Capítulo I

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Dois rapazes estão sentados a uma mesa da casa do Carceller, tomando sorvete e conversando pacificamente de vários assuntos seus.

Um deles tem vinte e cinco anos; é alto; muito claro; e tem a inefável felicidade de possuir um par de bigodes compridos e encaracolados. Digo a felicidade porque ele de quando em quando volta o rosto para o espelho que lhe fica ao pé, e afaga com amor o artefato da natureza e do barbeiro.

É baixo o outro, moreno, e também dotado de um par de bigodes, infinitamente menores que os do outro, e pouco mais que um buço.

E contudo é ele muito mais velho que o primeiro; tem trinta e quatro anos, e não parece. Ninguém lhe daria mais de vinte e seis.

Araújo é o nome deste; o nome do outro é Soares.

Conversavam eles, como disse, de assuntos seus, quando Soares, que ficava de frente para a rua, disse repentinamente:

— Que é aquilo?

— O quê? disse Araújo voltando a cabeça.

Aquilo era uma mulher que nessa ocasião estava parada em frente da porta do café conversando com um homem. Mas essa mulher era conhecida de Soares? Não. Conhecia ele o homem? Ainda menos. De onde vinha o espanto do rapaz?

Vinha o espanto de ser a dita mulher uma formosíssima criatura, uma dessas belezas que arrancam de dentro uma exclamação, quando não atiram para dentro uma faísca devastadora. Desculpem o estilo, que não vem fora de propósito.

Era alta, morena, perfeitamente vestida, mas com exagerada simplicidade. Esta circunstância podia arredar do espírito de estranhos a suspeita de que fosse alguma dama da moda; mas havia ainda outra circunstância: o homem que com ela falava fazia-o com evidente respeito. Sobre todas estas circunstâncias ocorria uma, talvez mais decisiva: nenhum dos dois rapazes conhecia aquela moça, e eles eram os mais instruídos viajantes do mundo equívoco e não equívoco.

— Quem é? perguntava o Araújo com os olhos pregados na bela senhora.

— Não conheço.

— E aquele sujeito?

— Também não.

A moça, entretanto, pouco se demorou; estendeu a mão ao cavalheiro, que lha apertou com delicadeza e respeito, e enquanto este caminhava para o lado do Carmo, ela seguiu para o lado da Rua do Ouvidor.

— Bela mulher! exclamou Araújo voltando à sua posição e concluindo o resto do sorvete.

— Soberba! concordou Soares.

E, continuando uma conversa que a presença da mulher interrompera, disse:

— Aí está! Aquilo sim; com uma mulher tão excepcionalmente bela, compreendo eu que um homem case; mas casar por casar!

— Não há só aquela, observou Araújo.

— Mas como aquela não há muitas.

— Concordo.

— Com aquela é que eu queria ver-te unido.

— Eu?

— Sim, continuou Soares; não me dizes que andas com idéias matrimoniais? Pois casa com a mulher que ali esteve. Anda! Vê se enches de inveja todos os rapazes.

Araújo levantou os ombros.

— Não és homem de romances, já vejo.

— Por quê?

— Agora é que era verdadeira África da tua parte ir daqui atrás dela, ver onde morava, namorá-la, casar… se fosse possível.

— Duvidas?

— Duvido! disse Soares rindo.

Araújo estendeu a mão.

— Toca! está dito.

— Deveras?

— Deveras.

Araújo chamou o caixeiro, pagou a despesa, deu o braço a Soares e saiu na direção da Rua do Ouvidor.

Os olhos de ambos interrogaram todas as lojas e estendiam-se pela rua adiante sem descobrir vestígio da formosa dama.

— Perdida! exclamava Soares.

— Não! dizia Araújo; apressemos o passo e vamos até o Largo de São Francisco de Paula.

— Não tem que ver! foi-se embora, disse Soares chegando ao fim da rua. Estás livre da tua palavra.

— Não!

— Como não?

— Não estou livre; obrigo-me a casar com ela… salvo o caso de ela não querer.

— Mas onde a acharás?

— Em alguma parte.

— Ainda que seja daqui a vinte anos?

— Não; dentro de três meses.

— Estás doido?

— Estou em meu perfeito juízo, disse Araújo. Disseste há pouco que eu não era homem de romances, e eu não tenho feito outra coisa em minha vida. O meu nascimento foi um capítulo de romance; eram duas horas da manhã…

— Passaremos adiante, interrompeu Soares rindo; passons au déluge. És então capaz de a achar e casar com ela dentro de três meses?

— Se ela quiser.

— Se tal fizeres declaro-te general.

— Aposentado… que é o que eu hei de ser então, concluiu Araújo.

— Mas tens algum indício a respeito dela?

— Nenhum.

— Bravo! quero ver a tua habilidade.

— Ou a minha fortuna.

Neste ponto achavam-se os dois rapazes à porta da Casa Garnier; Soares entrou para pedir o Jornal das Famílias, por encomenda que de casa lhe fizeram, enquanto Araújo algum tempo hesitou na direção que devia tomar. Afinal subiu a rua e foi para casa. Morava na Rua do Conde.

Capítulo II

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Digamos a verdade:

Araújo quando se despediu do amigo não pensava seriamente na promessa que fez. Sua intenção era gracejar com Soares, e rir-se dele a primeira vez que o encontrasse. Em caminho porém, pensou muito na dama que acabava de ver na Rua Direita.

— E se eu com efeito lograsse encontrá-la? ser amado? casar com ela? Era um estrondo na vida pacífica desta cidade; durante três dias falava-se na minha odisséia; o meu romance adquiriria logo proporções de acontecimento…

E como era um espírito aventuroso, dispôs-se definitivamente ao romance e ao cumprimento da promessa.

Mas onde encontraria a dita moça?

Essa era a questão.

Araújo chegou a casa e entrou a conjecturar nos meios de achar o perdido.

Primeiramente, assentou de voltar ao café e perguntar aos diversos caixeiros, com toda a habilidade, já se vê, se haviam visto a moça e se a conheciam. Ao mesmo tempo perguntaria se conheciam o homem que com ela conversara algum tempo. Caso não obtivesse nenhuma informação por esse lado, adotaria um sistema que lhe parecia muito útil: era ir a todos os teatros, saraus, missas de sétimo dia, andar em todos os bairros e ruas, procurar enfim por todos os modos neste grande palheiro fluminense a formosa agulha que desejava possuir.

Os caixeiros não tinham visto ninguém; não se lembraram pelo menos das pessoas a quem aludia o Araújo. Um deles ainda respondeu de um modo afirmativo à pergunta do rapaz.

Imaginem a alegria com que este o ouviu.

— Um homem de suíças pretas? disse o caixeiro.

— Isso mesmo, respondeu Araújo; conversava com uma moça alta…

— Sei quem é.

— Quem é? perguntou Araújo com ansiedade.

— Não sei o nome; mas é o mesmo; ele costuma vir aqui todos os dias tomar sorvete.

— Aqui embaixo?

— Sim, senhor; lá ao fundo.

— A que horas?

— Não tarda aí.

Araújo esperou cerca de vinte e cinco minutos. No fim desse tempo, veio o caixeiro ter com ele e apontou para um homem que no fundo do café tomava sorvete.

Araújo olhou para ele.

Maldição!

Era um deputado, ex-ministro, que Araújo conhecia perfeitamente e que se parecia tanto com o homem da véspera como um ovo com um espeto.

Araújo saiu quase furioso.

Restava-lhe o sistema de locomoção.

Logo nessa noite foi Araújo a três espetáculos; em nenhum deles viu nada que se parecesse com a moça.

— Não importa, dizia ele consigo; eu hei de achá-la.

Raras vezes ia a soirées; mas agora não só comparecia a todas como procurava ser convidado para elas. Apenas entrava nas salas começava a percorrê-las com ansiedade, mas todos os seus esforços tinham sempre o mesmo resultado, que era nenhum.

Não perdia ocasião de falar no caso da moça com quem tinha mais intimidade. Aos homens não falava por temer o riso deles. Nenhuma informação, entretanto, colhia que o satisfizesse.

Seus passeios eram continuados. Até então andara pouco a cavalo; agora, porém, era esse o seu gosto favorito. Não houve bairro que ele não freqüentasse, desde a Lagoa até à Gamboa, desde São Cristóvão até o Andaraí. Da cidade não deixou de visitar uma rua que fosse; nunca teve o gosto de ver nada que se parecesse com a bela desconhecida.

Dois meses se passaram nesta luta inglória.

Duas outras vezes se encontrara com o Soares, que lhe pedia novas da aposta.

— Por ora nada.

— Tens pesquisado alguma coisa?

— Muito.

— E ainda tens esperanças?

— Não devia ter nenhuma, respondia Araújo; mas tenho.

E de novo se atirava ao trabalho de todos os dias com multiplicado ardor.

Em alguns teatros se admiravam às vezes de ver um homem que só entrava alguns minutos, e logo se retirava. Os mendigos das portas das igrejas perguntavam quem seria aquele que ia a todas as missas fúnebres, sem todavia esperar pelo final delas. A explicação deste mistério ninguém sabia qual fosse.

Os amigos de Araújo também se admiravam do prurido de locomoção que se apoderara dele; mas não sabiam explicar a causa dele.

— Namoro não é, dizia um, porque ele anda em todas as ruas e vai a toda a parte…

— Maluquice, também não, acudia outro, porque ele perdeu há muito o pouco juízo que tinha.

Cada qual comentava o fato a seu modo e perdia-se em conjecturas; ninguém se atrevia a afirmar nenhuma coisa decisiva a esse respeito.

Eram entretanto passados dois meses e meio e a situação de Araújo não havia mudado. O pobre rapaz estava já próximo do desânimo. Um dia levantou-se com a idéia de ir rir-se de si mesmo em companhia de Soares, quando uma idéia o assaltou subitamente.

— Sim, disse ele. Vou tentar o meio; se não der resultado nenhum, é apenas um ou dois dias mais de demora.

Assentou-se à mesa, pegou numa folha de papel e escreveu:

Uma formosa senhora esteve no dia 4 de junho em frente do café Carceller, conversando com um senhor de suíças pretas. Era alta, morena, e trajava de roxo. Se na terra não há felicidade para ela, um seu admirador a espera, para ser seu marido, Carta a Z. Z. Z.

Escrito este singular anúncio mandou-o inserir no Jornal do Commercio, e ficou à espera.

Capítulo III

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No dia seguinte de manhã cedo o sr. Fonseca, depois de almoçar pacificamente no Hotel das Quatro Nações, à Rua da Assembléia, pediu o Jornal e leu o anúncio acima transcrito. Há pessoas que lêem anúncios por gosto; o sr. Fonseca lia-os por necessidade. Era um dos seus muitos elementos de vida; em duas palavras, o sr. Fonseca era um cavalheiro de indústria.

A redação do anúncio picava-lhe a curiosidade. Fez logo uma série de conjecturas acerca daquelas poucas linhas impressas. Saber ler pelas entrelinhas é um grande talento, que o sr. Fonseca incontestavelmente possuía.

— Quem quer que é tem dinheiro, pensava ele com os olhos ora no Jornal, ora no teto, ora na rolha da garrafa. Esta formosa senhora, morena, alta e vestida de roxo, pode ser alguma criatura de condição vulgar, mas palpita-me que não; cheira-me a pessoa elegante, e nesse caso o anunciante não se atreveria a propor-se em casamento se não tivesse também alguma coisa com que aparecer. Mas por que não declarou ser rico?

Houve uma pausa no seu espírito.

— Ah! já sei, disse ele; receou ofender a suscetibilidade da formosa senhora. É um homem polido… e tolo, creio eu. Tanto melhor, não me dou com espertos e malcriados. Carta a Z. Z. Z. Que querem dizer estas letras? Serão também simbólicas? Três vezes zebra, talvez quisesse dizer de si mesmo o anunciante. Pois, senhor, é comigo.

Saiu o sr. Fonseca do hotel, foi à casa (era um cubículo na mesma rua), escreveu uma carta e levou-a ao Jornal do Commercio.

— Esperemos o resultado, pensou ele.

Saía entretanto de casa o nosso Araújo com o coração palpitante. Alcançaria ele algum vestígio? O anúncio estava em letras grandes, talvez ela o lesse, e se o lesse havia de lembrar-se que estivera conversando com um homem à porta do Carceller pouco mais ou menos na data a que o anúncio se referia. Nesse caso, responderia ao anúncio?

Tal era a questão.

— Tem carta para Z. Z. Z.? disse ele entrando no escritório do Jornal.

Apontaram para a caixinha das cartas; abriu-a com mão trêmula. Céus! Havia uma carta. Araújo tirou-a rapidamente e quis ali mesmo abri-la e lê-la; havia porém tanta gente que julgou melhor sair. Embicou então para uma loja conhecida e aí abriu a misteriosa missiva.

Dizia assim:

Se o anunciante deseja ter informações positivas acerca da formosa senhora de que se trata, dirija-se amanhã, ao meio dia em ponto, ao Carceller, primeira mesa do lado esquerdo, logo à entrada.

Pouco era, mas era já muito depois de quase três meses de estéreis pesquisas. Um raio de esperança começou a luzir no horizonte de Araújo.

— Enfim! exclamava ele consigo. Vou saber quem ela é, e o resto deverei ao esforço. Foi boa a idéia do anúncio; se o não faço tinha já a partida perdida. Mas por que será amanhã e não hoje a entrevista? E quem será o meu correspondente?

Fazendo esta pergunta, que devera ser a primeira, Araújo encostou-se a duas hipóteses que lhe pareceram exclusivas:

1º — Seria o homem das suíças com quem ela falara?

2º — Seria alguém a quem ela incumbira de sondar o terreno?

— Em qualquer destes casos, continuou Araújo, estou bem. Se for o homem das suíças deve conhecê-la perfeitamente, e quem sabe até se não é seu parente? Se for algum enviado dela ainda melhor, porque é meio caminho andado. Quererá talvez ter notícia das minhas graças e da minha posição antes de aparecer. Não receio o exame.

Feitas estas consoladoras reflexões, Araújo aguardou ansiosamente o dia seguinte. A noite foi cruel para ele; estava curioso de conhecer a situação e a mulher, e como pensasse em ambas, o sono fugia-lhe dos olhos, e o pobre Araújo velava como se fosse um calouro.

O que mais o atormentou porém foi uma idéia que repentinamente lhe surgiu no espírito.

Se o autor do anúncio fosse o Soares?

Esta idéia veio abalar o castelo de projetos que o rapaz já fazia. Se fosse o Soares era um desenlace imensamente ridículo. Só muito depois das quatro horas da madrugada conseguiu Araújo adormecer. Às oito estava de pé. Faltavam quatro horas para a hora da entrevista; quatro séculos para ele, e ao mesmo tempo quatro minutos, se o anunciante fosse, como lhe pareceu possível, o próprio amigo citado.

Era preciso tomar uma resolução.

Às onze horas e meia dirigiu-se para o Carceller; quando chegou faltava um quarto para o meio dia.

Entrou; olhou para a mesa indicada na carta e viu sentado um sujeito desconhecido, que não era o das suíças. O sujeito olhou para ele. Este olhar de ambos fez com que se reconhecessem. Araújo aproximou-se do desconhecido e este levantou-se.

— Falo ao sr. Z. Z. Z.? perguntou o sr. Fonseca.

— Em pessoa.

O sr. Fonseca indicou a Araújo o banco que ficava do outro lado da mesa e sentaram-se ambos.

— A cerveja? perguntou Fonseca a um caixeiro que passava.

— Já ali vem.

— Traga dois copos. Bebe cerveja, não?

— Bebo, respondeu Araújo que estava mais ansioso por saber do mistério do que por beber coisa nenhuma neste mundo.

Depois, reparou que acabava de receber um obséquio sem saber de quem lhe vinha e perguntou por sua vez:

— E o senhor, que toma além de cerveja? Que poderei mandar vir?

— Veremos depois. Vamos a isto primeiro.

Chegava a cerveja. Fonseca ofereceu um copo e tomou outro para si; beberam silenciosamente meio copo e, feito isto, tomou Araújo a palavra:

— Achou singular aquele anúncio, não?

— Não, respondeu Fonseca sorrindo; eu sei o que isso é… Também já senti desses caprichos.

— Estava eu aqui com um amigo, continuou Araújo, e tomávamos sorvetes. Parou em frente a pessoa de quem lhe falo, e posso dizer que a sua beleza me deslumbrou!

— Acredito.

— Conhece-a de perto?

— Sim, senhor.

— Posso saber enfim quem é? perguntou Araújo com ansiedade. Fonseca bebeu o resto do copo e disse:

— Ainda não; não tenho ordem para isso. Gosta muito dela? Araújo achou que era de boa política mostrar e exagerar por um sentimento que ainda não tinha; pintou portanto uma paixão louca. Fonseca ouviu-o com muito interesse, sem tirar os olhos de cima; estudava-o.

Quando Araújo acabou de falar, disse ele:

— Tem meio caminho andado; vejo que a ama. Se soubesse como ela é romanesca saberia logo que o sentimento que o senhor tem é a melhor chave da felicidade de ambos. Josefina…

— É esse o nome dela? interrompeu Araújo.

— É.

— E o senhor é seu parente?

— Sou primo dela.

Novo gole de cerveja.

Araújo estava entusiasmado. Achava no desconhecido uns modos tão polidos, uma circunspeção tão natural, que lhe deu logo boa idéia dele e da moça.

— Josefina é muito romanesca; é esse o seu defeito, dizia o pai; eu digo que é a sua qualidade. Que seria esta vida sem um pouco de romance e poesia? Uma sepultura turbulenta.

— Tem razão…

— Quando lhe morreu o marido…

— É viúva?

— Há um ano. Quando lhe morreu o marido…

Neste ponto foram interrompidos; um personagem novo entrara no café e dirigira os passos para Fonseca.

Capítulo IV

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Era um sujeito alto, de paletó preto, chapéu de pêlo de lebre, e calças de cor. Tinha feições sinistras. Seus modos eram grosseiros e insolentes.

— Ainda bem que o vejo! graças a Deus que o encontro! Fonseca fez-se pálido como um defunto.

— Agora espero que me não escapará.

— Faça o favor de não falar tão alto… disse Fonseca olhando em volta de si. Se me não tem encontrado não sou eu culpado nisso; não fujo de nada e muito menos de um dever.

Ditas estas palavras com grande dignidade, Fonseca meteu a mão na algibeira e sacou a carteira.

— Quanto é a minha conta? perguntou.

— Setenta e dois mil-réis.

— Traz o recibo?

— Posso passar-lho aqui mesmo.

— Bem.

Enquanto o outro apresentava a conta, Fonseca abria a carteira e pedia desculpa a Araújo daquele incidente.

Araújo apressou-se a dizer algumas palavras obsequiosas.

Mas fatalidade! A carteira de Fonseca estava vazia! Com a pressa de sair esquecera-se de trazer dinheiro. Contou isso mesmo ao credor e disse que depois…

— Não há depois nem meio depois! exclamou o credor; eu quero ser pago já.

— Bem, nesse caso espere aí a uma mesa, tome alguma coisa por minha conta, e quando eu sair daqui iremos juntos à casa…

— Não, senhor, tenho mais que fazer; se quer ir à casa vamos já; mas não espero.

— Que lhe parece? disse Fonseca voltando-se para Araújo; são todos assim. Adiemos a nossa entrevista para amanhã; eu vou à casa…

— À casa? interrompeu Araújo. Não ouso oferecer-lhe o meu préstimo; mas como eu também costumo esquecer dinheiro, posso, se o não ofendo com isto…

Araújo disse estas palavras já com a carteira na mão.

— Oh! Isso nunca, disse Fonseca.

— Por quê? perguntou Araújo tirando uma nota de cinqüenta mil-réis, uma de vinte e uma de dois. Amanhã me prestará o mesmo serviço. Faça o favor de passar o recibo, continuou ele para o credor de Fonseca, aqui está o dinheiro.

O desconhecido foi ao balcão, passou o recibo, entregou-o a Fonseca, e retirou-se.

— Este recibo é seu, disse Fonseca a Araújo.

— Oh! seria uma injúria!

Fonseca ficou com o recibo e a conversa continuou.

— Dizia-lhe eu…

— Que quando lhe morreu o marido.

— Sim, quando lhe morreu o marido ela quis voltar para a sua província, que é o Rio Grande do Sul. Mas uma tia nossa com quem ela mora pediu-lhe que ficasse residindo aqui, e ela ficou. Quando o senhor a viu estava ela com outra senhora?

— Não, estava só.

— Sai às vezes só.

— E quem seria o homem que…

— Ah! pelos sinais deve ser o Ildefonso, de Camacuã. Já voltou para o Rio Grande. É nosso conhecido de lá.

— Mas que parece da minha situação? Posso esperar que…

— Eu vim apenas incumbido de conversar com o senhor, e (sejamos francos) de o examinar também. Vejo que é homem distinto, polido e elegante.

— Pode acrescentar, disse Araújo com certa hesitação, pode acrescentar que tenho alguma coisa…

— Oh! isso para ela é o menos.

— Quando poderemos encontrar-nos?

— Amanhã… não… depois de amanhã…

— Em minha casa, Rua do Conde, número…

— Muito bem, lá lhe levarei os setenta e dois mil-réis.

— Por quem é…

Fonseca apertou agradecido as mãos de Araújo, que lhe fez o mesmo com agradecimento igual.

— Poder-lhe-ei chamar brevemente meu primo? disse Fonseca sorrindo.

— Parece-lhe?

— Estou certo.

Despediram-se.

Nessa mesma tarde Araújo esteve com Soares.

— Então? perguntou-lhe este.

— Tudo vai bem.

— Achaste-a?

— Quase.

— Então, breve…

— A aposta é minha.

— Bravo!

Araújo descansou logo do trabalhão em que andava naqueles últimos oitenta dias. Esquecera-lhe de perguntar a morada de Fonseca, para o caso de se demorar a resposta; mas ao mesmo tempo lembrou-se de que isso pudera ser inconveniente, visto haver-lhe emprestado dinheiro.

Imagine o leitor com que ansiedade o nosso namorado esperou que chegasse o dia aprazado para receber a resposta da moça. Chegou enfim o dia, e o Araújo cedo se levantou da cama, comeu pouco e ficou a esperar o mensageiro de boas novas. O tempo corria ou andava com a sua marcha ordinária; mas Araújo parecia que levava um peso de vinte arrobas nos pés. Enfim, ouviu bater palmas, mandou abrir a porta.

Era Fonseca.

Fonseca percebeu no rosto de Araújo a alegria que a sua presença lhe causava e compreendeu bem a superioridade que tinha sobre ele. Cumprimentaram-se com afabilidade, acenderam charutos, e depois de algumas palavras indiferentes, rompeu Fonseca com esta notícia:

— O senhor é um homem feliz!

— Sim?

— É verdade.

— Aceito?

— Perfeitamente aceito, salvo uma condição…

— Qual?

— A de agradar. Não imagina com que prazer ouviu a minha narração, que felicidade parecia transluzir-lhe no rosto. O amor assim por aventura afigurava-se-lhe a mais bela coisa deste mundo. Suas disposições são excelentes. Fiz uma justa descrição do seu desconhecido fg(589,’Bernardim’) Bernardim, e tanto bastou para entusiasmá-la. Quer contudo vê-lo antes de…

— Quando? quando?

— A princípio quis vê-lo sem ser vista. Objetei-lhe a dificuldade que havia, e ela concordou em que o senhor se encontrasse com ela em casa de terceiro. Conhece o José de Brito?

— Não.

— Dá no sábado próximo um sarau; arranjo-lhe um convite. Lá se encontrarão. Conhece-a bem?

— Perfeitamente.

— Eu o apresentarei a ela.

Araújo estava a estalar de contente.

— O senhor foi o meu anjo da guarda, disse ele.

— Não, respondeu modestamente Fonseca. O seu anjo da guarda foi o anúncio; se o não fizesse nada alcançaria… Agora peço licença para sair.

— Já?

— Já.

— Vamos juntos.

Araújo foi vestir um paletó, pôs o chapéu, calçou as luvas e saiu com o seu anjo salvador. Iam de braço dado. De repente Fonseca pára e diz:

— E não me ia esquecendo?

— De quê?

— De lhe pagar os setenta mil-réis…

— Ora! disse Araújo, puxando-o pelo braço.

— Perdão, replicou Fonseca com ar grave; esse gesto é uma ofensa, a que a nossa intimidade não nos dá ainda direito.

Araújo ficou arrependido do gesto e da resposta e murmurou:

— Há de perdoar; não quis ofendê-lo.

Fonseca ainda sério meteu a mão na algibeira.

— Há de me trocar duzentos mil-réis. Só tenho dez de miúdos.

— Quer dizer que tenho de lhe dar cento e trinta mil-réis de troco.

— Justo.

— Infelizmente não os tenho, respondeu Araújo, sorrindo.

— Não acredito.

— Olhe, disse Araújo mostrando a carteira; apenas trago sessenta e nove mil-réis.

— Pois bem, eu preciso de cinqüenta para pagar ali uma conta de carros na casa do Porto; dê-me cinqüenta, com os setenta de ontem fazem cento e vinte, e fica com a minha nota de duzentos; o que tem graça porque eu, sendo até agora seu devedor, passo a ser seu credor.

— Cinqüenta mil-réis? Aqui os tem.

Araújo contou os cinqüenta mil-réis e entregou-os a Fonseca.

— Agora tome lá a nota de duzentos, disse Fonseca abrindo a carteira, que até então se obstinava em não receber ar nem sol.

— Nunca.

— Nunca? exclamou Fonseca, interrompendo a operação.

— Não acha vilania ficar com uma nota sua como penhor?

— E acha bonito que eu fique assim com o seu dinheiro, como paga de serviços que o senhor avalia em grande coisa, quando na realidade eu não lhe tenho feito o menor obséquio deste mundo?

— Oh! por quem é, não tome as coisas assim! disse Araújo. Isto não são pagas de serviços: um homem que não tem troco pede dinheiro a outro, é a coisa mais natural do mundo. Vá, vá pagar a sua conta.

Fonseca insistiu em dar a Araújo a nota de duzentos mil-réis; mas Araújo recusou com tanta força que era impossível satisfazer tão legítimo desejo. Fonseca entrou pois com Araújo na cocheira e algumas palavras disse em particular a uma pessoa que ali se achava; foi com essa pessoa ao escritório. Ali examinou o empregado da casa se Teotônio da Anunciação (nome que o leitor e eu e o empregado, e talvez o gênero humano todo ouvimos pela primeira vez) era devedor da casa; o empregado examinou os livros e declarou que semelhante nome não estava inscrito neles. Araújo que examinava nessa ocasião riquíssimo coupé que ia sair, e pensava já encomendar um para o seu grande dia, nada viu da conversa entre o amigo e o dono da casa.

Capítulo V

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Apenas se acharam na rua, perguntou Araújo:

— Mas não me pode dizer uma coisa?

— O quê?

— Em que rua mora ela?

Fonseca sorriu-se.

— Impaciente! disse ele.

E continuou:

— É natural; vamos passar por lá; talvez esteja à janela e um grande passo fica dado desde já.

Encaminharam-se para os lados da Rua da Ajuda.

— É nesta rua? perguntou Araújo.

— É, respondeu Fonseca; vê aquela casa de persianas que ali está?

— Vejo.

— É ali.

— Há um vulto de mulher por trás das persianas.

— Talvez seja ela.

Iam pelo lado oposto ao da casa. Ao passar em frente viu Araújo que era uma moça, mas não a mesma.

— Não é ela…

— Não é, é a cunhada. Voltemos. Já fica sabendo a casa.

Despediram-se daí a pouco; Araújo contentíssimo com a situação, e Fonseca não menos satisfeito.

— Até depois de amanhã, disse este; lá lhe irei levar o convite… O resto à sorte. Adeus!

— Adeus!

Um aperto de mão vigoroso e amistoso selou estas relações de recente data. Fonseca apertou a mão do outro com a energia de quem o via pela última vez.

Importa-nos pouco saber os acontecimentos do dia seguinte, a não ser que Araújo passou três e quatro vezes pela Rua da Ajuda a ver se descobria a formosa incógnita. Mas em vão; a misteriosa prima do Fonseca parecia esquivar-se aos olhos do rapaz.

— Não importa, dizia este, vê-la-ei sábado.

No dia seguinte, que era sexta-feira, debalde esperou pelo convite; Fonseca não lhe apareceu. Estaria doente? Araújo esperou vê-lo no dia de sábado, mas nada. Foi à Rua da Ajuda, continuou a ver a moça já entrevista, uma velha e um menino, mas nada da misteriosa do Carceller.

Então a idéia dos cento e vinte mil-réis lhe apareceu no espírito com uma expressão irresistível. Araújo confessou a si próprio que havia sido, não só roubado, o que já seria muito, mas também ludibriado. Arrepelou-se, descompôs-se a si próprio, mas reconheceu que era tarde. Deu ao diabo a mulher, o Fonseca, a sua própria toleima e resolveu a ir ter com Soares, contar tudo, e rir com ele.

Fazia estas reflexões em casa, deitado num sofá, quando ouviu grande assobiar de apitos e vozes de gente na rua. Correu à janela.

O espetáculo era triste; um homem jazia no chão, com o sangue a cair do peito. O povo estava em grupo em volta dele, e alguns policiais também, enquanto outros apitavam e corriam na direção da Rua do Núncio, por onde se fora o assassino. Toda a gente estava às janelas.

De repente o ferido fez um movimento de contração, e uma golfada de sangue rompeu da boca. Araújo ouve um grito abafado. Volta-se para o lado de onde vinha; era na janela da casa ao pé. Uma moça caíra nos braços de uma senhora idosa.

Céus! era a misteriosa.

Araújo ficou atônito.

A moça foi levada para dentro, e pouco a pouco se escoou a onda de povo que enchia a rua. Debalde Araújo se demorou à janela cerca de uma hora; ninguém reapareceu.

Chamou ele um criado, e perguntou se a família que morava ao pé se mudara há pouco.

— Não, senhor, respondeu o criado; mora aí há um ano.

— Um ano! disse Araújo consigo. Será possível que eu nunca a visse? É verdade que nunca apareço à janela.

Interrogou o criado a respeito das vizinhas. Soube que era uma senhora viúva, e uma filha viúva como ela, que ali moravam. Havia além disso um menino, irmão da moça. Os escravos eram três; duas pretas e um preto. Raras vezes saíam; e ainda mais raras vezes chegavam à janela. Tais foram as poucas informações que Araújo obteve.

Mas ele estava disposto a ir até às do cabo para realizar a promessa feita ao Soares. Ruminou vários planos. Todos lhe pareceram impraticáveis, falhos ou descorteses. O melhor — ao menos o que ele aceitou — foi meter o criado na dança.

— José, disse ele daí a dois dias. És capaz de uma missão atrevida?

— Sou capaz.

— Tens habilidade para isso?

— Isso o quê?

— Entregarás uma carta a alguma das escravas das vizinhas?…

— Entrego a Joana…

— Naturalmente é a dama dos teus pensamentos.

— Não senhor, respondeu José pondo os olhos no chão com modéstia.

Araújo confiou no criado a delicada missão; este e Joana houveram-se com extrema habilidade. A carta foi ao seu termo. Suprimo uma série de acontecimentos mais ou menos parecidos com os acontecimentos amorosos. Houve sua luta e repugnância; mas o tempo vence tudo, e a misteriosa moça, que se chamava Cristina, dentro de três meses estava casada com Araújo.

Na véspera desse dia, estando ele com ela, a pensar no seu futuro e no paraíso matrimonial, fez a seguinte observação:

— E quando eu penso que corri seca e meca, à procura de uma moça, que estava ao pé de mim!

A leitora desejaria naturalmente uma descrição da bela Cristina, que apenas de relance apareceu neste conto; mas eu tenho a honra de observar que o conto está acabado, e por isso a descrição é de todo ponto inútil. Basta saber que era formosa, e que Araújo foi muito feliz com ela.

Um mês depois de casado abria Araújo o Jornal do Commercio, e soltava uma exclamação de satisfação.

— Que é? perguntou Cristina.

— Lembras-te daquele Fonseca de quem te falei?

— Sim.

— Está preso.