Fragmento de uma visão

— Acusado, o teu nome?

— Todo o mundo sabe.

— Tua profissão?

— Político. Ministro. Candidato ao governo da Bahia.

— Acusado, a Bahia é quem te arrasta a este plenário. Volta os olhos para tua mãe, a terra que te deu o ser. O seu vulto, envolvido em crepe e escorrendo sangue, enche este pretório. Com uma das mãos nos mostra as suas feridas, com a outra te aponta a cabeça. Não fala; mas por ela falam as suas chagas; e o seu gesto de horror te denuncia. Acusado, que fatos podes alegar em tua defesa?

— Os meus serviços ao País, à Bahia e à República. Fatos? Os contemporâneos, todos eles conclamam a glória do meu nome. Professor do nosso direito, eduquei a mocidade no conhecimento das leis. Tribuno, inflamei as turbas no amor da liberdade. Revolucionário, lutei pela constituição contra a força. Parlamentar, bati-me pela ordem contra a demagogia. Ministro, fundei a moralidade na administração e a energia do corte das ladroeiras. Baiano, erigi na capital do meu Estado um templo à medicina, dotei de novas ferrovias o seu território, e dei à sua política, em um grande partido, uma organização invejável, de cujos benefícios mana a minha popularidade, a minha candidatura e o meu triunfo. No seu caminho havia apenas um obstáculo, de ordem acidental, o Governo e as leis da Bahia. Estou-os removendo. Logo, em vez de criminoso, benemérito, juízes, é o que sou. Mandai-me conferir a coroa do civismo, a da justiça e a da virtude. Não me negueis o meu direito.

— Acusado, bradas alto, mas oco. Roncas, mas não persuades. O direito, na tua boca, é como a linha reta nos movimentos da serpente. A justiça, nas tuas idéias, como “a Cornucópia do Altíssimo” na eloqüência de uma das tuas arengas populares. A virtude, na tua moral, como o azeviche das tuas cãs enegrecidas a tinta, em tua cabeça de qüinquagenário à beira dos sessenta anos. Os teus serviços, como os pechisbeques e bugingangas de mascataria no armarinho ambulante de um turco.

Professor, em vez de ensinares a mocidade, o que tens feito é desfrutares comodamente, em sucessivas licenças e ausências, coroadas pela tua disponibilidade atual, cerca de vinte anos de vencimentos sem trabalho. Tribuno, as tuas palranças de agitador nunca se elevaram à altura de uma boa causa, de uma idéia feliz, ou de uma frase de bom-gosto. Político, extremado, no antigo regímen, entre os conservadores, aceitaste, sôfrego, na derradeira situação do Império, a presidência do Rio Grande do Sul, com que um gracejo telegráfico de Germano Hasslocher, encoberto sob a assinatura imaginária de Silveira Martins, te punha à prova a trêfega ambição.

A revoluções não te aventuraste, senão em abril de 1892 e setembro de 1893; a primeira vez, caindo numa esparrela, quando supunhas iminente a volta, pelas armas, do marechal Deodoro, a segunda, quando imaginavas certa, com Custódio de Melo e Saldanha da Gama, a vitória da marinha insurgente. Parlamentar, as causas por que te bateste notoriamente foram, sob a presidência Campos Sales, a trucidação do povo, no caso da São Cristóvão; e, sob a presidência Nilo Pessanha, o estabelecimento do militarismo pelas vergonhas, à custa de cuja podridão vingou a candidatura da espada.

Energúmeno nas hostilidades à ditadura militar sob o marechal Floriano Peixoto, cujo nome nos teus escritos ao Siglo e ao El Día, de Montevidéu, em junho e julho de 1894, cobriste de baldões, vieste a ser agora dos mais aguçosos colaboradores numa ditadura militar infinitamente mais abominável, inscrevendo-te entre os primeiros, que, para entregar o país aos soldados, acapacharam as consciências aos pés do homem da convenção de maio.

Ardendo na cobiça de subir, ministro foste duas vezes, mas nunca por espontânea iniciativa dos presidentes a quem serviste. Tu é que lhes gastaste os degraus das escadas, que os assediaste de empenhos: e, quando, postulante atendido, lhes conseguiste entrar nos gabinetes, desceste de secretário a cortesão, fazendo-te o serviçal dos filhos, para da boca adoçada dos pais obteres as complacências de que vivem os validos.

Em vão te gabas de haver inaugurado a moralidade na administração. A tua austeridade administrativa reduz-se a uma legenda, e mais nada. Haja vista os teus favores às obras do porto da Bahia; a tua liberalidade com as Docas de Santos; a enormíssima agravação de ônus com que sobrecarregaste o Tesouro na revisão dos contratos de viação baiana e cearense, a corrupção que exerceste à custa da tua pasta em bem das tuas pretensões à conquista do Governo de um Estado, a transcendente imoralidade, em que, a teu benefício, prostituíste às mais baixas exigências de uma cabala desabusada o serviço telegráfico e o serviço postal; indisciplinando e venalizando os teus subordinados.

Não fales do que te deve, na Bahia, o ensino superior. Mandaste ali reerigir o edifício da Escola de Medicina, que um incêndio consumira. Era um ato de expediente, a que outro qualquer ministro, no teu lugar, seria imediatamente forçado, mas que, com língua de palmo, a Bahia te acaba de pagar nas chamas, obra tua, em que arderam o Palácio do Governo, a sua biblioteca e os seus arquivos.

O que organizaste, na Bahia, não foi um partido, mas a companhia do estelionato político, a cujas proezas a nação assiste com a cara calçada. Nunca obtiveste ali outra popularidade senão a dos arruaceiros. O triunfo em que exultas agora, é o de Satã. Um clarão imenso o rodeia, o do incêndio da cidade do Salvador.

A revolta acompanha os teus passos odiosos, aonde quer que um chefe de Estado te acolha aos seus conselhos. Ministro com o presidente Rodrigues Alves, contra ti se levantou o movimento militar de 1904. Ministro com o presidente Hermes, levantas hoje contra a honra da sua autoridade a sedição militar na Bahia. Dela te queres apoderar a todo o transe. Para lhe removeres o governo, e as leis, obstáculo à tua ambição diabólica, armaste ali a fogueira, onde acaba de se imolar a autonomia do Estado. Através do seu revérbero e do seu fumo se destaca o teu perfil, soprando as labaredas à catástrofe, donde imaginas sair a tua glorificação. Não é o gênio do mal nas proporções bíblicas do anjo decaído. Não é o gênio do mal na soberba criação do poema de Milton. Mas é a perfídia, a mentira, a crueza do gênio do mal nos traços mais subalternos e sinistros do seu caráter.

A tua política, as tuas tramas, as tuas ordens subverteram, ensangüentaram, dinamitaram, bombardearam, incendiaram, saquearam a terra do teu berço. Rasgaste as entranhas à tua mãe, escarrastelhe no rosto, e agora exultas sobre a sua agonia, imposturando cruelmente de vencedor pela sua estima.

Mas olha para tuas mãos tisnadas no braseiro e avermelhadas pela carniça. Pega de um espelho, e mira a tua fronte. Lá está, na pinta de sangue dos teus irmãos, a marca indelével do fratricida.

Ninguém te tocará, pois o estigma da tua maldição te preserva do contacto dos não-contaminados com a tua aliança. A tua vida é inviolável como a do mau irmão de Abel. Contudo, não te sentarás no governo da Bahia, porque trazes na testa o ferrete de Caim, a quem o Senhor diz:

“Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama desde a terra por mim. Agora, pois, serás maldito sobre a terra, que abriu a sua boca, e recebeu das tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando a cultivares, ela te não dará os seus frutos e tu andarás por ela vagabundo.

Tu não pertences à vingança dos homens. Ela fugirá de ti horrorizada pelo rastro vermelho das tuas plantas, mostrando-te, quando passares, como o espetro do remorso, porque “o Senhor pôs um sinal em Caim, para que o não matasse ninguém, que o encontrasse”.[1].

Mas a justiça divina te seguirá como a matilha à caça, com a consciência a te ladrar aos calcanhares, e não consentirá que te assentes sobre a conquista do teu crime, para devorar a presa exangue do teu fratricídio.

  1. Ruy Barbosa citou Gênesis 410-12