Viajei ontem ao lado de um camelô, ou seja aquilo que outrora se chamava um bufarinheiro ou charlatão. Hoje, esta última palavra designa categorias mais ilustres de artistas da patranha; era preciso um vocábulo novo, que evitasse confusões; a lei de repartição de Bréal.
Pus-me a observar os gestos e as expressões do meu companheiro de viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramos clássicos de atividade ou de inatividade superior.
Modesto e simples não parecia sequer sonhar que pudesse merecer a curiosidade e admiração de um seu semelhante (aliás muito diverso, no meu caso). Por vezes, até se esquecia de si, e ficava para ali murcho, com esse ar aparvalhado e desarmado que só costumam ter, em público, bem familiarizadas com a idéia da sua nenhuma importância.
Ia muito sumido no seu canto, fumando maquinalmente um cigarro meio apagado. Talvez premido por dentro, como por um parafuso, por alguma preocupação de família, ou de dinheiro, ou de saúde.
A certo momento, saltou, enfiou as mãos nos bolsos das calças - uma aragem áspera começara a dar tremuras de sezões às árvores da rua - baixou a cabeça e entrou apressadamente por uma viela, deserta e feia como um pátio de cortiço em dia de chuva.
O camelô, misto de artista, de orador, de pelotiqueiro e de meneur. A multidão, sempre bestial, despreza-o. E ele é que realmente sabe desprezar a multidão, porque a domina, a maneja, a desfruta, e para tanto tem de a enfrentar, cada dia, como um domador de olho vivo e de decisões fulmíneas.
Este exercício requer mais inteligência, mais sangue-frio e mais intrepidez do que aqueles que são consumidos por toda a roda de basbaques que se divertem com esse retalhista do heroísmo.
O camelô não é negociante; é um homem que negocia por acidente. A venda de coisas é mero pretexto, no fundo, ou mero ponto de apoio exterior, de que a sua complexa personalidade necessita para funcionar. Difere do comerciante normal em aspectos essenciais, e a vantagem estética é toda sua: faz do comércio um simples ganha-pão, e não um sistema de vida; é senhor absoluto da sua atividade e não escravo de uma atividade coletiva que o supere e o inclua como uma peça; não tira do comércio nenhuma importância pessoal, mas, ao contrário, ele é que condescende em dar ao comércio umas sobras da sua rica provisão de coragem, de inventiva, de facúndia, de dons capciosos e sedutores, e em sacrificar-lhe um pouco do seu nobre instinto de independência e de travessura.
O camelô tem consigo uma dose de força intrínseca ou um grão de bravura que falece aos da imensa turba do encostamento mútuo.
Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das atividades normais e respeitáveis, e gozam, com um mínimo de originalidade e energia própria, ou mesmo sem nenhuma energia nem sombra de originalidade, os benefícios mais ou menos previstos e mais ou menos automáticos da organização. Aquele, porém, na sua pequeneza e na sua modéstia, cada dia sai de casa para o mundo como pela primeira vez. Sai completamente só, quase inerme sem a armadura dos mais, sem os guarda-costas dos mais, sem boas e fortes armas de combate, - só, quase nu, com uma funda na mão, como o pastorzinho Davi quando partiu em busca do membrudo Golias.
Sai escoteiro e ignorado, sem rumor de ferros, sem estropear de cavalos, sem alalis de trompa, sem atitudes nem gestos, à caça de vagas migalhas de um tesouro possível, escondido sob a guarda de um bicho-manjaléu com milhares de cabeças.
Isto é quase a reprodução, aí na rua, entre gentes frívolas e sensatas sob os olhos frios dos passantes colocados e tranqüilos, das façanhas ilustres do ágil e gracioso Sigurd quando venceu os anões e prostou o dragão Fúfnir.
Nós vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e não damos por isso. Perdemos o sentido poético das situações.