Candido de Figueiredo 1913/Volume 1/Conversação preliminar/III

III

Processo da obra


Reunidos os materiaes através de duas dezenas de annos e á custa de incompensáveis fadigas, dois caminhos se me antolhavam: — Organizar um desenvolvido diccionário que poderia abranger seis a oito grossos volumes; ou synthetizar aquelles materiaes no mais limitado espaço.

Na primeira hypóthese, seria mister um editor arrojado, se não temerário, o que é raro; e ao autor, seria mister vida longa, o que é ainda mais incerto. Aventurei-me á segunda hypóthese, e nem por isso foi menos arrojado o meu saudoso amigo e honradíssimo editor[1], que não hesitou em jogar sôbre o meu trabalho uma dezena de contos de réis.

Uma condição me impôs apenas: reunir todos os materiaes, colhidos por mim, a tudo que os outros diccionários tivessem de aproveitável, e organizar uma obra, cujo preço a não tornasse incompatível com os recursos pecuniários da maioria do público que lê.

Daqui a índole visivelmente sinthética do Novo Diccionário. A quem ella não aprouver bastará ponderar que uma sýnthese em dois grossos volumes só por convenção se chama sýnthese e corre já o perigo de exceder a condição do editor e as intenções do autor.

Obedecendo a estas e àquella, na redacção primitiva do Diccionário não havia sequer uma citação de autor ou de obra estranha. Por êsse lado todavia, — e só por êsse lado, — senti não têr de recomeçar a obra, porque reconheci a conveniência de justificar com uma autoridade o registo de tal ou tal vocábulo, de tal ou tal accepção.

Era tarde para voltar atrás, e seria quási impossível recordar, entre centenares de livros, o livro e a página que contribuiu para o meu vocabulário.

Como porém um triste successo retardou por dois annos a publicação da obra, e como até hoje nunca cessou a colheita de novos vocábulos e novas accepções, pude remediar o que era remediável, e, nas novas colheitas, pude justificar com citações succintas o registo de um ou outro vocábulo, de uma ou de outra accepção.

A linguagem não é inventada pelos diccionaristas: falada ou escrita, registam-na, e deixam a responsabilidade della aos que a criaram.

Mas há circunstâncias, em que a menção de um vocábulo poderia sêr apodada de destempêro pelos leitores mais inclinados á maledicência do que á justiça.

Assim, quando eu registo um barbarismo inútil ou um neologismo ousado, a crítica fácil poderia suppor que eu inventei, ou que perfilho, como escritor, a novidade, se eu não lançasse o termo á conta alheia, citando o inventor ou o patrono. Estão nêste caso os neologismos mesmice, desenfechar, e tantos outros.

Da mesma fórma, se eu registasse os advérbios mulhermente, lucreciamente, lapantanamente, o substantivo manticostumes, o adjectivo minotaurizado, difficillissimo, digressoar, dormitólogo, donairíssimo, fósmea, flavibico, clystermente, etc., e não mostrasse logo que essas originalidades são da responsabilidade de Filinto, Camillo, etc., poderiam suppor ingênuos que eu estava brincando com quem me lê[2].

Por outro lado, colligi numerosos vocábulos, cuja significação não resalta do texto em que se me depararam. Claro é que, em tal hypóthese, o processo preferível é registar o vocábulo e citar o texto respectivo, para que os leitores o interpretem, se puderem.

Muitas vezes, se não quási sempre, as referências a obras alheias levam a indicação do tomo e página respectiva, não só para se facilitar a contraprova ao leitor escrupuloso, se não também e principalmente para obviar ás supposições gratuitas de críticos praguentos e mal intencionados, que, julgando por si os mais, admittem a possibilidade de que qualquer escritor tenha a improbidade de inventar citações por conveniência própria.

É verdade que, em muitos casos, a obra citada teve duas ou mais edições, e é diversa a paginação destas, difficultando assim o cotejo. Em todo caso, a difficuldade não é impossibilidade; importa apenas algum trabalho para o crítico mais minudencioso, por têr de consultar diversas edições da mesma obra.

Excepcionalmente, cito uma ou outra locução sem indicar as fontes escritas, porque a recebi da linguagem oral ou dos registos avulsos e dispersos do falar do povo, como as canções populares, os prolóquios, etc.

 

Seguindo bons exemplos, — e bastar-me-ia o de Littré, — registei, a par do vocabulário português, alguns vocábulos e locuções que pertencem a outras línguas, mas que são, mais ou menos commummente, usados e, em geral, necessários em nossa linguagem falada e escrita. Taes são deficit, Te-Deum, item... Tive porém o cuidado de os preceder da indicação de alheios ao português e de indicar a língua a que pertencem, para que, ao escreverem-se, sejam devidamente sublinhados ou griphados, não vá alguém confundi-los com o que é lidimamente nosso.

 

Há toda a conveniência, e de bom grado a subscrevo, em que se annotem de archaísmos os termos que se afastam da linguagem commum do nosso tempo e da prática dos mestres contemporâneos. Reconheço porém a difficuldade de, em muitos casos, capitular de archaico um termo que, pela primeira vez, nos occorre em documento antigo. Nenhum de nós, os que escrevemos, conhece metade dos termos da sua língua, e, como já notei, muitos julgarão archaico um vocábulo, que só vimos usado em escritores quinhentistas ou pre-quinhentistas, e que póde deparar-se-nos acaso no uso corrente de alguma região portuguesa, e até na escrita de algum escritor moderno.

Entretanto, não poupei a nota de antigos ou de simplesmente desusados aos vocábulos que me parecem não têr chegado ao uso do nosso tempo ou, pelo menos, aos escritores portugueses do último século.

Essa nota porém não quere dizer que todos êlles sejam pertença exclusiva de épocas findas e que não possam nobilitar e enriquecer a escrita moderna, embora a adaptação dependa de muito bom senso, alguma autoridade, e de opportunidade sempre. Succede, até, que muitas expressões, realmente de cunho antigo, tendo pertencido a usos e instituições que passaram, hão de necessariamente empregar-se ainda hoje, sempre que tenhamos de nos referir a essas instituições e usos.

Temos disso copiosos exemplos em Herculano.

A simples indicação, que eu faço a revêzes, de que um vocábulo é gallicismo, significa que a palavra proveio directamente do francês, o que não implica a sua condemnação em nome da vernaculidade portuguesa; podem arrecear-se della os puristas, mas nada prova que ella não possa consubstanciar-se, ou não venha a consubstanciar-se, no corpo da nossa língua.

Há gallicismos de gallicismos: e, quando êlles se me afiguram inúteis, violentos ou disparatados, inscrevo-lhes ao lado o cave canem do prudente aviso.

Quanto á disposição das várias accepções de cada vocábulo, segui, ás vezes, o processo da Academia Francesa, dando o primeiro lugar á accepção mais vulgar ou conhecida, quando a accepção primitiva é inteiramente obsoleta, e deixando esta para o fecho do artigo. Em regra, porém, e de acôrdo com os mais autorizados lexicógraphos, dou o primeiro lugar á accepção natural ou primitiva, consignando sucessivamente a extensiva e a figurada, quando para um vocábulo há variedade de accepções.

  1. O finado proprietário da casa editora Tavares Cardoso & Irmão, Sr. Avelino Tavares Cardoso.
  2. Sobretudo nesta nova edição, embora succintamente, pude abonar com textos dos mestres o emprêgo e as accepções de milhares de vocábulos menos vulgares, ou pouco conhecidos; e rara é a pagina, em que certas accepções vocabulares não sejam acompanhadas de exemplos, — o que sem dúvida representa um dos mais sensíveis melhoramentos desta edição.

    (Nota desta nova edição).