nações estrangeiras tentando estabelecer-se nas suas férteis plagas, e tratou de assegurar o seu domínio à Coroa portuguesa. Dividiu-a em capitanias hereditárias e como recompensa de serviços feitos na Índia, procurou cercá-las de um não-sei-quê de prestígio.

Então se formaram úteis estabelecimentos, a que correspondeu e animou a fertilidade da terra; fundaram-se aldeias, que passaram a ser cidades e depois capitais de ricas províncias, e chamaram-se as tribos bravias e errantes à civilização. A imprudência de alguns donatários despertou em muitas nações o amor da independência, e o grito da liberdade foi o brado de guerra; muitas dentre elas desapareceram à espada do europeu trocando de bom grado a escravidão pela morte, outras menos belicosas se submeteram, fundindo-se na raça dos conquistadores e perdendo com o seu tipo fisionômico a sua própria nacionalidade.

Inteirado o governo português da felicidade da colônia e dos réditos que auferiam os seus donatários, procurou fazê-los reverter em benefício da Coroa e restringir o poder discricionário, que delegara a seus capitães-mores, e uma brilhante expedição confiada a Tomé de Sousa, nomeado governador-geral do Brasil, tocou as praias baianas, trazendo o gérmen de uma nova povoação, capital da colônia. A necessidade da conversão dos indígenas não ficou ainda adiada, e missionários jesuítas cheios de zelo e piedade, compenetrados de sua missão, ardentes de fé, vieram trazer às brenhas do Novo Mundo a luz do Evangelho.

A pompa do desembarque chamou a atenção, despertou a curiosidade dos indianos, que viviam nas imediações das ruínas da cidade de Coutinho, fundada sobre os crânios ensangüentados de seus irmãos. A expedição desembarcou com magnificência, precedida do glorioso símbolo da religião e do triunfante estandarte das quinas, saudada pelas salvos da artilharia, e os arcos e as setas dos indígenas caíram a seus pés em sinal de paz e amizade. Ao som do órgão sagrado, que eles ouviam pela primeira vez, aos cânticos místicos cujas vozes subiam envoltas em nuvens de incenso, e que escutavam como que encantados, assistiram à missa do Espírito Santo na capela de secas palmas, que ajudaram a levantar. Tomé de Sousa aproveitando tão felizes manifestações, tentou, abraçando o conselho do velho Caramuru, que ainda vivia entre eles, ao lado da sua Paraguaçu, abrir os alicerces da nova cidade de S. Salvador, e, enquanto assim procedia, começaram também os jesuítas a edificação de seu colégio e magnífica igreja e com ela a pregação evangélica. Os jesuítas tinham por vice-provincial a Manuel da Nóbrega, um dos padres mais instruídos da companhia, descendente de família ilustre, e que desgostoso das honras e pompas da sociedade passara aos desertos da América, e buscava a solidão das feras e dos rudes selvagens. Pouco depois figuraram outros e entre eles Anchieta, e para adiante Vieira, o apóstolo de liberdade americana, e todos eles dignos discípulos de Santo Inácio.

Como apóstolos do Novo Mundo, eles abandonaram a comodidade de seus conventos e vieram experimentar as privações amargas sem excetuar o próprio martírio... Que luta renhida, prolongada e sempre gloriosa com os primeiros colonos, para manterem ilesa a liberdade dos filhos das florestas! Que de obstáculos para chamarem nações inteiras ao grêmio do cristianismo! E que trabalhos para implantarem a civilização no Novo Mundo, fundando pobres aldeias, que são hoje florescentes cidades.

Antes dos jesuítas intentaram os religiosos franciscanos a conversão dos indígenas, mas seu trabalho foi empregado com mais constância, do que feliz sucesso. Os jesuítas não tiveram somente que lutar com os indígenas, mas ainda com os primeiros cristãos, que vivendo em contato com os indígenas não só não lhes transmitiram seus costumes, usos e crenças como até adotaram os desvarios de sua existência errante; não só não estigmatizaram a antropofagia, como que animavam as suas guerras, acendendo ódios e soprando discórdias entre as tribos com o fito de lhes comprarem os prisioneiros. Em vão o Papa Paulo III declarou por uma bula, que havendo os índios nascidos para a fé como verdadeiros homens, e não estando privados nem devendo sê-lo de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, não deviam ser reduzidos à escravidão. Que importava, porém, que o templo se erguesse levantado pelas mãos dos fiéis, que o sino bradasse do alto da torre, e majestosos sons rolando no espaço com seu convocar de paz chamassem ao grêmio do cristianismo as almas nodoadas do pecado? Que importava, que a voz do Evangelho soasse eloqüentemente com o acento da verdade e da inspiração, se a irreligiosidade se levantava como um gigante, alardeando de suas forças!

Sublime, contudo, foi a missão dos jesuítas pela mesma dificuldade de seu triunfo; mais preclara a sua vitória nascida de seus renhidos e reiterados combates. A cruz selada com o sangue do divino mártir, era a seu labro; a voz eloqüente do Evangelho eram as suas armas, e a roupeta sobreposta muitas vezes aos cilícios, que lhes maceravam as carnes, era o seu uniforme. Compreendiam e faziam-se compreender dos indígenas; por isso que estudavam a linguagem do Brasil, que chamavam grego, admirando-a por sua delicadeza, cópia e docilidade, por suave e elegante, e os ensinaram a ler. Desde então as florestas retumbaram com prédica do Evangelho, narrando estrondosos e maravilhosos sucessos da religião, e os Brasis, acostumados a ouvirem em sua língua os cantos da guerra e da vingança ou as endeixas do amor, entusiasmaram-se com as hosanas e hinos, que nela entoavam tão eloqüentemente os novos apóstolos ao Deus da Eternidade, e seus joelhos se dobraram reverentes, e o Senhor ouviu as suas orações.

Fundaram numerosos colégios, cujos edifícios ainda hoje atestam os seus esforços e constância, atentas as dificuldades da época; chamaram para eles os moços, que mostravam aptidão para o estudo, e principalmente os que mais queda tinham para a língua geral; por toda a parte levantaram igrejas, e como verdadeiros obreiros da vinha do Senhor as fabricavam por suas próprias mãos; por toda a parte ofereceram exemplos das maiores abnegações das grandezas do mundo e não buscando mais do que encher a sua missão de paz e regeneração, derramaram a água do batismo por cima de milhares de cabeças, e superando as mais árduas dificuldades com a perseverança dos mártires, deram-se por bem pagos com a conversão dos índios à fé, com iniciá-los no conhecimento de Deus, com conduzi-los à prática das virtudes. Bem alto falaram por eles os exemplos do desprezo dos bens terrestres, os atos de caridade praticados à cabeceira dos moribundos, consolando-os com palavras cheias de unção, prometendo-lhes nova existência, anunciando-lhes dias de eterna salvação. Com eles foi a luz do Evangelho mais poderosa, que a do astro majestoso, que se ostenta nos trópicos fulgores; rasgou o véu das ínvias florestas, escurecidas pelas sombras dos séculos, ensopadas do sangue ainda quente e fumante dos festins da antropofagia; penetrou nas cavernosas brenhas cheias de supersticiosas recordações, em que ainda ecoavam os sons surdos, roufenhos, confusos dos maracás de seus adivinhos; desceu ao som da música suave, celeste, divina da harpa e do anafil, do pandeiro e da flauta pelas torrentes caudalosas de seus rios e atraiu às suas margens as hordas devastadoras, realizando no Novo Mundo o que a fábula fantasiara no velho hemisfério, mais bela em sua harmonia, do que a voz das membris de seus bardos, mais poderosa, que os sons do boré de seus guerreiros e mais misteriosa, que o sussurro do maracá de seus pajés.

Reinavam em suas aldeias os dias de paz, as festas da alegria, a satisfação do bem-estar e bonança da idade de ouro.

Levavam pelos desertos os índios convertidos, para que atraíssem os que vivam na rudeza da ignorância. Por meio de presentes e mimos de pouco valor, mas que para os índios eram de apreço, os acariciavam, principiando por ganhar a amizade de seus chefes. Formavam depois aldeias, que deixavam sob a guarda e vigilância de missionários, que os preparassem para a vida civil e religiosa, impedindo-lhes a comunicação com os colonos, para que evitassem os abusos e vícios de que estava afetada a sociedade.

Se a guerra se ateava entre os colonos e os índios, eram os padres os primeiros medianeiros, que se apresentavam, e poupavam a efusão de sangue, já adoçando a ferocidade dos conquistadores, com as máximas de paz de Jesus Cristo, já aplacando a vingança dos índios prejudicados em sua liberdade e independência. Daí esse predomínio, que adquiriram sobre todas as tribos, para lhes imporem essa tremenda polícia, que os contemporâneos condenaram, mas que a experiência confirmou, como a mais apta para a sua civilização.

A reação foi terrível; a soma dos interesses prejudicados pela missão dos novos apóstolos levantou-se contra eles, e a luta renhida, dura, atrevida começou entre os jesuítas e os colonos, entre a liberdade dos índios propagada por eles, e o seu cativeiro advogado e exercido por estes. Em vão os breves apostólicos fizeram conhecer às consciências as mal fundadas bases, em que se estribavam; em vão as cartas régias, os alvarás com força de lei das cortes de Lisboa e Madri procuravam proteger a liberdade dos miseráveis índios.

Os jesuítas, conquanto advogassem uma causa tão justa, não podiam todavia acobertar-se das acusações, que se levantavam contra eles. Com o tempo adquiriram imensa riqueza, ganharam suma consideração, nascida também em parte de seus talentos e estudos, no meio da total ignorância das mais elevadas classes da sociedade, e depois o discricionário poder, que, crescendo, incutiu sérios receios.

A paz, que desfrutava a colônia, apenas perturbada em alguns lugares pela presença de ousados contrabandistas, que eram energicamente repelidos, foi perturbada pela cobiça européia, que tomou respeitável atitude. Tornou-se o Brasil o teatro de porfiada luta, de gloriosas batalhas, em que todas as raças do país, como que se disputavam, abrasadas no amor da pátria, igual quinhão de glória na partilha dos louros da vitória.

Os franceses, que por muitos anos traficaram com os indígenas, e vinham de tão longe trazer os artefatos de sua ligeira e fantástica indústria, e carregar seus navios dos produtos do solo brasileiro, viam com inveja o estabelecimento dos portugueses, que ganhava incremento, e que se enraizava na terra americana; e pois em França se organizavam sucessivas expedições. Ganhando a aliança dos tamoios, procuravam os franceses fundar na margem da baía de Niterói, conhecida de seus primeiros habitantes pelo nome de Guanabara, o novo reino da França antártica, tendo por capital a Henrivile, cidade projetada em honra de Henrique IV, e asilo dos sectários da doutrina de Calvino. Alcançando a amizade dos tupinambás, buscaram estabelecer colônias agrícolas na ilha do Maranhão.

Os portugueses, ciosos da partilha, que lhes fizera o Papa Alexandre VI, buscaram também coligar-se a outras tribos não menos animosas e guerreiras, e repelindo-os, fundaram essas cidades, que tão rapidamente floresceram, e que são hoje a capital de uma próspera província, e a corte de um rico império.

Já a esse tempo o cetro do império bragantino tinha passado com a morte de D. João III às mãos infantis de D. Sebastião, que, apenas aclamado rei, procurou ao estrépito das armas a glória de seus antepassados nos areais da África. Foi a fortuna adversa, e a derrota de Alcacerquibir envolveu-o com os seus combatentes entre o tropel dos feridos e moribundos, e finou-se deixando a nação mergulhada no pranto, envolta no luto e depois sujeita a duro e estranho cativeiro. Despenhado de seu apogeu de glória veio Portugal sujeitar-se ao cetro dos reis da Espanha. Vergou também o Brasil a cerviz colonial ao poder despótico dos Filipes. A um apelo da mãe-pátria o gigante do berço do Amazonas levantaria o brado da independência e ofereceria um refúgio à monarquia portuguesa; seria então um novo império, capaz de arrostar o furor da heróica Espanha, como provou dali a pouco na gloriosa luta com a ativa Holanda.

Ah! E que páginas brilhantes não nos oferece agora a História! No reino de além-mar duas gerações se sucediam na expectativa da realização daquele mito criado pelos espanhóis da existência do rei encoberto, da próxima volta do real guerreiro, sem que as décadas de Barros, ou os cantos de Camões lhes recordassem os antigos feitos, e lhes reanimassem o extinto fogo do amor da independência nacional. Não assim o Brasil, frágil colônia, que apenas contava século e meio de existência, ou menos ainda, se preferirmos e época de sua povoação à do seu descobrimento, e ei-lo que sem contar os seus guerreiros, sem medir as suas forças se alevanta como um gigante e traz por trinta anos (1624 a 1654) uma luta gloriosa, combatendo pela sua integridade contra a conquista holandesa! Em vão o desempara a Europa, que o deixa sem socorros; em vão as potências de além-mar celebram armistícios, que suspendem as armas no meio da vitória: a guerra continua acendida pelo amor da pátria; a vitória coroa os seus esforços nas Tabocas e nos Guararapes, e o mundo testemunha os feitos de valor e heroicidade, repetindo ainda hoje com assombro os nomes dos Vieiras, dos Camarões, dos Negreiros, Henrique Dias e Rebelos!

Era na verdade um espetáculo novo ver como um povo ainda pequeno soubera tão nobremente manter a integridade da nacionalidade brasileira!

Exemplo às gerações vindouras, que jamais consentiram que se retalhe a herança sagrada!

Já a esse tempo Portugal tinha recuperado a sua independência, e D. João IV se assentara no sólio dos Afonsos, mas o cavalheirismo e a heroicidade dos antigos tempos fanaram-se para sempre. Às aclamações patrióticas de alémmar responde o Brasil com a sua generosa adesão, e em São Paulo deu o grande Amador Bueno uma prova de abnegação pouco comum, rejeitando o cetro e a coroa, que lhe ofereciam os seus compatriotas, exaltados pelos espanhóis, conquistando assim, em paga de sua fidelidade a admiração da posteridade.

Sob a regência do infante, depois D. Pedro II, redobraram de intrepidez os ousados paulistas. Infatigáveis armaram bandeiras, e prevenidos dos aprestos necessários partiram do Taubaté. Percorreram as andaimosas Campinas, transpuseram as brenhosas serras, vararam as ínvias florestas, e descobriram assombrosas riquezas. Nada os deteve; armados opuseram resistência a resistência, e travaram combate de morte junto ao rio, que desde então tomara a denominação de Rio das Mortes, e percorrendo os sertões do Rio Grande do Sul, de Goiás, e de Mato Grosso, dobraram a cerviz até ali indomada do guaicuru, e conduziram-no prisioneiro, ou antes escravo à sua habitação. Mais tarde pugnaram com os Espanhóis, e arrasaram os estabelecimentos do poqueri e itutu, e recolheram-se triunfantes a seus lares, não tendo por guias em suas excursões mais do que os píncaros altíssimos das Cordilheiras, as torrentes do deserto, e as constelações do mais brilhante dos céus.

Enquanto os paulistas exploravam as minas e colhiam os frutos de suas arriscadas excursões, os pernambucanos metralhavam as fortificações da famosa república africana, formada de negros fugidios, e que durante a guerra da invasão holandesa havia ganho incremento no meio dos bosques de palmeiras, com uma população de vinte mil habitantes. O chefe conhecido pelo nome de Zumbi, mostrando que o valor pertencia a todas as raças, preferiu a morte à escravidão e precipitou-se de uma eminência; os poucos companheiros, que foram poupados pelas balas inimigas, o imitaram; os velhos, as mulheres e crianças ficaram prisioneiros e abrilhantaram a marcha triunfal do exército vencedor, e foram pouco depois vendidos como escravos.

Durante o triste reinado de D. João V foi o Rio de Janeiro atacado por sucessivas esquadras francesas. A derrota, que sofreram as tropas de Duclerc nas ruas da cidade, trouxe ao general francês a necessidade de depor as armas, entregando-se com os poucos soldados, que lhe restavam, prisioneiros de guerra. A covardia de seu assassinato em sua própria prisão, motivou o armamento de uma nova expedição composta de 15 vasos e 4.500 soldados, que ao mando de Duguay-Trouin forçaram a barra da baía de Niterói, atacaram, e ajudados dos próprios elementos ganharam a cidade, entregue pela pusilanimidade de seu governador os seus próprios recursos, e resgatada depois tão ignominiosamente a peso de ouro, quando toda a população do interior se alevantava como um só homem, corria às armas e marchava aceleradamente para retomá-la ao intrépido e ousado inimigo. Debaixo da influência do reinado monacal, a Inquisição estendia as suas garras sanguentas às colônias portuguesas de além-mar, e os navios transportavam para o reino as pessoas suspeitas de judaísmo. Nada se poupava. O sexo e a idade eram atropelados ainda nas menores considerações, que lhes dá a sociedade. Míseras donzelas e velhos decrépitos iam, levados de tão longe, a figurar nas bárbaras e atrozes cenas dos autos-de-fé, que se celebravam na metrópole em nome da religião e sob a proteção de um governo nimiamente estúpido e crassamente bárbaro.

As bandeiras dos paulistas voltavam triunfantes às suas povoações, trazendo prisioneiras as tribos indianas, e curvados aos despojos das ricas minas de ouro, que tão ousadamente descobriam, e para maior avidez da cobiça humana, juntaram ao descobrimento do ouro a achada de diamantes. Que de episódios interessantes nos oferecem as páginas da história desses atrevidos aventureiros! Que de perigos, que afrontaram em busca dessas fictícias riquezas, que iam pejar os cofres de além-mar, enriquecer a metrópole, que pródiga as desperdiçava em construções de edifícios suntuosos e monumentais, que em vez de serem inspirados por idéias humanitárias, que realizassem os santos preceitos do cristianismo, serviam apenas de abrigo a ordens religiosas esquecidas de sua missão tão digna da humanidade.

No reinado de D. José I inaugurou-se nova política para o Brasil. O gênio perspicaz do grande ministro Marquês de Pombal, coloria as medidas de prevenção tomadas contra as idéias da emancipação da colônia, que como um pesadelo turbava o sossego da mãe-pátria e interrompia-lhe os brilhantes sonhos de sua esperança e com rara diplomacia as dava sob a ilusão de proteção. Com a extinção da companhia dos padres de Jesus apagou os primeiros lampejos da nacionalidade americana, que ela promovia, e despovoou essas aldeias, que transbordavam de população empregada na indústria agrícola, com seus artistas tão célebres em todos os ramos das belas-artes, e que possuíam na língua guarani uma tal ou qual literatura, e ao passo que parecia considerar o talento brasileiro, chamando para a metrópole os moços, que mais se distinguiam pela sua aptidão para as letras e ciências, arrancava à terra diamantina os filhos, de que se arreceava pelas suas luzes e conhecimentos; proibia o estabelecimento de oficinas tipográficas, e mandava ordens positivas para a capitania de São Paulo, a fim de que fossem embaraçadas as aplicações do estudo, a que tão inclinados se mostravam os seus naturais e mudando a capital do vice-reinado para o Rio de Janeiro, lançou no Pará os fundamentos de uma nova capital mais próxima da mãe-pátria, e que necessariamente devia contribuir para contrabalançar a união das capitanias brasileiras, caso ficasse permanecendo o Rio de Janeiro como sede das capitanias do Sul.

O Brasil havia avançado na senda do progresso, graças à fertilidade do seu solo e às riquezas de suas minas auríferas e diamantinas, e a armada portuguesa teve de novo de proteger o seu comércio, acompanhando as suas frotas além do Atlântico, e as alfândegas estrangeiras recebiam as produções brasileiras.

O reinado de Dona Maria I oferece acontecimentos, que enegrecem as páginas da história. Os espanhóis apoderaram-se da ilha de Santa Catarina e cometeram as mais indignas barbaridades, e o governo português, firmando o vergonhoso tratado de S. Ildefonso, cedeu a colônia do Sacramento sobre o rio da Prata em troco de mesquinho terreno ao oriente do Uruguai. A Europa era o teatro de um grande drama, cujas peripécias sanguinolentas se sucediam rapidamente. A revolução francesa abriu suas asas negras e enlutou o solo da França; converteu-lhe o trono em guilhotina e tingiu-a com o sangue de um rei piedoso, vítima do ateísmo, e a liberdade em delírio entoou os hinos de sua vitória; aos coros se mesclavam os soluços de tantos mártires, de tantos ilustres e venerandos varões imolados à impiedade. A lava revolucionária invadia todos os pontos do globo; agitava todos os ânimos e o ruído da queda de tantos tronos repercutia-se aquém do Atlântico... A América Setentrional levanta o brado da independência e nos mares de Cristóvão Colombo brilha o pavilhão estrelado de mais uma nação, e o mundo ouve com admiração o nome de Washington. A sombra do geral descontentamento dos habitantes da capitania de Minas Gerais, avexados de tributos, e que ainda iam ser agravados com a derrama da contribuição do ouro, germinaram as idéias revolucionárias. O Brasil via com inveja as colônias inglesas inscritas no catálogo dos povos livres e suspirava por sua emancipação; mas traídos os conspiradores, que se compunham de pessoas gradas e que pertenciam às principais famílias das capitanias de Minas Gerais, foram presos, e trazidos ao Rio de Janeiro. Julgados e pela maior parte condenados à morte, comutou-se-lhes a pena em degredo, com exceção de Joaquim José da Silva Xavier, chamado por antonomásia Tiradentes. O corajoso mártir, não querendo comprometer os seus companheiros de infortúnio, expiou no patíbulo a generosidade de atribuir a si somente todo o plano da malograda revolução. E enquanto o sangue do mártir da liberdade ensopava o solo brasileiro, e as vítimas da tirania colonial iam exalar o último suspiro nos desertos africanos, suspendia-se e aniquilava-se a indústria fabril, que começava a despontar no país. Para cúmulo de males uma seca terrível abrasou as províncias do Norte e a fome com todos os seus horrores assolou as povoações dos sertões.

Entremos no nosso grande século tão cheio de extraordinários acontecimentos.

O governo do príncipe regente D. João VI, abriu ao Brasil uma nova era de prosperidade, de riqueza e de liberdade, de comércio e franquia dos portos, e trouxe a iniciativa de sua independência. O braço hercúleo do gigante Ajácio dominara a revolução francesa a seu bom grado; ébrio das vitórias, que lhe conquistavam as armas de suas legiões vencedoras, Napoleão, segundo a sua própria frase, corria a cavalo toda a Europa; os séculos das gerações passadas contemplavam com admiração e espanto a sua imensa glória, e o vôo triunfante e vitorioso de suas águias imortais. Seu vulto gigantesco como que enchia o universo, e sua espada dividia os estados, traçando o seu destino no mapa político da Europa. Portugal, recusando fechar seus portos à bandeira britânica, incorreu no desagrado do rei dos reis e as legiões francesas transpuseram os Pirineus, e suas trombetas, como as de Josué, vieram ressoar às portas da velha Lusitânia. O príncipe regente previu as conseqüências de uma resistência desigual; a proteção da Inglaterra não se media em terra por si só com as armas francesas, ela apelava para o Oceano, teatro de suas glórias e piratarias, onde ostentava o seu desmensurado poder naval. O príncipe regente viu nas terras da América Meridional o refúgio seguro da monarquia bragantina, e, abandonando o sólio dos Afonsos, veio buscar o asilo, que lhe ofereciam — estas regiões do ouro e dos diamantes —, estes climas saudáveis e amenos —, estas montanhas sempre verdes, onde não ecoavam os trovões da guerra.

Embarcou a família real no meio de geral consternação; o povo com os olhos rasos de pranto, com o coração traspassado de saudade contemplou mudo e estupefato a partida da esquadra portuguesa comboiada pela inglesa.

Ao princípio desencadeia-se a tempestade; o tufão empola a superfície das águas, joga as naus e ameaça arremessá-las às praias. Dir-se-ia, que o Tejo se opunha à sua partida; esse Tejo tão contrário do que era antes quando Cabral soltava as suas velas no meio das saudações alegres e das salvas da artilharia, e partia para o descobrimento de um império; então Camões embocava a tuba e eternizava o nome português. Afinal as ondas se acalmam e aos tufões sucedem as brisas, que sopram enfunando as velas às ligeiras naus e o mar se abre em flores sob suas quilhas... Então a pátria desaparece aos ilustres viajantes.

À tarde desse dia volta o temporal e agita de novo o Oceano. O vice-almirante inglês dirige-se ao príncipe regente e roga com instância, que se passe para a nau de seu comando, onde estaria em maior segurança. O príncipe regente parece hesitar entre o susto, que lhe assalta o coração e o dever de não abandonar a sua nau, mas um menino, que contava apenas quinze anos e que se achava a seu lado, mudo espectador das peripécias, que se reproduziam ante seus olhos, como que acorda de seu letargo à voz da pátria, que lhe vibra no coração exclama: “Senhor! Se a má fortuna nos forçou a abandonar os portugueses, por amor deles mesmos e para evitar o derramamento de sangue tão preciosos em luta eminentemente desigual, o nosso dever, a nossa honra exigem, que nos não separemos dos restos de Portugal no meio dos perigos do oceano; o nosso destino está ligado à nau que nos conduz; deixá-la seria tornarmo-nos culpados de grave injúria feita à nação!” Era o príncipe real, que assim falava, aquele mesmo que devia passar à posteridade como fundador do império brasileiro, e que nesse rasgo de patriotismo já patenteava a heroicidade de sua alma e destruía a incerteza, em que vacilava seu augusto pai, o príncipe regente.

A Bahia gozava do direito da progenitura, e coube-lhe portanto a honra da hospedagem. A magnífica baía de São Salvador abrigou as naus, que, como as de Pedro Álvares Cabral, vinham de tão longe buscar um asilo para a monarquia lusitana; mas o Rio de Janeiro estava destinado a ser a sede do império americano, e o berço da monarquia brasileira. A passagem do príncipe regente pela Bahia ficou todavia eternizada nos fastos nacionais como se as suas naus ao tocarem no primeiro porto brasileiro devessem romper essa muralha de bronze, que fechava as portas do nosso país ao comércio e navegação de todas as nações. Assim estalou o primeiro elo dos grilhões coloniais; era a independência da pátria, que dava o seu primeiro passo na senda da civilização e do progresso. O dia 7 de março de 1808 foi de grande júbilo para os habitantes da cidade fundada por Estácio de Sá, que regou-lhe os alicerces com o sangue de seu martírio, cônscio talvez de sua futura grandeza; a magnífica baía do Rio de Janeiro alojou em seu vasto seio a esquadra real, e desde esse dia o Brasil deixou de ser uma colônia, pois tinha em si a sede de uma das mais antigas monarquias da Europa.

Outro governo mais ativo teria dado ao nosso país uma fase inteiramente nova; tomaria por si mesmo a iniciativa nos melhoramentos materiais e na difusão das luzes; a corte, porém, deixando a velha capital do império lusitano, transplantou para o virgem solo da América essas velhas instituições eivadas de absolutismo, repletas das reminiscências dos tempos feudais, e inteiramente cheias de inconveniências para uma nação nova, que despontava com o grande século décimo nono. Ainda assim, o pequeno impulso encontrou no gérmen de grandeza, que o país continha em si, um rápido incremento para o seu progresso e bem depressa a pátria compreendeu as suas necessidades; comparou o que possuía com o que lhe faltava, e de olhos fitos nas nações livres ambicionou a conquista dos direitos, a que tinha jus.

Na pessoa do príncipe real D. Pedro se fixaram as vistas dos brasileiros; viam-no identificado com a causa nacional; o destino lhe dera um berço em plaga estrangeira; mas o Brasil possuía na família do jovem príncipe penhores, que lhe faziam palpitar o coração de amor por esta terra americana, que já era também o berço de seus filhos, e cuja grandeza inspirava-lhe a alma, como que criada para nobres empresas.

O tempo da tirania passara; o século décimo nono tinha nascido bafejado pelo gênio da filosofia e da liberdade; bem depressa o brado da liberdade retumba na Península Ibérica; a explosão passa o Atlântico e percorre, não como um eco longínquo, mas como uma faísca elétrica, que se comunica de província em província à capital do novo império. O reino irmão exigia uma constituição, e proclamava-a e o Brasil, acendendo as suas proclamações, anteviu na carta constitucional o auto da sua independência.

A adesão, que encontrava em todas as classes da sociedade brasileira o grito heróico da mãe-pátria, achava nos conselhos do rei uma contrariedade tenaz que se apoiava nas velhas crenças trazidas de além-mar; mas a alma grande do príncipe D. Pedro I gostava de seguir os impulsos generosos, e as simpatias nacionais encontraram nele o alvo, que tanto necessitavam para marchar de um passo firme à conquista da emancipação nacional.

A elevação do Brasil à categoria de reino unido ao de Portugal e dos Algarves, alguns anos depois da trasladação da sede da monarquia para as plagas americanas, foi um verdadeiro anacronismo, pois deveria sê-lo no momento, em que se abriram os seus portos ao comércio e navegação das nações; era contudo a transição rápida entre a colônia e o império.

Foi curto mas intenso o período do reinado. Os acontecimentos sucediam-se aceleradamente, previstos pelo barômetro da política de além-mar; a guerra acendia-se na banda cisplatina e ensangüentava as campinas do sul; as idéias de independência e de democracia germinavam à sombra do cetro real, e Pernambuco enfim levantou o brado da revolta. Não era ainda tempo para o triunfo da causa nacional, e os protagonistas desse drama político expiaram no patíbulo o seu entusiasmo pela causa de emancipação!

A Europa tinha entrado nas doçuras da paz por tanto tempo interrompida; o gênio das batalhas, o leão da Córsega se finava sobre um rochedo estéril perdido no meio do Oceano; e Portugal, no tirocínio do governo representativo, reclamava a presença da corte portuguesa; D. João VI não hesitou mais e de novo sulcou aqueles mares, que o tinham visto entregue ao sopro das tempestades com as relíquias da monarquia lusitana, como Moisés o futuro capitão dos hebreus, flutuando sobre um frágil batel de vimes às ondulações do Nilo.

Ficara no Brasil como seu regente o príncipe D. Pedro; era o legado digno de um rei a um nascente império; suas palavras de despedida, foram como que uma saudação à independência da nova pátria de seu augusto filho.

A independência iniciada desde o dia de liberdade do comércio e da navegação, estava feita; mais um passo e ela se consumaria para todo o sempre. Lá se ia a monarquia portuguesa deixando uma bela vergôntea junto à cruz, que plantara Pedro Álvares Cabral. Então José Bonifácio de Andrade e Silva proclamava à face da Europa, no próprio seio da Academia Real das Ciências de Lisboa, as puras intenções do Brasil e de seu futuro imperador, e o objeto de sua viagem às regiões do Novo Mundo:

“Muito temos já feito, senhores”, dizia ele, “mas muito nos resta ainda por fazer. Bem desejara eu concorrer de perto para pordes em obra o que na vontade já trazeis executado; mas é necessário apartar-me para longe e descontinuar as lições, que de vós tenho recebido. Consolo-me ao menos com que ainda dos sertões da inculta América forcejarei por ser-vos útil com os frutos tais quais do meu pobre engenho e talento, se em mim os há. Se qual outro Tales ou Pitágoras não puder introduzir as ciências do velho Egito em a nova Grécia, lidarei ao menos por imitá-los de longe. Consola-me igualmente a lembrança de que da vossa parte pagareis a obrigação, em que está todo o Portugal para com a sua filha emancipada, que precisa de pôr casa, repartindo com ela das vossas luzes, conselhos e instruções. E, que país este, senhores, para uma nova civilização e para um novo assento de ciências! Que terra para um grande e vasto império! Banhadas as suas costas em triângulo pelas ondas do Atlântico; um sem-número de rios caudais e de ribeiras empoladas, que o retalham em todos os sentidos, não há parte alguma do sertão que não participe mais ou menos do proveito que o mar lhe pode dar para o trato mercantil e para o estabelecimento de grandes pescarias. A grande cordilheira, que o corta de norte a sul, o divide por ambas as vastas faldas e pendores em dois mundos diferentes, capazes de criar todas as produções da Terra inteira. Seu assento central quase no meio do globo, defronte e à porta com a África, que deve senhorear, com a Ásia à direita, e com a Europa à esquerda, qual outra região se lhe pode igualar? Riquíssimo nos três reinos da natureza, com o andar dos tempos nenhum outro país poderá correr parelhas com a nova Lusitânia. Consideremo-lo agora pelo lado político, um reino com clero abastado, mas sem riqueza inútil, com poucos morgados, com os seus conventos precisos e com pouca gente das classes poderosas, que muitas vezes separam seus interesses particulares dos da nação e do Estado, de que mercês precisa? Fomentar e não empecer: basta-lhe a segurança pessoal e a liberdade sóbria da imprensa, de que já goza; e uma nova educação física e moral: o mais pertence à natureza e ao tempo. Estas e outras mil bênçãos já vão recebendo e receberá cada vez mais este recente império, pois teve a ventura de haver sido fundado pela sabedoria e magnanimidade do nosso incomparável soberano, cujo nome só por isso passará à mais remota posteridade; e a fundação da monarquia brasileira fará uma época na história futura do universo!” 1

Ainda assim o Brasil não despedaçou os vínculos, que o uniam ao reino irmão e enviou seus deputados às Cortes de Lisboa; longe porém de lhes estenderem cordialmente a mão, os oradores de além-mar iniciaram a luta parlamentar; em breve as hostilidades das Cortes portuguesas contra o reino cisatlântico se patenteara em seus furibundos e irrisórios decretos, e o príncipe D. Pedro recebeu ordens para deixar a capital brasileira.

A consumação do grandioso ato da emancipação política dependia de um fiat; o príncipe D. Pedro o deu naquele mágico e eterno brado, que soltara nos campos de Ipiranga, à hora da véspera, no sempre memorável dia 7 de setembro de 1822. Bem depressa, como de eco em eco, o brado da independência retumbou de província em província, e desapareceram os últimos vestígios da dominação portuguesa ante a vitória das armas brasileiras, que triunfaram da resistência, que encontrara em algumas províncias do Norte. Então o pavilhão auriverde, símbolo da primavera e da riqueza, abrilhantado pela constelação das vinte estrelas, ondulou do Amazonas a Prata, e flutuou nos mares do velho hemisfério como o emblema de um novo povo.

A história da fundação do império tem suas páginas semelhantes à história do reino; quase que se deram as mesmas eventualidades; a guerra com as repúblicas do Prata, e o movimento insurrecional de Pernambuco, com que lutou o reinado de D. João VI, tiveram suas reproduções durante o imperado de D. Pedro I; o imperador, porém, lutou com mais sérios embaraços na fundação da nova monarquia; o rei apenas tivera que copiar ou trasladar as instituições transatlânticas, e de que tão saudosas se mostraram depois as cortes portuguesas, que as chamaram para o reino por meio desses irrisórios decretos, que perdiam a sua força, passando o oceano.

A maior dificuldade dos países grandes e extensos está em bem se poderem constituir; e não são por certo as numerosas assembléias com suas intermináveis discussões de aparatosa eloqüência as mais próprias para legislar sobre leis fundamentais. Em vez de um conselho de Estado, embora de eleição popular, D. Pedro convocou a assembléia constituinte, que de legislativa passou às deliberações, que pertenciam ao Executivo; enfraqueceu-se assim o seu poder, e viu-se ele como que coagido a assumir a ditadura. Recuava, quando um erro não corrige outro erro!

A dissolução da assembléia constituinte foi uma grande falta política, que trouxe graves conseqüências; assim enquanto as províncias do Sul aderiam em suas felicitações oficiais ao ato ditatorial, as províncias do Norte levantavam o pendão da revolta e proclamavam a democracia com as armas na mão; e nem a pacificação das províncias sublevadas, e nem a publicação da constituição, a que o imperador prestou solene juramento e com ele toda a nação, deram mais firmeza ao trono imperial, que parecia vacilar sobre as bases do sistema monárquico representativo. A impopularidade da guerra cisplatina e ainda mais a impopularidade da paz celebrada tão inoportunamente, agravaram a triste situação do seu imperado.

No meio das dificuldades, com que lutava o governo pouco popular do imperador, ouviram-se os brados triunfais da revolução francesa, que destronizara Carlos X; os ânimos entusiasmaram-se com o triunfo do partido liberal, que elevou ao trono da França o representante da família de Orleans, e desgraçadamente os portugueses residentes no Rio de Janeiro procuraram ainda intervir nos acontecimentos políticos e os ódios nacionais como que acordaram ao brado do Ipiranga. Renhida e sangüenta luta ia começar... Por quem desembainharia D. Pedro a sua espada, que refletira os raios de setembro?

Sucessor de D. João VI no trono português, ele tinha abdicado a coroa, que cingira as cabeças de tantos reis célebres, cujos nomes encheram outrora dilatados mares e longínquos países, em favor de sua filha, a princesa D. Maria da Glória, nascida sob o esplêndido céu dos trópicos, na margem ocidental da nossa magnífica baía. O fundador da monarquia americana, o dador da imortal carta constitucional, tão grande nas crises, por que passara o império diamantino, não nivelou-se aos pigmeus da revolução de abril; desceu os degraus do trono com o esplendor, com que o havia subido, e depondo o diadema imperial sobre a cabeça de seu augusto filho adormecido no berço, e deixando-lhe o cetro entre os brincos da infância, recomendou-o à generosidade de um povo, que sempre amara e por quem se retirava saudoso, como D. Luís de Vasconcelos, quando gravara na pirâmide de granito aquela singela mas eloqüente expressão: A saudade do Rio!

“Eu me retiro”, escrevia ele na sua circular, “eu me retiro para a Europa, saudoso da pátria, dos filhos e de todos os meus verdadeiros amigos. Deixar objetos tão caros é sumamente sensível, ainda ao coração mais duro; mas deixá-los, para sustentar a honra, não pode haver maior glória. Adeus pátria, adeus amigos, adeus para sempre!”

Que grandiosa, que nobre abnegação! Um trono, uma pátria, seus filhos, tudo ele sacrificou ao desencadeamento de uma revolução, que podia trazer aos brasileiros as calamidades horríveis e sangüentas da guerra civil!...

Pedro Álvares Cabral, descobrindo o Brasil, abriu de novo aos mares e às brisas as velas de suas naus, deixando-nos apenas sobre a praia uma cruz tosca mas sublime, símbolo da fé do Novo Mundo; D. Pedro, fundando a monarquia à sombra de uma constituição nimiamente liberal, partiu também mar em fora, legando-nos o penhor da integridade do império num menino, que para logo tornara-se o ídolo de todo um povo, “e, ambicionando unicamente a glória”, como diz a augusta imperatriz D. Amélia, “abdicou ainda muito moço duas coroas sem pôr condição nem reserva de alguma utilidade para ele!”.

A revolução de abril se enobrecera com aquele brado sublime e generoso: “Perdão aos iludidos!”. Raio de luz, que brilhara por entre as trevas! O carro porém da revolução não parou; precipitado como por plano inclinado, só deixou de rodar em seu termo; e esse termo deu-lhe a maioridade, bela baliza a tantos devaneios políticos!

Que lutas mesquinhas, quando o futuro da pátria exigia o concurso de todos os seus filhos! Que de recriminações miseráveis, quando a pátria pedia empresas gigantescas, que a tornassem digna do fim, para que a talhara a mão de Deus, e que só serviam para retardar o progresso do país e a educação moral e religiosa do povo! Revoltas sobre revoltas sem uma idéia, sem um princípio, que as coonestassem, vinham quase que diariamente empecer a marcha da administração e desviar os tênues recursos dos cofres nacionais.

Os dois extremos, o Norte e o Sul, as províncias do Pará e do Rio Grande, enfraqueceram-se em lutas tenazes, longas e fratricidas, sonhando com as utopias das democracias sul-americanas; e outras, a seu exemplo, ergueram também por sua vez o pendão da anarquia. Dir-se-ia que o governo da corte pesava com toda a tirania dos tempos feudais sobre essas províncias, que aliás gozavam, como ainda gozam, de instituições meramente democráticas!

A proclamação da maioridade de S. M. I. o Senhor D. Pedro II trouxe a paz ao império, e mais tarde a conciliação dos partidos deu tempo a que os verdadeiros amigos da pátria se entregassem à nobre tarefa de lhe serem úteis, dedicando-se ao seu melhoramento e progresso material e moral, e bem depressa a influência benigna do Império se fez sentir nas repúblicas do Prata. O déspota, cuja existência era um insulto ao século XIX e um aviltamento para toda uma nação, que proclamara à face da Terra a sua liberdade, desapareceu ante a intervenção armada do Brasil, e a vitória inscreveu o triunfo das armas brasileiras nas fortificações de Tonelero, e nas torres de Monte Caseros.

A cessação do tráfico africano, que zombara ante as arbitrariedades do cruzeiro britânico, que só fora vencido pela legislação nacional, e que tão benigna influência promete nos futuros destinos do império, extinguindo para todo o sempre essa chaga negra e hedionda; o incremento dado à colonização, que vai abrindo novos núcleos de povoações, novas cidades, novas províncias, e a catequese pacífica dos Índios a despeito da propaganda histórica contra essas míseras relíquias das tabas brasilienses, são novos incentivos à civilização e prosperidade desta bela e bem fadada parte do Novo Mundo.

À sombra do trono constitucional do esclarecido monarca, que rege os destinos da Terra de Santa Cruz, desabrocham as letras, as artes e as ciências, e ganham incremento.

Ainda o Brasil não passava de uma colônia, avexada pelo cativeiro estúpido, que lhe tolhia os passos na senda do progresso e já seus oradores subiam ao púlpito e voavam ao céu sobre as asas da sagrada eloqüência e da divina inspiração, e já seus artistas eram admirados pelos artistas europeus, e já seus poetas se imortalizavam com suas epopéias americanas; nada faltou à glória da nascente colônia, nem mesmo o martírio pela liberdade nacional, e os nomes de muitos sábios e historiadores tornaram-se conhecidos ainda no Velho Mundo pelas suas investigações e escritos.

A Europa, aplaudindo os esforços, que fizemos para a nossa emancipação política, e patenteando primeiro do que nós mesmos a tendência natural dos brasileiros para as letras, apresentando a nossa história literária como demonstração comprobativa das nossas habilitações, abriu as portas de suas academias e bibliotecas à avidez de nossos compatriotas, e coroou os seus tão dignos esforços.

A proclamação da maioridade do Senhor D. Pedro II foi a aurora do renascimento das letras brasileiras; plêiade de brilhantes talentos cerca o trono do jovem monarca, dado também às aplicações do estudo, e que reparte com os sábios os conhecimentos bebidos nas suas largas lucubrações. Presidindo em pessoa às sessões do Instituto Histórico, anima os amigos das letras, atrai as vistas dos sábios do Velho e Novo Mundo, e ao passo que visa o engrandecimento material do país, leva a pátria à conquista dos louros da inteligência e da glória.

Ainda há pouco os políticos e publicistas diziam do alto da tribuna parlamentar, ou nas páginas da imprensa, com os olhos fitos no futuro: “Tudo no Brasil está ainda por fazer-se!”, e já hoje o engrandecimento do país repele essa proposição, ou condena-a por vaga: os melhoramentos pululam; o vapor rompe a corrente de soberbos rios oceânicos e leva a navegação aos confins do Império; o vagão penetra a sombra das florestas e vara a noite dos túneis, arrastado pelo cavalo dinâmico e o fio elétrico transmite a palavra da civilização através das aldeias dos bárbaros indianos; improvisam-se cidades, e a luz da instrução é derramada com a água do batismo sobre a cabeça bela e inteligente da juventude, esse gigante do porvir, como a chama o poeta nacional.

Brada-se, é certo, contra o egoísmo da época, contra as ambições mesquinhas e interesses individuais, que se antepõem ao amor do bem público; mas a febre das riquezas improvisadas e das opulências fantásticas não ferve em todas as artérias. Há ainda abnegações, patrióticas, santas e nobres, que se regulam mais pelas oscilações do coração, que arde no amor da pátria, do que pelas idéias do cálculo, que se fixam nas imaginações dos que sonham pela realização dos eldorados particulares.

O exemplo! O exemplo! Exigia sempre o sublimo João-Jacques Rousseau, e o exemplo felizmente não nos falta. Dá-o ao imperador, cuja divisa parece ser: “Nada por mim, tudo pelo Brasil!”.
Notas

1 É tão pouco conhecido o discurso histórico de José Bonifácio de Andrade e Silva, donde extraí este brilhante trecho, com que tão pomposamente fecha a sua oração acadêmica, que aqui reproduzirei o começo do mesmo discurso recitado na sessão pública da Academia Real das Ciências de Lisboa em 24 de junho de 1819. Encontram-se por todo esse discurso tantos pormenores sobre a vida de tão ilustrado brasileiro, que sinto não poder dar outros extratos por falta de espaço:

“É esta, ilustres acadêmicos, a derradeira vez, sim a derradeira vez (com pesar o digo), que tenho a honra de ser o historiador de vossas tarefas literárias e patrióticas; pois é forçoso deixar o antigo, que me adotou por filho, para ir habitar o novo Portugal, onde nasci. Assim o requer a gratidão e o ordena a vassalagem; assim o manda a honra, o instiga a saudade e a razão o exige. Depois que deixei na adolescência os pátrios lares da montanhosa mas amena província de São Paulo e me acolhi à Lusitânia, que meiga me recebeu em seus hospedeiros braços, trinta e seis anos são passados. Se almas degeneradas, de que nenhuma terra, por mais civilizada e boa que seja, está exempta, procuraram amargurar por vezes a minha cansada existência, e buscavam, mas em vão, malograr o meu patriotismo e bons desejos, o estudo da natureza e dos livros no seio da amizade, e a voz da consciência, foram sempre o bálsamo salutífero, que cicatrizam estas feridas do coração; cumpre pois deslembrar-me do passado. Seria porém ingrato e desumano, se me esquecera ao mesmo tempo do quanto devo a todos os homens portugueses, e mais que tudo das provas repetidas de amizade e estimação, que sempre me destes, com que generosamente me tenho penhorado, oh! vós nobres e sábios acadêmicos!”