PRIMEIRO LIVRO


TÍTULO I
Do Regedor da Casa da Supplicação


Como a Casa da Supplicação seja o maior Tribunal de Justiça de nossos Reinos, e em que as causas da maior importância se vem a apurar e decidir, deve o Regedor della ter as qualidades, que para cargo de tanta confiança e autoridade se requerem.

Pelo que se deve sempre procurar, que seja homem fidalgo, de limpo sangue, de sã consciencia, prudente, e de muita autoridade, e letrado, se fôr possível: e sobretudo tão inteiro que sem respeito de amor, odio, ou pertubação outrado animo, possa a todos guardar justiça igualmente.

E assi deve ser abastado de bens temporaes, que sua particular necessidade não seja causa de em alguma cousa perveter a inteireza constancia com que nos deve servir.

Isso mesmo deve o Regedor ser nosso natural, para que como bom e leal deseje o serviço de nossa pessoa e stado.

E assi deve temperar a severidade que seu cargo pede, com paciencia e brandura n ouvir as partes, que os homens de baixo stado, e pessoas miseraveis achem nelle facil e gracioso acolhimento, com que sem pejo o vejam, e lhe reiqueram sua justiça, para que suas causas se não percam ao desamparo, mas hajam bom e breve despacho.

E para que o Regedor, que ora he, e qualquer pelo tempo que fôr, possa melhor cumprir com sua obrigação, e nosso serviço, , deve ter sempre ante os olhos nossas Ordenações, e specialmente este seu Regimento, e sempre viva a lembrança do grande cargo, que delles confiamos, para assi ser mais attento e solicito no que deve fazer, e desencarregar nossa consciencia e a sua, e com seu exemplo incitar aos outros Officiaes a nos bem servirem.

1. editar

Tanto que o Regedor fôr provido do offcio, antes que comece a servir ou faça cousa alguma que a elle pertença, lhe será dado juramento pelo Chanceller-mór em nossa presença, naquella fórma que se contém no livro da Relação, em que está scripto: e ao pé do juramento assinará o Regedor com os que se acharem presentes como testemunhas do tal acto.

2. editar

O Regedor, todos os dias que não fôrem feriados, pela manhã virá á Relação e fará vir os Desembargadores cedo, porquanto o desembargo dos feitos ha de durar quatro horas inteiras, ao menos, passadas pelo relogio de arêa, que será posto na mesa, onde o regedor stá: o qual tempo se não gastará em praticas, ou occupações outras, não necessarias ao acto, em que stão.

3. editar

O Regedor elegerá um sacerdote, que todos os dias pela manhã diga Missa no oratorio da Relação, antes de se começar o Despacho.

4. editar

Acabada a Missa, os Desembargadores entrarão logo em despacho; e tanto que entrarem , não consentirá o Regedor, que se levantem das mesas, em que stiverem, para outra alguma parte, salvo por tal necessidade, que não se possa scusar. A qual sendo passada, se tornarão logo a seus assentos e desembargos, de maneira que se não possa perder tempo algum.

5. editar

Tanto que os Desembargadores começarem de entrar em despacho, o Regedor não consentirá que alguns dos Scrivães, Guarda-mór da Relação, Porteiros ou outros quaesquer Offciaes entrem nella, salvo quando fôrem chamados por campainha. e tanto que lhes fôr dito o para que forão chamados, se sahirão, e não se chegarão ás mesas, onde os Desembargadores stiverem despachando. E os porteiros starão sempre á porta da banda de fóra, para acudirem á campainha. Nem isso mesmo consentirá , que fidalgos, ou pessoas, venhão a Relação, salvo quando fôrem chamados.

6. editar

Para despacho dos feitos, o Regedor repartirá os Desembargadores per todas as mesas dos Officios ordenados, dando a cada mesa os que bem lhe parecer, segundo a qualidade e numero dos feitos; dando porém nos feitos crimes, em que alguma pessoa seja acsusada por caso, que provado mereça morte natural, cinco Desembargadores, para com o Juiz do feito serem seis, e não menos. e não sendo os quatro delles conformes condemnar, ou absolver, metterá mais Desembargadores em numero igual, de modo que nunca se vença, ou comdenar ou absolver, ou remetter ás ordens, ou outro qualquer caso, em que se houver de pôr no feito sentença definitiva, senão por dous votos ao menos. E como quatro Desembargadores fôrem concordes, logo de porá desembargo, e se assinará, e dará a execução. E para mais breve despacho , havemos por bem , que parecendo ao Juiz do feito pelo allegado e provado nelle, que o réo está em absolvição, ou em condemnação, que não exceda cinco annos de degredo, possa pôr o feito com dous Desembargadores, para com elle serem tres. E sendo todos tres conformes em absolvição, ou em pena,que não passe de cinco annos de degredo, se porá a sentença. E sendo diferentes, dará o Regedor outro Desembargador, ou Desembargadores, em modo que não sejão tres em um acôrdo, e conforme a elle se porá a sentença.

7. editar

E mandamos, que nos outros feitos, que em Relação se houverem de despachar, sempre faça por dar os Desembargadores em numero desigual, assi como tres, cinco, sete. E nos feitos crimes, onde não se merecia morte, postoque provados fossem, o Juiz do feito o poderá despachar com outro Desembargador, para com elle serem dous; sendo ambos conformes, se porá a sentença, e não o sendo, o Regedor dará outro Desembargador, ou Desembargadores, e como fôrem dous conformes, se porá a sentença, e se dará á execução.

8. editar

E quando seis Desembargadores fôrem em algum feito de morte, e quatro delles fôrem em voto de condemnar, postoque differentes nas condemnações, e dous em absolver, ponha-se a sentença conforme aos quatro votos, que fôrem em condemnar, reduzindo a maior condemnação á menor, semo o feito ir a mais Desembargadores. E a mesma ordem se guardará, sendo todos os seis em voto de condemnar, postoque differentes nas condemnações, reduzindo os quatro votos. E a mesma concordia se terá nos votos dos outros feitos, que per menos Desembargadores houverem de ser despachados.

9. editar

E sendo caso que os Desembargadores das mesas sejão de votos differentes, de tal maneira que não se possa pôr desembargo, o Regedor fará juntar com elles ou outros, que vejam o feito, sobre que fôr a differença: e o que a maior parte delles juntos acordar, se cumpra. E quando em algum feito, visto por todos os Desembargadores, que presentes fôrem, as vozes fôrem iguaes, o Regedor dará a sua voz, e a parte, a que se acostar, prevalecerá; e segundo ella se porá a sentença, e assinarão sem postilha, nem outra declaração, per que se possa saber quaes forão em outro parecer; o que não haverá lugar nos feitos, que se despacharem per tenções scriptas nelles, porque nas taes sentenças assinarão sómente os que fôrem no parecer , per que a sentença foi vencida e não outros; porém poderão pôr junto a seus sinais — PRO VOTO, se em suas tenções não fôrem em todo conformes á sentença, mas sómente em alguam parte.

10. editar

E se o Regedor vir alguns feitos arduos, assim civeis , como crimes, que em Relação se houverem de despachar, e sentir que ha nelles algumas taes duvidas, que lhe pareça ajuntar mais Desembargadores, que os ordenados ao despacho dos taes feitos, fará ajuntar aquelles, que suspeitos não fôrem, e lhe parecerem necessarios, e com elles se desembarguem os ditos feitos, e isto fará, cada vez que necessario lhe parece. Porém se o despacho do feto pender sobre embargos a algum desembargo, ou sentença, não metterá outros Desembargadores no despacho, senão os que foram no primeiro desembargo, ou sentença. E se lhe parecer que alguns dos ditos Desembargadores são suspeitos de tal suspeição, que a parte não possa provar, ou por outra razão, que o mova a nol-o fazer saber, então fará sobrestar no despacho, e nos informará da razão, por que lhe pareceo que se devem metter mais Desembargadores no despacho dos ditos embargos, para Nós nisso provermos como nos bem parecer.

11. editar

E quando no despacho de alguns feitos, que perante Nós se despacharem em Relação, fôrem alguns Desembargadores do Paço, e as partes vierem com embargos á sentença, ou despacho, o Regedor dará em lugar delles outros Desembargadores da Casa, que dos ditos embargos conheção.

12. editar

E não consentirá que feito algum dos que mandamos desembargar em Relação, seja despachado, ou visto pelas casas dos Desembargadores, ou fóra da Relação, mas sómente pelo Juiz que fôr do feito, o qual depois de o ter visto, o levará á Relação, para ahi o despachar segundo seu Regimento. E provando-se que foi despachado pelas casas, ou fóra da Relação, ainda que o despacho seja nullo, e alem disso o Regedor lho stranhará segundo a qualidade do caso requerer. Porém sendo os feitos primeiro vistos em Relação, se algum Desembargador, por não star bastantemente instruido, os quizer levar para os ver em sua casa, podel-o-ha fazer com liceça do Regedor. Os quaes tornará trazer á Relação em breve termo, que lhe o Regedor assinará, e em outra maneira não.

13. editar

E os feitos crimes e civeis, que em Relação houverem de ser desembargados, ou em que forem dados certos Juizes para juntamente despacharem, sejam lidos pelo Juiz que fôr de cada hum delles, perante os Desembargadores, que para despacho delles forme deputados. O qual Juiz lerá as inquirições e scripturas, que aos ditos feitos pertencerem. E acabado de ler o feito, o Juiz dará nelle sua voz primeiro, e dahi por diante os outros Desembargadores, que ao feito stiverem; e o que pela maior parte fôr acordado, se cumprirá e dará á execução, sendo porem no despacho dos feitos civeis ao menos tres Desmbargadores. E em todos os feitos sobreditos, que em Relação se despacharem pelas mais vozes, como dito he, sempre a sentença, será scripta pelo Juiz do feito, posto em que seja differente voto; e sera outrosi assinada per todos os que no feito forem, e nelle derem sua voz, posto que alguns delles fossem de contrario parecer, e assinarão sem apostilla , nem outra declaração, per que se possa saber quaes foram de outro voto. E tirando-se a sentença do processo, será assinada pelo dito Juiz do feito sómente; e sendo absente, passará pelo Desembargador, que por elle servir, ou per aquelle, a quem o Regedor o commeter. E se a sentença fôr de qualidade, que quando se tirar do processo, haja de ser assinada per dous Desembargadores, e hum delles for absente, passará pelo que presente fôr, e o Scrivão porá no fim da sentença, como não assinou o outro, por ser absente.

14. editar

E quando alguma das partes tiver suspeição a alguns dos Desembargadores ao tempo que o feito se houver de desembargar em Relação, fará isso per palavra informação ao Regedor; e elle com acordo dos outros Desembargadores, que stiverem no despacho do dito feito, a desembargará, como virem que he direito; e segundo per elle com a maior parte dos Desembargadores for acordado, assi o mandará cumprir. E achando que he suspeito, cometterá o Regedor o tal feito a outro Desembargador, que suspeito não seja. E emquanto stiverem ás vozes sobre a dita suspeição, o Desembargador, a que fôr posta, se apartará para outra parte, até sobre ella se tomar conclusão.

15. editar

E quando se houver de cometter algum feito de novo a algum Desembargador, no caso onde não houve suspeição procedida pelo Chanceller, e assi quando os Desembargadores se lançarem de suspeitos, antes de lhes virem com suspeição, ou quando, depois de lha intentarem, se lançam, antes de ser procedida, o Regedor deve cometter os taes feitos a quem, lhe bem parecer, que suspeito não seja, não admittindo ás partes roes de pejados, com atéqui se fazia.

16. editar

E se acontecer algum delicto, que se houver de despachar na Casa de Supplicação, em que pareça que se deve proceder summariamente, o Regedor fará ajuntar em Mesa grande seis Desembargadores; e vista a qualidade do caso, e prova, e todo bem considerado, se parecer que se deve nelle proceder, summariamente, se procederá. Porém, sendo o reo Cavalleiro, ou d'ahi para cima, e condenado em morte natural, não se fará nelle execução, sem nol-o fazerem saber.

17. editar

E para os Desembargadores dos Agravos despacharem todos os feitos, que per bem do seu Regimento hão de despachar em Relação, o Regedor ordenará huma mesa ás terças feiras, quintas e sabbados, para nella despacharem os taes feitos: e na dita mesa os Desembargadores não se occuparão em outra cousa nos taes dias.

18. editar

Item mandamos que nenhum Desembargador tome petição alguma, em que se requeira mandar ir os autos á Relação; e a parte,que a quizer dar, aggravando-se per tal petição dos Corregedores da Corte, e Julgadores da Cidade de Lisboa, ou dos lugares dentro de cinco legoas della, a dê ao Regedor, ou aos Porteiros da Relação, para que lhe dêm na mesa, a elle a veja com os Desembargadores dos Aggravos. E os ditos Porteiros, quando taes petições lhes forem dadas, as tomem, e com diligencia as appresentem ao Regedor, sem por isso levarem cousa alguma. E as petições, que se despacharem, per quer mandem levar os autos á Relação, que forem sem sinaldo Regedor, havemos por bem, que não valham, nem se faça obra alguma pelo tal desembargo: e o Scrivão, que as ajuntar ao feito, seja suspenso do Officio per seis mezes. É posto que o Regedor seja em opinião, que os autos não venham á Relação, se os Desembargadores dos Aggravos forem em mais vozes que venham, porá seu sinal na dita petição. E se no mandar ajuntar estas petições houver desvairo entre os Desembargadores, de maneira que tres, ou mais votem, todos assinarão no despacho.