Consequencias

Como todas estas causas mantinham uma barreira de incompatibilidade entre dous sêres opostos, sucederam anos de inconcebivel tormenta para a mulher que entrára na vida conjugal na idade em que a educação feminina carece de maiores cuidados. Porque é na adolescencia que se acentua o caracter.

Está hoje provado que existem em nós psiques diferentes. Se a vida serena, risonha e bem conduzida, aperfeiçoa e con- serva viçosas as inclinações da psique superior, a criatura desenvolve em si os dons da beleza moral. Se ao contrario vive oprimida, descontente, agitada, podem estacionar os embriões da perfeição e revelar-se a irascibilidade, a colera, a revolta, emfim, os defeitos.

E como a feição dominante do caracter d'esta criança era a bondade, reproduzindo manifestações de uma sensibilidade mimosa, carecia de uma atmosfera delicada para florescer em ternura, em generosas actividades de espirito e de coração. Mas o destino deparou-lhe elementos contrarios.

Rudezas, irascibilidades, grosserias, ferindo-lhe de contínuo as susceptibilidades de alma. A dignidade rebaixada por humilhações e censuras desumanas e asperas dirigidas á sua inculpada inexperiencia. Ridicularizadas as suas tendencias artisticas e literarias com a habitual incuria que considera a mulher destinada a toda a escravatura de pen- samentos e obras creadoras, e a toda a acção social. Nem ao menos era licenciada no manejo trivial do serviço domestico.

Emfim, os elementos que deviam predispôr a felicidade d'aquele lar, dissolveram-se na onda revolta de uma hostilidade caustica que não era maldade nem tirania propria. Significava a influencia inconsciente dos habitos transmitidos por um erro de falsas noções que faz vêr na mulher o objecto de deleite material. O homem, representava n'este lar de expiação, a injustiça dos preconceitos que na familia e na sociedade tolhem a vida da mulher. E mulher em todos os seus aspectos de tormento e prejuizo, incarnava a escravidão ilegal do seu sexo, revertendo em prejuizo moral e economico do individuo e da comunidade.

A revelação de todos os acidentados revezes que marcaram a fogo de suplicio a vida domestica d'esta mulher, que é a de tantas, encheria paginas e volumes de emocionante descrição.

Apesar da sua inexperiencia da vida, o instinto, a pratica gradual e a inteligencia, davam-lhe recursos valiosos para um desempenho superior das suas funções. Tinha a consciencia plena de que cultivava a harmonia, a ordem, o encanto, que embelezariam a sua vida e a do Esposo. Mas levantava-se entre esse facto uma muralha de egoismo, de amor proprio, de intransigencia, de obstinação desesperante que vedava todos os esforços, que contrariava todas as ideias, que destruia a alegria de viver e provocava o desespero, a agonia do coração. Foi o que sucedeu. Veio a doença. Surgiu a pavorosa neurastenia que conduz à cegueira da razão.

Surgiram as complicações.

Ausencias longas para cura e tratamento. O desequilibrio economico motivado pela doença. A inquietação, o mal-estar.

O aniquilamento da vontade. O horror á solidão. Emfim o triplice efeito do prejuizo fisico, moral e material, destruindo, devastando, ennervando.

Um dia, depois de tantas maguas sobrepostas, sucumbiu. Assaltou-a a resolução de emigrar. ¿Que era ela n'aquela casa? Um automato. Uma força convertida em fraqueza. Um sêr apagado, sem prestigio, desrespeitada perante os serviçais, e por eles desrespeitada pela mesma razão; sem nenhum poder moral ou material dentro de casa. Requeimada de penas, ulcerada de injustiças, sucumbida de tristeza, agitada de revoltas consumidoras, e asfixiada n'um desconforto de isolamento atróz, sem carinho, sem ternura sem distracções, concentrada horrivelmente no efeito das suas tormentas, a sua vida atingiu o quilate de um desespero indescritivel.

Entrou no periodo das crises nervosas. Invadia-a uma horrivel hiperestesia. E tudo em volta d'ela era negativo. Ninguem que compreendesse aquele estiolar de vida nascida para vibrar, para criar, para se expandir em luz, em calor, em harmonia.

Uma rajada agreste desfibrára a haste do amor e da harmonia onde desabrocharia aquela alma sensitiva. As flechas da rudeza mutilaram as azas palpitantes de uma imaginação sequiosa de ascender esferas de beleza e de bondade. Sonhára uma existencia de aconchego, de trabalho sereno, de espiritualidade. A sociabilização era uma necessidade

do seu temperamente expansivo. E definhava-se na solidão, esterilizava-se na cerração de uma treva sem clareira de horizonte. ¡Que dias de splen horrivel! ¡Que longas noutes de solidão e abandono, a alma em vacuo, o espirito em sombras, o cerebro doente em erupção de presagios doentios, em spasmos de terrivel nevrose!

Afinal deram-se scenas de intensidade tragica. Levada pelos seus impulsos generosos, acolhêra sob as azas imensas do seu amor, uma filha bastarda do Esposo. Fôra para ela carinhosa e branda como uma mãe. Vira n'ela a esperança de um delicado afecto para adoçar o exilio em que esmorecia.

Mas a intolerancia até aí levou o seu funesto efeito.

E apoiando e proporcionando desvios de conduta que pouco a pouco provocaram uma discordia insustentavel, conduziu á situação de inferioridade, de desprestigio, de revolta, a vitima de um coração cheio de ternura que quizera abrir-se a todas as dedicações e a todos os afectos tão mal retribuidos e interpre- tados.

Tecida uma rede de intrigas que encontravam eco no espirito de hostilidade que saturava aquele ambiente, a situação agravou-se. O mal vencia o bem. Um gesto nobre fôra uma arma a mais que a vitima voltára contra si. E o objecto d'esta discordia adquiríra, por meios ilicitos, um lugar de supremacia que rebaixava n'aquela casa que lhe dera carinhos. Certo dia afrontou-a uma grave ofensa á sua dignidade. A má fé que germina em espiritos incultos, sofismára e adulterára manifestações afectivas que eram, junto de alguem, um inofensivo lenitivo para aquele martirio.

Foi ofendida. Pediu justiça. Não foi atendida. Estava reduzida, n'aquele ambiente, a um farrapo de dôr e injustiça. Alucinada, fugiu d'essa sepultura da razão. O espectro da loucura erguia-se diante do seu suplicio. Tremeu, espavoriu-se, receando a sua aproximação. E tomada de um tremendo e ancioso gesto de pavôr foi desabafar o seu desespero junto de um medico que dirigia uma casa de saude, um internato patologico.

Sentia lucidas as faculdades da razão. Mas o desespero mantinha-a n'um delirio acidental, um desvairamento febril mixto de angustia e terror produzido pelo receio da loucura. No auge d'esse delirio, anciosa por um repouso, aflita, querendo fugir á tortura do presidio onde já não podia sofrer mais, rojou-se aos pés do medico. Suplicou, implorou n'uma ancia de soluços e de lagrimas, que lhe désse abrigo, refugio, tratamento, n'aquela casa de saude. Imaginára que n'esse lugubre reco- lhimento da maior desgraça humana existiam pavilhões separados onde se faziam curas de repouso. Na sua suplica confusa, entrecortada de desesperos, de contracções extremas, de intensas agonias de alma e de espirito, nem sabia o que podia, o que queria. Queria estar junto de um medico que a compreendesse e atenuasse o seu estado de hiperestesia.

Queria estar longe, bem longe do ambiente do seu imerecido suplicio.

O medico, bom e sensivel, comovido com essa tortura extrema, cedeu aos seus rogos de naufraga alucinada. Era contra a ordem da casa receber doentes sem os respectivos documentos de entrada. Mas a alma generosa do homem, venceu os deveres do profissional. Foi conduzida a um aposento onde supunha que ficaria isolada dos doentes. Não se atrevia a interrogar o medico, ao transpôr aquelas infernais galerias onde se desenrolava a afirmação atróz da inconsciencia, da injustiça e da crueldade humana. Ia quasi sonambula. Deixava-se arrastar. O seu braço tremia convulsamente enclavinhado ao braço do medico. Tomára-a um pavôr indescritivel. Ao atravessar aquela horrorosa multidão de loucos que gritavam, que dansavam, que blasfemavam, riam, choravam, escarneeiam, ameaçavam em impetos de colera, em imprecações obscenas, em gargalhadas estridulas e arripiantes, em uivos de fera, em gritos dilacerantes, teve a pavorosa impressão de que tambem ela ia enlouquecer.

Queria recuar. Mas não tinha coragem. Um conflito de impressões retinha-lhe o gesto. A vontade doente, não tinha força para resistir, deliberar. Receava desgostar o medico que enternecedoramente cedêra aos seus rogos em tão anormais condições. E deixou-se ir, e deixou-se arrastar, mais morta que viva, n'um mergulhar de angustia, n'uma bruma de entendimento, n'uma vaga confusão de raciocínio, n'uma agonia de condenada caminhando para a guilhotina. Depois tinha esperança de que ao fim d'aquele inferno do Dante, se lhe depararia um recanto isolado, aparte d'aquela multidão confrangedora. Por fim, ao fundo de um corredor isolado, introduziram a n'um aposento espaçoso, confortável, higiénico. Respirou.

O medico entregou-a a uma enfermeira. E no seu entorpecimento de animo, imaginou que ficava ao abrigo da invasão de doentes. Nada indagon. Mais uma vez a receosa susceptibilidade retraiu a pergunta que se não atreveu a formular perante o medico a quem forçara a transpor o limiar do regulamento, em condições excepcionais, aliás glorificadoras dos seus nobres sentimentos.

Atirou-se sobre o leito, exausta, fatigada. Tentou entorpecer pelo sono o estado de alma que lhe devorava as inergias físicas e morais. Mas dentro em breve o aposento era invadido pelas loucas que se escapavam á vigilância das enfermeiras . ¡Oh que pavôr lhe congelou o sangue! A loucura, que tanto dó lhe inspirava, fora toda a vida o seu terror. Em frente de um louco paralizava-se-lhe o corpo e a alma. Permanecia petreficada por uma horrivel impressão.

¡E viu-se em meio de um grupo de loucas!

Uma tinha um olhar metalico, feroz, fixo como que n'um gesto de vingança. Rugia imprecações furiosas contra o marido que a abandonára e enlouquecêra.

Outra tinha uns olhos negros, curuscantes, incendiados de genio, que, ainda mesmo através da loucura, faiscava em lampejos de argumentação lucida, a par de desconchavos grotescos. Essa era uma amante abandonada por um aventureiro de amor que lhe explorára o sentimento e a fortuna.

A terceira era uma doente de hipocondria. O seu olhar amortecido e baço fixava-se com uma expressão de melancolia, de imbecilidade spasmodica, nos objectos e nas pessoas. Era uma outra vitima da tirania conjugal. Sempre os dramas do lar, do preconceito, da miseravel condição da mulher, do predominio de costumes que fazem de homens bons carrascos de tortura, podendo ser companheiros justos, humanos, aperfeiçoadores. E hão-de sê-lo. Bastará que a razão thes aponte o erro que manteem enclausurado entre a cegueira das tradições. En- tão a felicidade ha-de sorrir-lhes em aliança com a mulher; reconhecerão n'ela uma força indispensavel ao aperfeiçoamento libertador de ambos e de todos.

 

Tambem este episodio não fora, como nada é, simples obra do acaso. Era preciso que aquela alma de mulher, arrastada pela força que tudo move, fosse ali conhecer aquela multidão de mulheres expiando os crimes da devassidão e do vicio que são permitidos ao progenitor em prejuizo geral, através dos preconceitos e da ilegalidade dos direitos sexuais, morais, e conjugais. Era preciso que experimentasse aquela tortura de inquisição, obrigada a permanecer ali, segundo o regulamento que já não podia ser violado mais uma vez. E foi considerada louca. Pediu ás enfermeiras que a julgassem uma torturada e não uma demente.

Elas sorriam, trocavam olhares de zombaria, respondiam-lhe com evasivas quando ela reclamava uma entrevista com o medico a quem de novo imploraria piedade. Mas não a atendiam.

Era da ordem nada atender fóra do programa. Permaneceu ali tres dias apenas, que foram tres seculos de luta e dilacerante agonia. Era tal o seu estado de hiperestesia, que as faculdades auditivas pressentiam a grande distancia a bulha infernal, que no silencio lugubre da noute vinha do pavilhão de loucos furiosos, como um bramir ululante e sinistro de feras arremetendo contra as grades ferreas da jaula. Nem um só momento o sono veio adormecer o seu suplicio. Atingia um grau insofrido de desespero. Pensava no suicido, mas nada tinha com que pudesse consumar esse desfecho. E a vigilancia da enfermeira não o permitiria. ¡Que ironia suprema! Fôra em busca de repouso e redobrára de anciedades.

Quando emfim saíu, durante meses, todos os ruidos a sobressaltavam pare- cendo gritos de loucas. Só muito tarde se dissipou essa visão de horror.

Foi então que os medicos lhe impuzeram a retirada do meio familiar como unico recurso de salvamento. Escolheu para permanencia, um centro de mais larga vida intelectual.

O instinto impelia-a a aproximar-se de elementos superiores.

Principiou de sentir um reflorir de esperanças. Começou a viver no interesse da grande causa humana. Mediu as suas forças. Eram escassas. Mas avançou audaz e resoluta. Falhava-lhe a cultura. Tinha lido pouco. Faltavam-lhe recursos de tecnica literaria. Sentia-se debilitada. Os medicos proíbiam-lhe o esforço mental. Desobedeceu-lhes. Foi reagindo, foi trabalhando, foi produzindo. Era quasi um milagre de ressurreição, um fenomeno psiquico, aquela resistencia. E' que estava no seu elemento. O desalento cedeu o lugar a um interesse pela vida da humanidade.

Embelezou o seu exilio por um ideal de perfectibilidade. A fé ungiu de perfume aquela dôr que até ali a martirizára esterilmente. Começou a achá-la doce, porque distingniu n'ela raios bemditos de verdade e de redenção. Animou-se de puros ardores que aqueceram o gelo da sua existencia. Emfim, após a dôr veio o amor que abraça todas as dôres, a luz que brilha dentro de todas as trevas. Sofreu muito para amar muito.

Luz de expiação, ¡ como ela resplandece e cria quando a consciencia a distingue, a abençoa no seu infinito poder de verdade! Luz de expiação, ¡ eu te bemdigo porque és a fé, a vida, o amor dentro da dôr!

¿Mas que novas decepções lhe consumiriam a vida? ¿Que punhaladas de injustiça, de perseguições, de intransigencia lhe reservava uma sociedade madrasta a quem ia oferecer as forças do cerebro e do coração para auxiliar a cura das suas chagas?

¿Como se interpreta a dôr d'uma vitima de revoltantes preconceitos, negando-lhe o direito de atordoar o espirite abalado, creando um nobre interesse pela vida no culto maximo e fervoroso de um cristalino e humano ideal?

Tudo é contra a escravizada. As convenções, as leis, os codigos, a hipocrisia. a mentira, a inveja, a calunia, o egoismo, a ignorancia, o materialismo, emfim, todo o lodo das paixões mesquinhas, todo o atrazo de costumes que só encara as coisas pela rude bitola do seu criterio inferior atacando a vitima indefeza que cometeu o delito de se refugiar no culto do Bem.

Transforma-se a vitima em culpado e o culpado em vitima. ¿O homem tiranizou? ¿A mulher tentou libertar-se? Pois bem, é ele o vencedor, e ela a veneida. O divorcio, é um delicto n'essa sociedade estreita. O direito de amar, reclamado pelas naturezas afectivas, um crime. A honestidade uma duvida, ou a hipotese de uma aberração.

Eis um calvario de mulher, e de muitas mulheres que sucumbem, que morrem e enlouquecem por não saberem salvar-se. E é sempre o homem que tem razão. Os costumes, n'uma afirmação do mais inconsciente egoismo, concedem sempre o beneplacito á causa do homem. Pela sua boca a sociedade fica considerando a revoltada uma louca, uma histerica, uma desequilibrada.

E acredita-se, e repete-se o argumento, e serve para desacreditar, embaraçar, repudiar um esforço nobre, tolhendo um efeito de redenção.

Ninguem vê n'esse facto um crime social. Porque já não é só o interesse individual em jogo. E' a causa comum, é a causa da humanidade.

Essa mulher que, desprestigiada, expatriada do lar, procura converter-se em inergia social, é um valor que pertence á humanidade. A sua acção carece de ser respeitada em nome das miserias humanas que reclamam todas as sinceras e uteis vocações altruistas, evangelizadoras, tão raras como urgentes no movimento da civilização.



Não parára aqui esta via sacra da expiação. Os incidentes que a assignala ram entram no triste dominio da tragedia. Serão um dia especializados como documento de psicologia pessoal e social que tem de esclarecer as sombras em que caminha a humanidade. Basta citar ao acaso algum d'esses episodios. Um dia visitou uns parentes para quem fôra um idolo, um exemplo de bondade, emquanto se mantinha na falsa situação em que a julgavam feliz, rica, e a adulavam. Mas, em contraste com as antigas manifestações, negaram-se a recebê-la. Ouvira de dentro a voz da dona da casa que dava rudemente essa ordem ao creado. No seu debil estado de saude, esse caso inesperado, golpeante, perturbou-a.

Caíu com uma sincope desamparadamente. Essa boa parenta, deixou-a prostrada no limiar da porta emquanto um creado, por sua ordem, ¡dizia á cosinheira que ia chamar um policia para a levar á esquadra! Que razões se invocavam para justificar tão cruel desumanidade? O abandono de um lar de martirio, o acto criminoso de se lançar na luta de um largo ideal de verdade, ligada ao seu tormento, uma mulher honesta.

¡Como a submissão aos preconceitos converteu em symbolo de crueldade e injustiça um coração de mulher, que era extremamente devota, que professava uma religião de Cristo toda de doutrinas piedosas, ensinando a amar, a perdoar! E no entanto a mulher ofendida não tinha pecado á face da verdade e do direito. A sua vida continha mais abnegação anonima, mais humana utilidade, do que a de todos esses que a condenavam e repudiavam injustissimamente.

De outra vez permanecia temporariamente em casa de uns amigos. O dono casa atacava-a rudemente na sua deliberação de revoltada. Mas a certa altura por diante, começou de requestá-la sem que da parte d'ela nenhuma provocação justificasse esse facto além de um natural dom de atracção inerente ás naturezas vivas e afectuosas. Como não cedeu á insistencia do requerente, foi perseguida, maltratada, quasi expulsa da casa sob os mais crueis e desumanos protestos.

¡Quanta incoerencia de moral! Primeiro, a mulher condenada por se libertar de uma cruz. Depois louvada e virtuosa, cedendo ao delito. Afinal exercendo a moral que oferece uma prova flagrante de honestidade dentro da conduta que resiste ao galanteio, volta a ser culpada, detraquée, inutiliza-se, desacredita-se.

E' n'estes curiosos e comicos estatutos, que o homem conservador, o detractor da mulher e da sua reabilitação, assenta o seu criterio e as normas falsas de seu falso senso ético. Eis a moral de comodismo material, o codigo de servidão ao serviço da luxuria tiranica, do ilogismo de direitos de fórma a manter sempre em pé os interesses masculinos na ordem de um exclusivo e feudal absolutismo plantado sobre a escravidão da mulher.

A imoralidade do forte, um triunfo. A moralidade do fraco, uma culpa. Eis o dogma da falsa moral que se levanta como simbolo de inconsciencia e tortura sob a inferior organização das sociedades adversarias do progresso em relação á libertação da mulher.

Se as mulheres compreendessem este erro, todas apoiariam aquelas que defendem a sua causa. Mas regularmente, tambem o sexo feminino é refractario, por ignorancia, aos seus proprios interesses. Dependente de tantos precalços, manifestou-se em todos os seus aspectos o efeito d'essa anomalia de convenções que eclipsára na vida de uma mulher os elementos da felicidade. Recrudescia cada vez mais o seu martirio.

E por fim encontrou-se isolada, perdida no labirinto escabroso da vida, sem outro recurso mais que o cerebro, o coração, o desejo de trabalhar e os tesouros da sua fé. Esposa infeliz, mãe amargurada, desgostosa pelas condições que a separavam do filho querido do seu martirio.

Avó precoce, nostalgica da graça e do carinho das encantadoras netinhas, roubadas pelo marco da separação ao desconforto do seu exilio. Deportada sem crimes, embora não isenta de defeitos que a infelicidade origina. Peregrina errante de alma esgarçada entre as urzes do calvario, destinára-a a persistência da fatalidade a constituir uma prova dolorosa da opressão feminina. Vivera dentro da família e da sociedade anonima, desconhecida, ignorada. Uma estranha, uma duvida; um mistério, um sofisma; ura simbolo, um calvario; um farrapo de angustia condensado em fé; um anceio de amor cristalizado n'um grande ideal. A mentira roubára-lhe toda a felicidade. Convertêra-lhe em amargura a alegria, a saude, o amor, a independencia, a vida, emfim, a expansão livre de faculdades que deveriam ser gloria e proveito proprio e comum.

De toda essa derrota ficou-lhe apenas uma riqueza. A fé, a radiante e poderosa fé que na sua origem de dôr experiente, tem mais verdade que todas as teorias scientificas.

Ficou-lhe a potencia de alma que tem mais força que todas as que partem da alta escola da arte ou da filosofia. Essas duas forças em acção lhe abriram um mundo novo de concepções, impregnando-lhe o espirito de aspirações consoladoras. Purificou-se no culto d'essas aspirações. Tornou-se refractaria ás pequenas ninharias de uma vida mesquinha. Conquistou-se, venceu-se, e salvou-se.

Foi em tais circumstancias que esta mulher combateu pela Justiça, pelo Bem, pela Verdade. A sua tenacidade, a sua fé, vencendo desfalecimentos, humilhações, embaraços economicos, prejuizos e afrontas, insucessos e desenganos, comprovava a existencia do heroismo feminino aparecendo em fulgurações sublimes de resignação, de resistencia, de audacia, na historia de todos os tempos. O heroismo do homem é feito de impulsos de virilidade, de rasgos intrepidos que necessitam de estimulo, de gloria, de popularidade, de aplauso e de imortalidade. Emquanto que na mulher, é mais uma intima inclinação para o sacrifício, uma exigencia afectiva, uma subtil compreensão dos deveres de humanidade. Poucos homens aguentariam os embates de dôr e desconforto que sacudiam a vida d'esta mulher consumida no sacrificio ignorado da sua devoção, sem recompensas de gloria ou de proveito. ¡Quantas vezes, chegada a noite, no exilio de um quarto de hotel ou de pensão, reconstituia os episodios de seu calvario quotidiano em que realçava sempre uma injustiça, um desengano, um tormento e um sacrifício! Destilava em lagrimas a sua amargura. Mas no dia seguinte recomeçava cheia de obstinação e confiança em si, reanimada pelos clarões de uma fé inabalavel.

Quasi sempre os motivos ingratos que lhe creavam mortificações, embaraços, complicações e revoltas, partiam de causas que deviam ser de consolação e alegria, e afinal degeneravam em tormento. Era infeliz, perseguida, especialmente por ser boa, sensivel, e por seguir uma religião de progresso. A bondade que a fazia tolerante e afavel para com todos, ou era causa de abusos entre gente que só está habituada a ser dominada pelo rigor e zomba da brandura, ou era mal interpretada na sua disposição que busca dispensar agrados a todos pela inclinação de semear o bem no conforto, na palavra, no sorriso e no carinho.

¡Quantas malévolas significações, quantos insultos á sua dignidade provocou este facto assinalando a grosseria de costumes no estreito circulo social em que girava a sua trajectoria de mártir!

O dom natural de semear e inspirar simpatias, proporcionára-lhe penas e cuidados infinitos. Não era formosa, mas havia na expressão de seu semblante uma força de vivacidade interior que reunia um conjunto de agrado.

Uma modalidade singular acentuava-lhe nas feições irregulares aspectos diversos. Fóra das impressões da sua inclinação estetica, humanitaria e intensa, era uma deprimida. Envelhecia, fanava-se. Mas em plena expansão da sua emotividade, rejuvenescia, rejubilava. E a alegria dava-lhe uma irradiação de mocidade, de luz espiritual. Despertou profundas simpatias entre aqueles a quem apraz esse genero de atractivo, que sem ser formosura ou perfeição plastica, irradia as fulgurações expressivas da neo-energia.

Lá estava a força da natureza revelada na força do seu intangível poder.

Ela afirmava, dentro da lei da vocação, que cada sêr tem direito a viver a vida que lhe compele e desenvolver a potencia de energias que recebeu do seu influxo para as transformar em alegria propria e comum que ilumina, que contenta e se exprime no revigoramento fisico transformado em encanto, em sedução, geradores de emoções sadias e creadoras.

Mas a mentira transformára em decepção as primicias da felicidade que deveriam iluminar esta existência.

¡Quanta perseguição avivada pela ignorancia desconfiada e sceptica incapaz de compreender o fogo latente que lhe devorava a alma de idealista!

Uns combatiam-n'a por inconsciencia, outros por pessimismo, muitos e muitos por despeito, pela circulação de lendas falsas e desconceituosas, expelidas por essa venenosa vibora que tem era si a peçonha da inveja, da maldade e da ignorancia convertidas em calunia destruidora e repelente. A situação desconfortavel da sua vida indefesa, enfraquecida, desvalorizada pela desfavoravel condição economica, converteu-se por vezes em dramas da mais atróz angustia, em complicações que assumiam aspectos deprimentes para o seu caracter. Na ancia de acumular elementos para a luta, ¡quanta vez saiu fóra do seu proprio caracter com risco de descredito, para conglobar por meio da simpatia de ideias, favoraveis de consequencias morais e materiais que lhe permitissem sustentar-se, sem naufragar de vez, no mar encapelado do tormentoso e desigual combate!

Apercebia em si uma acumulação de ideias e inspirações latentes, anonimas, mas que o seu instinto futurista sabia que seriam um dia reveladas, reconhecidas e valorizadas para florescerem em iniciativas praticas e ideologicas de que a causa da humanidade reclama e santifica.

¡E que tortura, que desespero, sentir-se fraca, impotente para vencer tanto desdem, tanta desconfiança, tanta incuria sceptica e pessimista que correspondia aos seus esforços! ¡E compreender que bastaria um pouco de atenção e respeito pelo esforço da mulher, um grau de justiça pelos seus direitos, uma febre ardente, sincera e interessada pela verdadeira redenção social, para que as suas ideias fossem apoiadas, o seu esforço acolhido, os seus alvitres de obras sociais aproveitados e concretizados pela força moral e material dos que dirigem a engrenagem social e sem a qual nenhuma ideia poderia frutificar e amadurecer em realidade! Mas gastou dias e dias de esperas infindaveis em ministerios e repartições pu- blicas para obter audiencias com influentes politicos que pouco lhe faziam, e con- fundiam o seu empenho de regularizar a situação economica, para trabalhar livremente pela causa humana, com o interesse mesquinho de se emancipar de dificuldades somente por egoismo pessoal.

Expoz-se a riscos graves de descredito n'essa frequência de galerias publicas, de redacções, de associações que visitava de dia e de noute, a deshoras, sem atender senão ao seu alvo bemfazejo, sem temer as afrontosas hipóteses de uma multidão sarcastica, inculta, que desconhecendo os grandes ideais desconhece o sacrificio a que se votam os seus martires. Pouco conseguiu. Mas continuou, firme no seu posto, vivendo na requeimante e consumidora anciedade do dia de amanhã, ralando-se hora a hora na tortura de compromissos morais e materiais contraídos sempre com o fim de proseguir em condições de certas aparências que requer uma sociedade onde o habito faz o monge e onde só o prestigio pessoal dá prestigio ás ideias.

E dava-se este facto em plena democracia, que nunca pode ser realidade justamente porque as faculdades femininas são objecto secundario e a sua intervenção é repelida, é desconceituada, em vez de preencher a lacuna de potencias de emoção e argucia que devem completar os impulsos da evolução.

Descrevendo minuciosamente todos os detalhes d'esta odisseia feminina, eu tenho em vista salientar o estado atrasador da consciencia social que por incuria de reflexão, preguiça de entendimento e injusteza de raciocinio, deixa perder no abismo da inutilidade valores femininos que se exgolam na luta economica, predispondo acidentes desmoralizadores. Na luta moral e material, desamparada do apoio, do prestigio que deviam dar á sua causa aqueles que apregoam, em programas politicos de policromia sedutora, o levantamento moral e economico da mulher e da sua função social, esta só teve desenganos. ¿Quantas vezes ainda o seu esforço de lutadora era sobrecarregado com a menção de culpas e defeitos que são facilmente atribuidos á mulher e que o homem não vê em si para justificar o desleixo e a indiferença votada ás suas reclamações e generosos intuitos?

A revolução de instituições é nula sem a revolução de costumes que emancipem os direitos da mulher.

A força do instinto que primeiro inconscientemente e depois conscientemente te guiou a vida da vitima d'este horrivel mal de confusão e ignorancia, conduziu-a a um mundo inteiramente novo de compreensões. Dentro d'elas viu-se cercada de claridades desconhecidas, aperfeiçoadoras, vivificantes.

Ainda aí uma visão pratica justificava as teorias novas que preparam o advento de uma aurora de altruista beleza, em que a humanidade futura condensará a sua felicidade.

Assim ela aprendeu a ver mais os outros do que a si propria. E em vez de se concentrar no limite estreito do seu martirio pessoal, reagira milagrosamente contra todas as fraquezas da vontade mortalmente enfraquecida. Ressuscitou. Via no seu martirio o martirio da humanidade. Sentiu-se destinada a uma missão de resgate. Fez da sua alma a interprete dos atributos de abnegação, de sentimento e generosidade que hão-de ir revelando a mulher para consagrar a sua verdadeira natureza e engrandecê-la humanamente.

E n'uma compreensão superior das origens e dos fins, dirigidos pelas forças onipotentes do intangivel, ela não con- dena, não odeia, não ofende. Bemdiz até o causador indirecto da sua desdita. E compreende, lamenta, perdoa.

Desejára mesmo, se pudesse, reabilitá-lo, arrancar da sua alma, do seu esforço, do seu trabalho uma parcela de felicidade para reconstruir aquela vida derrubada por suas proprias mãos.

Poderia ter sido a providencia d'essa vida pelo conjunto de intuição com que The profetizou a derrocada, pelo conselho que indicava na visão rapida das coisas, onde estava o prejuizo e o lucro, o mal ou o remedio.

Tudo foi repudiado. Instinto de ordem, de metodo, de conforto, de arte, de harmonia, de brandura, nada foi aproveitado. Tudo se perdeu, perdendo a felici- dade de ambos. E emquanto o mesmo amor proprio que deu causa a esse desmoronamento persistia ainda em perseguições, em descredito que pretende desqualificar a mulher e a obra social, a perseguida retribue-lhe em interesse e magua pela sua vida. Agradece-lhe até a trituração de alma que se converteu em luz. E prova a todo o homem, que o não saiba vêr, que cava a sepultura da sua propria felicidade provocando a anarquia do lar.

Porque ele não é menor vitima, como n'este caso. A mulher, inspirada em ideias que a transformaram em obreira da redenção, tem a sua fé, alimenta-se d'ela, é feliz, d'aquela doce felicidade que sabe encontrar conforto na dôr e no sacrificio, que desabrocha em luz e amor. Emquanto que ele viverá n'um isolamento interior e exterior que mina as seivas da vida, que irascibiliza cada vez mais as criaturas, que é esterilidade, que semeia o mal-estar entre aqueles que estão em contacto com esses doentes da nevrose social.

Ela sentia esse exilio. Mas não podia dominar a impressão que lhe adoecia o corpo e a alma no convivio directo com uma natureza oposta. Invadia-a uma depressão moral e fisica que a estremecia mortalmente como se estivesse em frente de um instrumento de tortura.

N'esse ponto não lhe pertencia a si constranger a vontade, embora se empenhasse em esforços para o conseguir. Era decerto dos dominios das leis fisicas esse choque doloroso que produzia reacções negativas para proclamar os direitos da verdade. Mas á distancia, ¡que infinita piedade sem remorsos lhe estremecia o coração!

Não se pertencia porém a si, pertencia á causa humana. O sacrificio por um só, embora nobre, seria uma gota de agua perdida no oceano. Essa gola de agua debil que representava a sua obra, e que ámanhã seria regato, e depois corrente, tinha de deslizar serenamente, fecundamente, sem as irritantes impressões que revoltam e adoecem. Por isso caminhou intrepidamente, livre de uma algema, partida á custa de sacrificios pungentes, para pugnar pelos direitos do seu sexo, que são os da humanidade. E assimilando em si o destino de milhares de vitimas semelhantes e anonimas; sentindo gemer dentro da propria alma os gritos abafados de tantos corações em chaga; concebendo o martirio de seios macerados de injustiça onde só germinam raças definhadas e frageis; n'um clamor vibrante de equidade e justiça repetia a redentora frase de Jean Finot rubricada pela desdita palpitante da sua vida: «No gesto do homem que se lamenta, ha tantas lagrimas de mulher como reacções da sua propria dôr».