Camões e a fisionomia espiritual da Pátria

CAMÕES

E A

FISIONOMIA ESPIRITUAL

DA PÁTRIA

JUNTA PATRIOTICA DO NORTE

LEONARDO COIMBRA


CAMÕES

E A

fisionomia espiritual
da Pátria


SEPARATA DE CAMÕES

(DISCURSO PRONUNCIADO NO TEATRO
ÁGUIA DE OURO
NO DIA 10 DE JUNHO DE 1920)

 

PORTO MCMXX

POR BEM
 

MENINAS, MINHAS SENHORAS
E MEUS SENHORES:

 


IMAGINAI que, subterrâneo e distante, vos corre sob os pés um regato, e donde em onde a terra se abre em bocas de verdura, falando o refrescante murmurio das águas profundas.

Assim são os Poetas.

A nossa alma é como velho arco de ponte, sob o qual flui o rio do tempo, levando no seu curso as verduras da terra e as luzes do firmamento, cabelos corredios de algas e filamentos luminosos de mundos, flôres das margens e cometas do Infinito.

De quando em quando, da nossa própria alma tombam flôres mortas que o tempo leva e vai sumindo na imensidade da Distância.

¿Voltarão a passar sob a mesma ponte os brancos corpos de Ofélias, que se afastaram, fluindo na algidez do luar?

¿Qual o rio que, atravessando os mundos, os traga cinturados e reflectidos a repassarem as mesmas viagens, a repetirem o milagre do encontro?

A Memória.

Êsse o grande rio do tempo regressando à origem, como peregrino que fôsse a ver o mundo e ao lar doméstico voltasse, cabelos e alma empoados das flôres dos caminhos, rebrilhantes das pedrarias da terra e das cósmicas poeiras das alturas.

Mas a Memória é onda dum mar transcendente, que só conhecemos pelo seu aromático desenho na praia que nós somos e onde ela vêm a morrer em corpo de misterioso e estonteante perfume.

Longe de nós, fora do nosso Espaço, nas dimensões que nos são vedadas, nasce êsse Mar; o fluxo e refluxo das suas águas desenha em nossos cérebros linhas de memória, que se apagam e destroiem, mal seguras do instante em que fulguram.

A vaga brilhou instantânea e logo outra vaga de memória fez o esquecimento da primeira.

A consciência flui adormecida e às escuras, mal entrevendo os esporádicos clarões dessa Memória, que à semelhança da fosforescência dos nossos Oceanos só de longe a longe iluminam o negrume da vaga.

E toda a Vida é uma luta, um drama, um combate, um permanente esforço para segurar a instantânea luz da Memória, vaga dum mar de Outra-Vida, aflorando subtil a praia que nós somos...

A realidade é êsse combate, levado a planos diferentes, e sómente vitorioso pela audácia dos Argonautas que se aventuram no grande Oceano da Memória que, espontaneamente, em catadupas jorra do infinito coração divino.

Os Argonautas do Mistério são os sábios, os poetas e os santos. Debrucemo-nos com êles no arco da velha ponte e vejamos o mundo que passa.

O Universo passa, o tempo corre e nas suas águas precipitam-se as flôres marginais, correm reflectidos os mundos e os sóis.

O Poeta ouve o murmurio que transita, fixa o instante fugitivo, e como em chapa de aço candente as águas que recebe no peito são asas de névoa, ascenção e fulgor, caindo no Mar transcendente da Memória em perfeito e luminoso corpo de eternidade.

E assim o Poeta eterniza o instante... e assim o Poeta ergue à Consciência os mais incoerciveis movimentos da alma, e assim o Poeta filtra no episodio a sua parte de eternidade, eleva sôbre os individuos transitórios a fisionomia espiritual das Pátrias, da Humanidade e Deus.

O Poeta gera o Sábio e o Santo.

O Santo é o homem do plano superior voluntariamente dado em sacrifício para que a luz divina, que o consome, guie e exalte os homens à transcendência de uma vida superior.

O fogo purifica as podridões, a dor faz do sofrimento quotidiano uma coluna de fogo apontando os novos destinos e rumos.

O Santo vive, na labareda do momento, o incendio da eternidade.

Dá o seu corpo ao sacrificio para que, no vazio que se fórma, as ondas da Memória se insinuem e aumentem o seu contacto com a terra, para que os abraços dessas ondas se alarguem e cinjam todas as almas suplices.

O Santo é o Poeta praticante, as suas Canções penetram-lhe e modelam os lábios, são seres vivos caminhando, humildes e amorosos, a cuidar as chagas que, em nós, fizeram as mordeduras da Morte.

O Sábio é o Poeta vagaroso: debruçado sobre a ponte, não vai em companhia das vidas que fogem a cercá-las das águas da Memória para que vivam e se não percam, espera que regressem e na repetição do que passou vê a grande unidade convivente de tudo o que existe. Procura a identidade que une os seres, espera na repetição o reaparecimento do que transita. A sua luta pela Consciência é a mais humilde e serena.

A consciência scientifica é cheia de abdicação do que é própriamente humano, comovida de respeito pela Unidade social do Universo.

O ascetismo do sábio, feito da possivel abdicação dos planos superiores, leva-o à mais completa companhia com as realidades do seu plano. O seu esforço para a consciência é o mais vigoroso esfôrço para fixar o desenho das vagas da Memória, sem a aventura argonáutica de deixar a praia em demanda do grande Oceano que a beija.

Mas aquelas partes da sciência, que são as fontes que a alimentam, os núcleos de invenção, são ainda o mergulho duma alma nas mais altas marés do grande Oceano da Memória.

O sábio criador é ainda e sempre o Poeta.

Newton e Dante são igualmente infinitos.

O seu pensamento tem sempre oculto, quere dizer que nenhuma leitura os exgota, porque, pela parte em que mergulham no infinito Oceano da Memória, são incomensuráveis com qualquer modo de contar, isto é, inexgotáveis, eternos e infinitos. Há, com efeito, uma distinção, e a unica que interessa, entre tôdas as obras.

Aquelas cuja riqueza é exgotável por um numero finito de leituras (e quantas nem uma só leitura compensam!) e aquelas cuja riqueza é criacionista e excedente, pois aumenta com as próprias tentativas de exaustão.

Imaginai um Arquimedes procurando exaurir um volume terminado por linhas curvas e à medida que ia descontando paralelipípedos o fosse encontrando novo e acrescido. Assim são os livros dos verdadeiros Poetas: sua própria alma, infinita dádiva do seu perfeito Amor.

Os outros... os outros podem ainda ser humildes soldados da Grande Guerra contra a Morte, sustentando com firmeza os troféus das vitórias já alcançadas.

¡Mas ai do livro que depois de lido uma vez não foi mais desejado ainda que antes da primeira leitura! Êle leva dentro de si mais esquecimento e morte que vitória e consciência.

Êsses livros que crescem, e sem fim, são os fios subtis que prendem o homem aos planos espirituais superiores, são as flechas dardejantes do mistério apontadas ao próprio coração humano.

É neste sentido que há livros revelados e só legiveis na iluminação da própria luz espiritual que os embebe.

É, neste sentido, que existem bíblias: vivas línguas de fogo acrisolando o pensamento humano.

A Divina Comédia, D. Quixote, os Evangelhos: outras tantas línguas de fogo ligando a terra com o firmamento.

Êsses livros serão humanos, pagãos e divinos.

Tudo transita, flui e morre.

Ou nos salvamos todos, ou é impossivel a salvação.

O mais insignificante atrito duma areia póde inutilizar a mais poderosa e perfeita máquina.

Um grão de esquecimento permitido no Universo introduzirá a desproporção que inutiliza a memória, será uma perda singular que há de tornar impossivel em qualquer outro ser a perfeita harmonia e conservação.

Um general no momento critico duma batalha poderá acudir a um ponto principal da sua linha, sofrendo em retorno pequenas derrotas parciais em outros pontos. Essas derrotas parciais são o fumo de toda a labareda que sóbe, os resíduos duma evolução que se fez e irá recomeçar, aumentada da vitória alcançada, no coração da primeira derrota.

O homem, que se eleva, só sustenta a sua fisionomia angélica ajudando a evolução, porque as forças de Morte ainda o hão de perseguir e, se não continua subindo, há de degradar-se em caricatura animal.

No rio do tempo vão fugindo as cousas, os seres, os mundos e o homem.

O Poeta é o seu redentor.

A unica redenção é o grande baptismo no divino Oceano da Memória.

O Poeta revelou a consciência aos homens, porque neles fixou e acendeu aquela serena e firme estrela, que, no seu ponto de interferência, os raios do Amor infinito geraram em Memória.

Por essa Memória é o homem a praia onde marulham os oceanos de outras vidas, o foco onde se reunem as vibrações etéreas de todos os sóis.

A Tragédia grega, D. Quixote, os Evangelhos, a Divina Comédia, Camões...

D. Quixote é a Bíblia do Ideal!

O Ideal é a ausência duma percepção espiritual, é nessa ausência que se insinua o Mistério...

Eis porque o Ideal é presença invisível mas activa, fecunda presença de realidades superiores que, como o longínquo polo para a agulha, polarizam a vida do homem, embora este as não perceba, nem toque.

D. Quixote é a própria fome do Ideal. Fome insatisfeita no plano de vida terrestre, porque é nesse plano a presença de realidades espirituais excedentes.

Eis porque o D. Quixote é eterno; morto o planeta, êle será ainda em qualquer vida a sua distância a um plano superior.

D. Quixote vive em todos os homens, são as próprias asas do seu sonho, é a ausência e o desejo de Deus.

Sob êsse ponto de vista, todo o esforço para a consciência, que é a própria linha de evolução dos mundos, da vida e do homem, a sciência, a arte e a moral, é uma sedução quixotesca, é o influxo superior que uniu a alma de Cervantes às realidades espirituais transcendentes.

D. Quixote é o Ideal; o Evangelho é a própria visão espiritual exaltada aos planos superiores da divindade.

D. Quixote é o cego impelido para a Beleza por um pressentimento interior; Cristo é a própria Luz abrindo olhos de percepção espiritual na máscara pávida do homem.

D. Quixote é a subida das águas no vazio que o turbilhão formara; Cristo é a ascenção das almas na estrada de luz que a sua passagem incendiou.

A tragédia grega é a luta do homem com a Fatalidade, isto é, das forças de vida contra todos os residuos da evolução amalgamados e condensados num unico bloco de Fatalidade.

Por baixo do mais fácil e gracioso politeísmo corre e flutua um pandemonismo informe, recebendo todas as precipitações residuais do alto.

Hesiodo e Eschylo passeiam entre as sombras; Sócrates e Platão entre as frescas claridades duma manhã de Abril.

Mas Platão sabe que essas claridades podem ser as sombras duma outra luz e a alegoria da caverna vive a chamar a atenção do homem...

A Divina Comédia é o sonho de Jacob em plena vigilia, é a onda iniciada num estremecimento da alma do Poeta e alargando e subindo, penetrando em todos os planos da vida espiritual...

Argonautas do Mistério que elevam a consciência a eternas visões da realidade.

Mas o mais insignificante Poeta é ainda capaz de fixar qualquer fugitivo estremecimento e chamá-lo para a vida no próprio instante em que silenciosamente se ia fenecendo.

 
 

A Arte é um formidável fenómeno de osmose: a alma do artista ressoa de tôdos os estremecimentos da natureza e a natureza é pintada com as tintas da sua alma.

O Universo, é convívio, por isso o artista retribui, e em excesso, tôdas as dádivas que recebeu.

O Mar, o mar dos portugueses, entrou pelas órbitas do Poeta e saiu cantando as oitavas dos «Lusíadas».

E tão íntimo foi o abraço, tão perfeita a transfusão que o marulho longínquo do Oceano é esta própria fala:

«Bramindo o negro mar de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo»

Portugal encapela-se em ondas, a sua vida comunica-se e de praia a praia é um abraço cingindo o planeta.

A vida do planeta é convivência no Infinito, a alma de Camões ligou, pelos fios invisiveis da memória, o Mar e a Pátria à vida espiritual do Universo.

As oitavas dos Lusíadas, ondas do mar salgado, são eternos estremecimentos de Memória esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria.

O homem pertence a vários planos de vida espiritual: é cidadão da sua pátria, membro da sua religião, parcela consciente no Universo.

E cada plano é atravessado pelo esfôrço do homem-consciência para a conservação e para a Memória.

É por isso que em cada plano há névoa e sonho e o homem estremece duma nostalgia inquietante.

O homem é o desterrado de Soares dos Reis...

Se o Universo desde o sábio ao Poeta (e sem que prejulgue o problema Mal) é convívio, a consciência do homem há de procurar as relações cósmicas na companhia das consciências mais próximas.

Eis porque o homem, consciência no Infinito, é cidadão na sua Pátria e une a sua voz à voz de seus irmãos para erguer em côro a própria voz da Pátria. E, como as almas só crescem pelo sacrificio dos desejos de separatividade que as fôrças da Morte nelas insinuaram, o amor da Pátria é a primeira e a mais concreta experiência religiosa das almas.

Mal vai, no entanto, às Pátrias que, vítimas dum orgulhoso isolamento demoniaco, não prolongam o sacrifício das almas não alargam os seus estremecimentos de amor até à vida cósmica e infinita.

Se Deus é a própria consciência social, para que esta não pese e adormeça as almas necessario é que cresça e se ilimite em consciência social do Universo.

O amor da Pátria será o amor dos homens e das coisas, encerrando-se em eterno e renovado amor de Deus.

A voz dos portugueses, espessada, avolumando em ampliativos e excedentes abraços, será a epopeia da Pátria levando no seu canto o mar e a paisagem, os homens, a terra e o céu.

As oitavas dos Lusíadas são as ondas do mar levando em espuma as bandeiras das batalhas, trapejando ao vendaval dos heroismos, os sonhos da raça, o amor, Coimbra e o Mondego, os montes, campos e boninas...

A crítica mais ou menos boticária entreviu nos Lusíadas uma mistura do maravilhoso pagão e do maravilhoso cristão.

É tempo de acabar com tanta incompreensão, de dizer bem alto que uma obra de arte é um ser vivo, uma viva consciência salvando para a Memória o fluxo que transita. Jamais será a mistura de mortes e quimeras.

Há nos Lusíadas, como em toda a labareda, uma parte incombustivel que a chama não incendeia e tomba em inerte poeira de cinzas.

Incombustível, quando o coração do Poeta não arde em tão alto fogo devorador que tudo queima.

É a erudição do Poeta, que fornece o alimento à chama, e, se o fogo do pensamento é génio, tudo arde em vivo lume de beleza e eternidade.

Por vezes, sim, por vezes o calor do pensamento não basta a requeimar essa erudição, e então na fluidez das oitavas boiam estátuas mutiladas de deuses mortos e ausentes.

Mas êsse é o fumo que faz toda a labareda humana é o sinal de origem que, marcando a imperfeição do homem, sublinha a divindade do Poeta.

O pensamento vulgar, não subindo acima das mais próximas realidades, ignora a natureza e o valor do simbolismo, chegando a supor que os símbolos poéticos são artifícios decorativos com que o Poeta procura deleitar-nos a sensibilidade.

Daí a ideia dum maravilhoso que, como as decorações dos arraiais minhotos, passa de poeta em poeta.

Se conhecer é relacionar, é sempre uma atenuada ou viva analogia a alma do próprio conhecimento, que da sciência à arte é sempre, embora diferentemente, um simbolismo.

O simbolismo pagão é a grande concepção estética da Natureza e da Vida. As contradições entre o homem e a natureza resumem-se ainda às relações de silencio e convivio, que o homem encontra e harmoniza na quási tangibilidade dos deuses mal escondidos ainda no seio duma natureza amiga.

O murmúrio da floresta é quási o sôpro, repousado e possante, duma respiração imensa; a tremulina de luz, que percorre o ribeiro quando um ruído se ergue do estremecimento do canavial, é o próprio corpo da Frescura a caminhar; o bulício das selvas multiplicando e fecundando a vida é a própria Vida espalhada e vagabunda juntando-se para crescer; o silêncio pontiluzente, meditativo e severo, da Noite estrelada é a própria serenidade da distância a olhar: sátiros, ninfas, hamadríadas, nereidas, faunos e deuses passeiam por entre os homens...

O mundo é a convivência ingénua, mas já os dragões e as serpentes de novo assustam e repelem a sensibilidade do homem.

Êle terá de reencontrar a companhia a dentro de si mesmo...

Se o corpo de Vénus é feito da espuma do Mar, a Virgem Maria é a mais alta e translucida espuma da Alma.

Um paganismo simples e gracioso apreendeu na vida universal as mesmas fôrças, tendências e elementares vontades, que trabalham silenciosamente nas profundezas do ser humano; mas já as lutas titânicas revelam na Natureza vontades inimigas, que nos assediam e oprimem.

Um titanismo vitorioso, coberto de glória e feridas, pode voltar a ressentir a beleza ingénua, a inocência e o bem, na fórma da aragem que embala as florinhas, na frescura humilde do arroio, na sombra acolhedora da árvore, no sonho que trespassa a grande voz dos elementos.

Eis porque não há maravilhoso nem misturas de maravilhoso, há sim uma voz humana que é contemporaneamente estremecimento da alma e do ar, que fulgura, no éter interior e no éter envolvente, a mesma luminosa geometria. Nos Lusíadas há alegria campesina, boninas, prados e jardins, uma natureza inocente e sem mácula; mas há tambêm águas que são já lágrimas de amor saudoso, há montes e ervinhas que andam a aprender no peito de Inês.

E a paisagem de Coimbra ainda hoje vive a repetir essas lições; na Quinta das Lágrimas ainda hoje, da fonte correm sem descanço, ressoando em éco, os versos desta oitava:

 

«As filhas do Mondêgo a morte escura
Longo tempo chorando memoraram;
E por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram:
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amôres de Inês, que ali passaram
Vêde que fresca fonte rega as flôres,
Que lágrimas são a água e o nome amores».

 

A Natureza não existe fora da convivência do homem. Ora simples, silenciosa e profunda, duma inocente religiosidade elementar, ora destroçada e perdida se a não socorre a memória.

Fonte que é o simples murmúrio da gratidão das sêdes, leito de frescura da ninfa adormecida, translucida neblina das rendas que a vestem; fonte que discorre em lágrimas as saudades dum amor distante...

É esta Natureza que o Poeta tem de conquistar para a alma, é esta natureza que a Pátria tem de desvendar para o mundo.

Viajar é compreender: por ignotos rumos procurar e levar companhia aos seres e às cousas da distância, alargar, dilatar a alma para além dos horizontes, ampliando o convívio, contactando por maior superficie a grande zona do Mistério.

Ao partir para a viagem, acorrem tôdas as vozes da tranquilidade doméstica, demovendo e comovendo, tentando prender o homem à firmeza das ligações criadas, temendo a deslialdade e o esquecimento.

Há vozes de egoísmo e de preguiça, mas há tambem vozes proféticas que acusam a nossa vontade pecaminosa de não ir em busca de novas amizades, mas de ambições e maiores egoísmos.

Uma noite, era eu ainda colegial, senti, olhando da sala de estudo o côncavo firmamento estrelado, a atracção dum astro distante, e a minha alma infantil partiu súbitamente ao chamamento da distância; de repente um frio de isolamento, de abandono, me fez regressar instantaneamente ao calor e ao abrigo dos homens, que, embora pouco carinhoso, me falava, era meu, era convívio, conhecimento, mútuo amparo.

Jamais se apagou da minha memória essa sensação única, que hoje suponho o primeiro e mais perfeito contacto do meu ser com o Mistério.

Tambem, ao partir, o Velho do Restelo virá... E à despedida, há de dizer egoísmos, mas há de tambem prevenir os egoísmos, as ambições e as cubiças para que não aumentem com o tamanho dos mundos que lhes vão ser dados.

E o Velho sabe que a Viagem, a Epopeia, é uma obra prometaica, de «fogo de altos desejos que a movera».

O homem Prometeu é o homem dando o infinito aos seus desejos, partindo para alêm dos deuses familiares, correndo o risco de ficar só e às escuras no Espaço sem fim, onde só um novo Deus de infinito amor poderá ser companhia.

Êsse homem Prometeu, perdido e vagabundo, encontrou a mão de Jesus reconduzindo-o a Deus; ¿mas quantos ainda hoje passeiam num Infinito mudo a desolada estátua de sua solidão e tristeza?

A Epopeia vai fazer-se: os portugueses partem ligando os mundos, e, ao dobrar da África, o velho do Restelo é o Prometeu português, o Adamastor petrificado, prevenindo de novo as almas das duras consequências da audácia, das dôres companheiras de toda a criação.

O Velho desejara que o fogo dos altos desejos prometaicos não tivera ardido, e profetizara com uma voz tão sábia e prevenida que bem parece ser a própria voz dum doloroso saber de experiências.

O Velho acompanha a frota e de novo. Maior, Imenso e Tormentoso, quere vedar o Mistério, conter as forças de bem e de mal que os navegadores estão prestes a libertar.

Profetiza e ameaça, mas, quando interrogado em palavras lusíadas, conta aos portugueses, ao mar e às nuvens, a tragédia esquiliana da sua aventura.

O irmão Prometeu roubara o fogo aos deuses, êle quisera furtar-lhes o amor.

A Luz prometaica iluminara os mundos, mas o Espaço regelado não fôra comovido por essa fria luz da inteligência: a candeia cristã vai purificar e aquecer essa luz e será o Amor a Grande Presença Universal, dadivosa e inexgotável.

Eis porque o Prometeu português tem um Cáucaso — é o términus do mundo conhecido, aprisionado em contacto com as primeiras ondas do mundo misterioso!

Eis porque Adamastor tem um abutre — os próprios braços do amor, regaço ondulado de Thetis, fazendo estremecer infinitamente a bruteza penhascosa do seu corpo.

 

«Converte-se-me a carne em terra dura,
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês, e esta figura
Por estas longas agoas se estenderam:
Emfim, minha grandissima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os deoses; e por mais dobradas magoas,
Me anda Thetis cercando destas agoas».

 

O seu corpo é beijado pelas mil bôcas do amor que o devora, e, abraçado à névoa do corpo amado, sobe liberto o seu desejo, penetrando em lágrimas as funduras oceânicas em que se abisma.

E chora, chove, desfaz-se a nuvem negra e de novo o Sol reaquece mais desejos...

¡Alma sedenta da Pátria, inextinguivel fome de imortalidade, com o amor cravado no mais intimo do seu querer!

¡A fisionomia espiritual da Pátria traçada a fogo no próprio coração do Infinito!

E lá vai Vasco da Gama num Mar, que não é do Planeta, levando a raça numa Viagem sem termo a ouvir e libertar Adamastores, correndo num pacifico Oceano de Memória a sua eterna aventura religiosa.

E, cantando com o Poeta, tôdos nós somos já espectros duma outra vida, formas duma luz transcendente penetrando o planeta dos estremecimentos do Infinito.

É a Grande Viagem: O Gama ao leme, o Poeta fazendo do seu canto o próprio Oceano em que vogamos, e nós, reconciliados com Êle, em êxtase, cantando a beleza profunda e eterna das almas...

Faça cada português as suas pazes com Camões e, de novo, no Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há de sorrir...

 

(Disse).