Candido de Figueiredo 1913/Volume 1/Conversação preliminar/II

II

Materiaes da obra


Nado e criado entre as serranias da Beira, nunca achei exaggerado o parecer de Camillo, quando o celebrado escritor chamava ao povo o melhor dos nossos clássicos; e, tendo ao depois residido annos nas provincias do Doiro, do Alentejo e da Extremadura, mais se me arraigou a convicção de que o povo é realmente um grande mestre da língua, embora êlle o seja inconscientemente, e embora mui raramente o hajam consultado diccionaristas, a revêzes preoccupados de prosápias acadêmicas.

Desadorada pelos lexicógraphos, a linguagem popular mereceu-me longos e especiaes cuidados, que reverteram na colheita de mais de seis mil vocábulos e locuções que não andavam nos diccionários, mas que o povo tem guardado religiosamente por essas províncias em fóra.

É muitas vezes incerta a origem ou formação dessas expressões; mas, muitas outras vezes, ali se nos deparam preciosos lusitanismos, apropriadas dicções, e até numerosos termos, que os eruditos têm tido a ingenuidade de capitular de archaísmos!

Poderiam centuplicar-se os exemplos justificativos dêste assêrto, mas poucos bastarão. Nos escritores e manuscritos antigos deparam-se-nos expressões que os eruditos têm relegado para os domínios do archaísmo ou, pelo menos, da linguagem desusada. Taes são: claror, luxar (sujar), grossor, gerecer-se, calleja, almofia, doairo, traguer (trazer), nembro, estrancinhar (usado no Cancioneiro da Vaticana), confita, (na Eufrosina), engaço (ancinho), ceivar, orreta, gocho (nas comédias de Simão Machado), sorça (nas Lendas da Índia), adôrádo, busaranhos, (em Gil Vicente), agra, bramante (por barbante), quartapisa, seto, ril, tenreiro, gaiar, guaiar, legão, cofinho, inorar, etc. E contudo, quem percorrer as nossas províncias, sobretudo quem penetrar nos desviados rincões, donde o caminho de ferro e a concomitante civilização ainda não expungiram tudo que há de usanças e locuções avoengas, ouvirá pronunciar commummente no Algarve claror, luxar (sujar), grossor; na Beira, gerecer-se, calleja, almofia, doairo, traguer (trazer); no Minho nembro, estrancinhar, confita, engaço (ancinho); no Ribatejo, ceivar; em Trás-os-montes, orreta, gocho, sorça, adôrádo, busaranhos; em Aveiro, agra, etc. E, em quási todas as províncias poderá ouvir as dicções antigas incréu, descudar, hétigo; bellos lusitanismos como verguio; e, mormente em Trás-os-montes, puros latinismos, como hedra, por hera. Etc.

Ainda cheguei a tempo para incluir no inventário da língua nacional milhares de verbas, que àmanhan estariam sonegadas por essa insaciável cabeça de casal, que se chama civilização, o que, desculpando-se com os seus intuitos nobilíssimos, procura locupletar-se á custa de tudo e apesar de tudo.

Àmanhan seria tarde; e exceptuando o que Camillo salvou com os seus livros e o que algum devotado folclorista tem recolhido acaso, pouco ficará, entre o povo, da bôa e antiga linguagem portuguesa. Falo por experiência: há trinta annos, ainda aprendi nas aldeias da Beira numerosas fórmas de dizer, de perfeito cunho local e de acentuado sabor português; hoje, parte dellas, não as oiço por lá, e acho-as substituídas ás vezes pela gíria da cidade e pelo neologismo, ora inútil, ora tolíssimo. A locomotiva, ou antes, a locomotora, esfumou aquelles cerros e valles, e a vegetação secular vai cedendo terreno a plantas novas, entanguidas e ephêmeras...

Nem tudo porém se perderá; e, sobretudo se houver devoção para colher e archivar os numerosos provincianismos, de que, apesar dos meus esforços, não consegui tomar conhecimento e que porventura ainda vão resistindo á foice que os ameaça, a Philologia terá nelles valiosos subsídios para a história crítica da língua, e a língua poderá continuar a ufanar-se da sua excepcional flexibilidade e belleza, e do seu numeroso vocabulário, irrivalizável talvez, se o defrontarmos com o das outras línguas românicas.

 

Na classificação dos provincianismos portugueses, nem sempre pude seguir uma norma absolutamente rigorosa. A um termo, que se ouve pelo menos em Mogadoiro, em Miranda ou em Vinhaes, chamei provincianismo trasmontano, sem que isso signifique que êlle é usado em toda aquella província ou que não é usado fóra della. Uma vez ou outra, — raramente, — designo a localidade, (termo de Alcobaça, termo de Coímbra, etc.), por tôr a probabilidade de que o termo respectivo só ali é usado. Também, quando chamo a um vocábulo provincianismo beirão, quero dizer que êlle é falado, pelo menos, numa das duas Beiras, (Alta e Baixa), ou até só em parte de uma dellas. Da mesma fórma, há provincianismos alentejanos, que não são conhecidos no Alto Alentejo, e outros, que os distritos de Beja e Portalegre não conhecem.

Vá isto á conta de esclarecimento, como de quem, assentando numa classificação que o não satisfaz absolutamente, não achou processo mais simples nem mais próximo da verdade.

 

Mas a linguagem portuguesa não é só a linguagem popular de hoje; é também a linguagem popular antiga, e a linguagem culta, antiga e moderna.

Sôbre a linguagem popular antiga, foram-me excellentes subsídios os autos e comédias de Gil Vicente, António Prestes, Jorge Ferreira, Simão Machado; e para o estudo da nossa linguagem culta de todos os tempos, não foi sem grande assombro que eu achei, ainda inexplorados pelos diccionaristas, não só os cancioneiros e chrónicas dos primeiros tempos da nossa língua, não só Fernão Lopes e Gil Vicente, senão também os monumentos literários de Vieira, Francisco Manuel, Filinto, José Agostinho, Castilho, Latino, Herculano, Camillo, e tantos outros. Só em António Vieira, depararam-se-me mais de quatrocentos vocábulos, que eu nunca vira em diccionários. Em Gil Vicente e Filinto, mais numerosa foi ainda a colheita.

E nada desperdicei do que fui colhendo: archaísmos e neologismos, derivações violentas e até erróneas, termos de significação duvidosa ou obscura, tudo alphabetei e reproduzi, julgando cumprir um dever.

Bem sei que os menos experientes em trabalhos desta natureza hão de acoimar-me de nimiamente tolerante, com respeito a locuções injustificáveis. Mas ao diccionarista não impende o tolerar ou vedar o uso ou abuso de tal ou tal locução: o diccionarista tem, como dever capital, o reproduzir factos e interpretá-los. Se entende que um vocábulo está corrompido ou que é mal formado, se o julga neologismo inútil ou disparatado, consigna o que entende, mas regista o vocábulo.

Os próprios mestres têm extravagâncias, que ao diccionarista não é lícito expungir. Vejam o manti-costumes, o mil-lindo, o mil-gamenho, o mulhermente de Filinto, o lucreciamente de Camillo, etc.

Mas onde a crítica fácil mais convictamente me alvejará é na inscripção, que eu faço, de gallicismos intoleráveis. Não alongarei justificações, afóra o que dito fica sôbre a missão do consciencioso diccionarista; mas apraz-me notar que, embora a francesia e o barbarismo em geral não sejam defeitos vulgares em livros meus, eu nem sempre condemno o estrangeirismo que não pratíco. Por uma consideração: é que nós não sabemos se o gallicismo, hoje intolerável, será àmanhan palavra portuguesa e, como tal, fará parte do thesoiro da língua.

E esta incerteza é confirmada pela história. Raro será o clássico, antigo ou moderno, que não tenha perpetrado gallicismos, passando êstes ao domínio da língua. Basta citar garção, abrevar, minhão (pequeno), mancar (faltar), etc.

Um purista, que vivesse há quatro ou cinco séculos, devia sentir ondas de indignação, quando visse começar a usar-se libré, arranjar, ferrabrás, marau, freire, grifa, genebra, bilhete, betarraba, besonha, febre (adj.), petigris, poteia, poterna, abreuvar, assembleia, petimetre, grelo, gaio (alegre), gage, greu, moéla, gredelém, etc., porque todas essas palavras eram puras francesias; hoje... são portuguesas. ¿Quem sabe o que succederá aos mais intoleráveis gallicismos de hoje?

E possível que os alludidos neologóphobos abranjam na sua phobia o registo, que eu faço, de muitos centenares de termos de gíria, como estranhos á linguagem othodoxa e grave dos pontífices literários. Aos taes bastará ponderar que não há pontífice literário que inflija excommunhão maior ao vocabulário da gíria, porque está relacionado por muitos vínculos á linguagem geral, offerece por vezes o facto notável de derivações erudítas e tanto se abeira amiúde da linguagem popular, que se torna diffícil traçar a divisória.

Estão neste caso as cangalhas (óculos), catrafilar (prender), estalo (bofetada), esticar (morrer), massa (dinheiro), penante (chapéu), pireza (fuga), refilar (reagir), tóla (cabeça), valente (alavanca para arrombar), etc., etc.

Accrescentando-se que os diccionaristas e philólogos, como Bluteau, Diez, Cornu, Schuchardt, Michel, e muitos outros, têm dado ao calão ou gíria a importância que os ingênuos poderão negar-lhe, nada mais opporei aos reparos, com que, a propósito de gíria, foram recebidas as primeiras fôlhas desta obra por um ou outro crítico inoffensivo e anónymo.

 

Não se limitam os meus estudos e investigações á linguagem escrita e falada no continente português: — Explorei também a linguagem popular dos archipélagos açoreano e madeirense; e, detendo a attenção na linguagem vulgar entre os Portugueses das nossas possessões ultramarinas, realizei larga colheita de expressões locaes, concernentes a usos, costumes, administração pública, vestuário, ceremónias e crenças indigenas de Angola, Moçambique, Estado da Índia, Macau e Timor.

Mas o português não é sómente a língua de Portugal e das suas possessões: fala-o uma grande nação, que se emancipou da nossa velha soberania, mas que não enjeitou o idioma, com que levámos a civilização europeia aos sertões da América do Sul.

Succede porém que o português do Brasil não é precisamente o português europeu: recebeu numerosos termos da população indígena, e o tupi entrou como elemento constituinte no organismo da moderna linguagem brasileira. Ora, desde que um diccionário é destinado a todos os povos que falam português, não póde prescindir dos termos brasílicos, que são inseparáveis da linguagem portuguesa, praticada além do Atlântico.

Consultei portanto vocabulários brasileiros; li poétas, romancistas, críticos e grammáticos daquella nação; falei pessoalmente com muitos brasileiros, e, de todas estas diligências resultou para êste Diccionário o registo de mais de sete mil brasileirismos, que nunca haviam entrado em diccionários da língua portuguesa.

Note-se entretanto: nem todos os termos, a que eu apponho a nota de brasileirismos, e que como taes são considerados pelos mais conspícuos vocabularistas, como Beaurepaire-Rohan, provieram dos tupís ou fôram criados por brasileiros. Muitos dêlles são velhos portuguesismos, que partiram daqui com os descobridores e colonizadores das terras de Santa-Cruz, e que lá vivem e prosperam ainda, sendo aqui já esquecidos ou mortos. Assim é que a conjunção si que, no português, é hôje privativa do Brasil foi usada por clássicos nossos; usou-a, por exemplo, Garcia da Orta, nos seus Collóquios. O vocábulo perendengues, se não partiu de cá, foi de lá recebido há muito e entrou no português dos mestres; usou-o Filinto, pelo menos. A geriza, o agir, o faneco (pedaço de pão), a alfafa ou alfaifa, o guaiar, etc., são bons e velhos vocábulos portugueses, de que nós nos esquecêmos quási, mas que os Brasileiros, para vergonha nossa, sabem alimentar e prezar. Sob êste ponto de vista, a inscripção de muitos vocábulos brasileiros equivale, creio eu, á rehabilitação pública de alguma coisa, injustamente comdemnada pela ingrata pátria...[1]

 

Para a inscripção da technologia scientífica, de pouco me valeram os lexicógraphos portugueses que escreveram antes de mim.

A tal respeito, foram sempre vulgares as queixas de professores e estudiosos contra a falta de um vocabulário nacional, que comprehendesse com alguma largueza a technologia mais corrente entre os homens de sciência.

Dei-me ao trabalho incalculável de estudar nas fontes respectivas a technologia botânica, geológica, anatómica, philosóphica, médica, chímica, radiográphica, etc.; e muitas vezes, á mingua de competência encyclopédica, tive de me soccorrer da competência e obsequiosidade de muitos dos nossos mais notáveis homens de sciência, aos quaes se deve certamente o melhor quinhão nos serviços que êste livro possa prestar aos estudiosos de technologia scientífica.

Confessarei, sem hesitar, que uma das sciências, em que se me depararam maiores dificuldades, foi a Botânica geral: — Num diccionário da língua, ¿até onde deveria chegar o registo dos seres vegetaes, dos seus órgãos e dos seus phenómenos biológicos? A quem deveria eu seguir nas classificações do reino vegetal? Linneu? De-Candolle? O Congresso de Paris de 1867?...

Pela sua importância collectiva e scientífica, aquelle Congresso impunha-se-me naturalmente com as suas decisões; mas a classificação que propôs, — classe, sub-classe, cohorte, sub-cohorte, ordem, sub-ordem, tribo, sub-tribo, gênero, sub-gênero, secção, sub-secção, espécie, sub-espécie ou prole, variedade, sub-variedade, variação, sub-variação, planta, — além de se me figurar um tanto casuística, obrigar-me-ia a minúcias pouco compatíveis com a precisão, simplicidade e clareza que me cumpria observar; e assim, reduzindo todos os graus daquella classificação ao menor número possível sem offensa da sciência, acostei-me á simples e clara taxinomia das familias, tribos, gêneros e espécies.

No que eu respeitei, quanto pude, o referido Congresso, foi em preferir a terminação áceas á terminação ídeas, íneas, íceas, etc., ao designar famílias vegetaes: amomáceas, em vez de amómeas; lauráceas, em vez de lauríneas; rhamnáceas, em vez de rhâmneas; myrtáceas, em vez de myrtíneas, etc., respeitando embora as fórmulas consagradas das gramíneas, leguminosas, labiadas, etc.

Mas não eram simplesmente taxinómicas as difficuldades que a Botânica me oppunha: provinham também da amplitude numérica, que, num diccionário da língua, se deveria dar aos gêneros e espécies do reino vegetal.

A tal ponto se tem desenvolvido há um século o estudo da Botânica que, não sendo conhecidos ainda 2:000 gêneros em tempo de Jussieu, (fins do século XVIII), o número dêlles sobe hoje a mais de 8:000, segundo o cálculo de Ducharte; e orça-se em 600:000 o número das plantas actualmente conhecidas! Há cincoenta annos, em tempo de Lasegues, nem 100:000 se conheciam aínda.

É verdade que muitos milhares de plantas aínda não perderam a sua designação exclusivamente scientífica e difficilmente se adaptariam dêsde já á nossa linguagem vulgar; mas muitíssimas há, cujo nome é perfeitamente romanizável, como outras há, em que a designação vulgar e a scientífica precisamente coincidem, tão estreito é o parentesco entre o português e o latim.

Occorri á difficuldade, conciliando, quanto em mim coube, a conveniência, se não necessidade, de enriquecer um diccionário da língua com um amplo onomástico botânico, e a impossibilidade de realizar nesse diccionário o que aínda não conseguiram os próprios vocabularistas botânicos.

E assim, quanto á Botânica geral, registei com inusitada amplidão o onomástico das famílias e dos gêneros, e só me detive nas espécies que se recommendam pelas suas qualidades medicinaes, ornamentaes, etc.

Quanto porém á Botânica portuguesa, continental e colonial, e quanto á Botânica brasileira, tudo me aconselhava que registasse quanto as minhas investigações me deparassem.

Neste ponto, e ao passo que noutros diccionários só se havia dado plausível attenção à Botânica europeia, tive a satisfação de trazer para a lexicographia numerosíssimas espécies da nossa flora africana, asiática e oceânica, bem como da flora brasileira. No Museu da Sociedade de Geographia, nos jardins botânicos da Escola Polytéchnica de Lisbôa e da Universidade de Coimbra, nos livros de Garcia da Orta, Capello e Ivens, Serpa Pinto, Sisenando Marques, Stanley, Henrique de Carvalho, Levingstone, Ficalho, Lopes Mendes, Pedroso Gamito, Dalgado, e outros, pude colher notícia de muitos centenares de espécies vegetaes, que ainda hoje valorizam o nosso império colonial e que, pela primeira vez, enriquessem agora um diccionário da língua; e, para o largo registo que faço da flora brasileira, de muito me serviram os largos de estudos do Dr. Caminhoá, de Del-Vecchio, de Araújo Amazonas, de Brás Rubim, de Beaurepaire-Rohan, etc.

Na própria Botânica do nosso país, e não obstante o muito que já lhe consagraram outros diccionários, tive ensejo de reconhecer, pelos livros dos nossos ampelógraphos, pelos relatórios dos agrónomos, pelos jornaes de agricultura e pelo trato directo com a gente do campo, que muitos frutos e muitíssimas espécies de plantas úteis ainda não pertenciam á lexicographia, tendo eu que registar mais de 1:500 variedades de videiras, e numerosos frutos, que entraram há muito na linguagem do povo e que só agora entram no vocabulário português. linguagem vulgar; mas muitíssimas há, cujo nome é perfeitamente romanizável, como outras há, em que a designação vulgar e a scientífica precisamente coincidem, tão estreito é o parentesco entre o português e o latim.

Occorri á difficuldade, conciliando, quanto em mim coube, a conveniência, se não necessidade, de enriquecer um diccionário da língua com um amplo onomástico botânico, e a impossibilidade de realizar nesse diccionário o que aínda não conseguiram os próprios vocabularistas botânicos.

E assim, quanto á Botânica geral, registei com inusitada amplidão o onomástico das famílias e dos gêneros, e só me detive nas espécies que se recommendam pelas suas qualidades medicinaes, ornamentaes, etc.

Quanto porém á Botânica portuguesa, continental e colonial, e quanto á Botânica brasileira, tudo me aconselhava que registasse quanto as minhas investigações me deparassem.

Neste ponto, e ao passo que noutros diccionários só se havia dado plausível attenção à Botânica europeia, tive a satisfação de trazer para a lexicographia numerosíssimas espécies da nossa flora africana, asiática e oceânica, bem como da flora brasileira. No Museu da Sociedade de Geographia, nos jardins botânicos da Escola Polytéchnica de Lisbôa e da Universidade de Coimbra, nos livros de Garcia da Orta, Capello e Ivens, Serpa Pinto, Sisenando Marques, Stanley, Henrique de Carvalho, Levingstone, Ficalho, Lopes Mendes, Pedroso Gamito, Dalgado, e outros, pude colher notícia de muitos centenares de espécies vegetaes, que ainda hoje valorizam o nosso império colonial e que, pela primeira vez, enriquessem agora um diccionário da língua; e, para o largo registo que faço da flora brasileira, de muito me serviram os largos de estudos do Dr. Caminhoá, de Del-Vecchio, de Araújo Amazonas, de Brás Rubim, de Beaurepaire-Rohan, etc.

Na própria Botânica do nosso país, e não obstante o muito que já lhe consagraram outros diccionários, tive ensejo de reconhecer, pelos livros dos nossos ampelógraphos, pelos relatórios dos agrónomos, pelos jornaes de agricultura e pelo trato directo com a gente do campo, que muitos frutos e muitíssimas espécies de plantas úteis ainda não pertenciam á lexicographia, tendo eu que registar mais de 1:500 variedades de videiras, e numerosos frutos, que entraram há muito na linguagem do povo e que só agora entram no vocabulário português.

 

Na parte scientífica do meu léxico, não foi sómente a Botânica o que me abriu campo extenso e diffícil: a Chímica não me offerecia muito menores difficuldades.

Relendo livros e consultando professores, também me surgiam hesitações sôbre o ponto até onde deveria estender-se o registo da nomenclatura chímica num diccionário da língua. Depois de haver colhido nesse campo muitíssimo mais do que os meus confrades em lexicographia, suspendi a colheita quando conheci a impossibilidade ou a desnecessidade de proseguir. Foi quando vi que os chímicos, lutando com a difficuldade de designar um composto por uma palavra normalmente organizada ou derivada, formavam de muitos elementos um só termo, que só poderá quadrar ás altas especulações scientíficas ou ás memórias secretas dos laboratórios. Para um diccionário, pareceu-me inútil, se não muito estranhável, aproveitarem-se fórmulas como esta: paranitrophenyldehydrohexonecarboxýlico; ou como esta: oxyditrichloroethylidenadiamina.

Quando muito, vocábulos com dimensões análogas, só me aventurei a registar a pentadecylparotolylcetona, pela sua estreita relação com a radioscopia; phenylhydroquinazolina, e pouco mais.

E não foi só a exagerada complicação das fórmulas adoptadas recentemente pelos nomencladores chímicos o que fez sustar o passo nas minhas excursões por aquella província do saber humano; foram também, não direi o abuso, mas o arbítrio, com que a pharmacologia de hoje se dá ao apparatoso luxo de inventar vistosos rótulos para os seus productos, á custa da Chímica e da Pathologia.

Entretanto, pelo esfôrço próprio e pela cooperação de alguns dos nossos mais notáveis homens de sciência, consegui registar largamente a nomenclatura chímica, em visível desproporção com o que até agora, e a tal respeito, se tinha feito em trabalhos congêneres.

 

Com a Entomologia, vi que se davam factos análogos. Se eu me despreoccupasse de outras considerações e attendesse exclusivamente ao plausível intuito de registar vocábulos que não há noutros diccionários da língua, ampliaria desmedidamente a colheita que fiz naquella especialidade scientífica. Tenho effectivamente ao meu alcance os nomes de milhares de insectos, nomes que eu não registo, não só porque o bom senso e a lexicologia estabelecem limites entre um diccionário da língua e um diccionário especial, senão também, e principalmente, porque procurei dar ao meu trabalho a possível unidade e refugir ás desproporções, de que enfermam outros léxicos, nomeadamente, a meu vêr, o grande diccionário de Larousse.

E, contudo, nenhum diccionário português apresentou ainda tão copioso vocabulário entomológico, como o diccionário que estou prefaciando.

 

Em Ornithologia, consegui refundir lexicographicamente o respectivo vocabulário, não só ampliando com centenares de variedades o registo, por outros feito, das aves portuguesas, mas também dando dellas noção mais exacta, do que aquella que até hoje podiamos adquirir pelos diccionários.

E, de facto, é vulgaríssimo vermos definidos, como nomes de animaes diversos, o gaivão, o zirro, o pedreiro, o guincho, o ferreiro, o andorinhão, o arvião, o catavento; quando, afinal, eu pude verificar que todos êsses nomes, — cada qual em sua província ou localidade, — são dados á mesma ave, o gaivão, embora um ou outro sirva excepcionalmente para designar, ao mesmo tempo, outra ave.

O mesmo succede com o abibe, cujo nome varía de região para região, podendo nós, se percorrermos o país inteiro, ouvir que lhe dão os nomes de bibes, víbora, abesconhinha, avetoninha, ave-fria, gallispo, matoninha, verdizella, choradeira, galleno, coím, donzella-verde, galleirão, avecoínha, còninha; além de que, na Madeira, esta ave tem os nomes de bibi, bisbis, guizinho, melrinho-das-urzes, melrinho-da-serra, melrinho-dos-pereiros, pintasilgo-derrabado.

E mais extraordinária é ainda a megengra, que, variando o nome, segundo as localidades ou regiões, chega a reunir os seguintes nomes: chapim, cedovém, patachim, pinta-caldeiras, fradisco, fura-bugalhos, ferreiro, mezengro, parachim, cachapim, papa-abelhas, chincharavêlha, fradinho, semeia-linho, chinchinim, caldeirinha, rabilongo!

Êstes e outros factos análogos, facilmente verificáveis, dão-me a persuasão de que a parte ornithológica desta obra revela os devidos escrúpulos, o possível rigor, e sensíveis melhorias na lexicographia nacional.

O autor, neste caso e em casos semelhantes, não fala por vaidade nem faz alarde de serviços e méritos: julga cumprir um dever, historiando os seus processos e o seu trabalho, para auxiliar o leitor no conhecimento e avaliação da obra. Contraprovadas por êste as allegações e os factos, fica-lhe o pleníssimo direito de julgar a obra como lhe aprouver. Mas, antes que a julgue, requeiro que me oiça.

 

A Ichthyographia e a Conchyliologia também me facultaram importantes acquisições lexicológicas, por intermédio dos autorizados estudos de Felix Capelo, Barbosa du Bocage, Baldaque da Silva, A. Girard e muitos outros.

 

Mais importantes ainda fôram as contribuições que eu devo á Anatomia, á Medicina geral e, especialmente, á Ophtalmologia, á Psychiatria, á Homeopathia, á Electrotherapia, etc.

Os mais conspícuos especialistas nestas sciências distinguiram-me com as suas luzes, com os seus livros, com o seu carinhoso auxílio, o que me autoriza a affirmar que em nenhum diccionário português essas sciências lograram ainda tão largo espaço como na presente obra.

O mesmo se póde dizer da Radiographia, da Veterinária, da Agricultura, da Geologia, da Architectura, das indústrias fabris, da Náutica antiga e moderna, da Pedagogia, da arte militar, da Velocipedia, do Espiritismo, dos offícios mecânicos, da Jurisprudência, das antiguidades gregas e romanas, da Ethnologia, dos jogos, danças, e usos populares, etc., etc.

Procurei não omittir os mais recentes descobrimentos em qualquer esphera da actividade humana, — o cinematógrapho, a icérya, o radioscópio, a melinite, o acetylene, e tantíssimos outros; e, dando ao meu trabalho feição sensívelmente encyclopédica, obedeci ao propósito de basear em novos processos uma obra que, não podendo têr tudo, tivesse ao menos alguma coisa de tudo e de novo.

Notas editar

  1. De passagem advertirei que ao diccionarista consciencioso mais de uma vez se deparam difficuldades no registo dos vocábulos brasílicos. Como os Tupis não tinham língua escrita, muitos vocábulos, que delles procederam, apparecem hoje escritos por mais de uma fórma, segundo o arbítrio de quem escreve. Assim é que, — referindo-me apenas a alguns vocábulos da letra G, — vejo na imprensa do Brasil as variantes gopiara e gupiara, gariroba e guariroba, gurandirana e guarandirana, gurejuba e gurijuba, guaiamum e goiamum, goiaba e guayaba (fórma preferida por Beaurepaire-Rohan), etc.
    Sobretudo longe do Brasil, não é nada fácil decidir qual das variantes de um vocábulo brasílico é a exacta ou, pelo menos, a preferível. Em taes condições, julgo que andei bem avisado, registando as variantes que se me depararam, e remetendo o leitor para a fórma vocabular, que mais corrente se me afigurava. A exegese dos eruditos brasileiros, — que os há e muitos, — poderá resolver a dúvida em última instância, e os seus acórdãos acatarei como devo.

    (Nota desta 2.ª edição).