Dentro daquele organismo em seiva fumente de novilho espojando-se na amplidão dos campos relvosos, trinavam, cantavam pássaros, vibravam fanfarras marciais.

Temperamento de guerra, ostentoso como um carro de triunfo, outrora, nas hostes helênicas, era a volúpia que lhe ritmava as idéias, que lhe dava diapasão ao entendimento.

Virginal, como a alva constelação dos astros, a sua Arte abria-se numa florescência vigorosa, dimanando o aroma natural, puro, criador e intenso, de terras lavradas e germinais, revolvidas de fresco, a doçura verde das tenras e viçosas folhagens, entre as quais brilha ao sol a loura abundância sazonada dos frutos.

A sua natureza deveria ser estudada sem roupagens, sem atavios, livremente, a golpes crus e acres, a tons violentos e rubros, profundos e flagrantes, na plenitude de toda a extravagância e de toda a idiossincrasia que o singularizava.

A afloração da sua força psíquica fazia lembrar uma fantástica floresta vermelha por efeito de um incêndio colossal: — largas e longas manchas de sangue alastrando tudo, clarinando tudo de gritos, de brados, de púrpuras de indignação, de ódios artísticos, de despeitos, de tédios mortais, de spleens enevoados.

A cor, a luz, o perfume, para a sua esquisita e caprichosa sensibilidade, sangravam, vertiam sangue sinistro de dolorosa volúpia; e, todos os aspectos, todas as perspectivas, pareciam-lhe à retina requintada e misteriosa outras tantas manchas de sangue, que a sua estesia doente mais vivas, mais flagrantes via por toda a parte.

E nessa tendência espiritual orgânica para os efeitos sangrentos, preferia à clorose das magnólias e lírios brancos a rubente coloração das rosas e cravos bizarros.

Superexcitado pelas nevroses ardentes do Pensamento, desde as liturgias simbólicas de Verlaine até aos satanismos de Huysmans, exigindo as linhas em alto requinte da Arte, toda a sua estética se manifestava então por uma corrente impetuosa de luxúria, de caprismo, de lubricidade pagã de sátiro, de fauno mítico, estirado ao sol, como certos animais no período da incubação, gozando, sibaritamente, a morna carícia do eterno clarão fecundante.

Diante da retina coruscavam-lhe deslumbramentos de idéias, com claras, cantantes cores.

Feriam-lhe agudamente a retina, impressionando-a, hipnotizando aquela idiossincrasia fatal, o ensangüentamento dos ocasos, os vermelhos clarinantes dos clarões de fogo, os rubros candentes, inflamados, das forjas, os escarlates violentos das púrpuras, os álacres rubis de certas tropicais florações e folhagens, os rubores quentes de certos sumarentos e selvagens frutos, a sulferina coloração delicada de vinhos tépidos, todos os rubros majestosos, potentes, embriagantes, toda a clamante alucinação dos vermelhos crepitando em sensações de chama, todas as atroantes fanfarras e gamas infinitas e finíssimas das cores como que aperitivas, palatais, genealógicas do Sangue.

Os livros carnalíssimos, que porejam luxúria, acendiam-lhe, mais flamejantes, os instintos sensuais; e ficava então puro maometano, revestido em sedas e pedrarias prodigiosas de gozo, nesse lasso luxo oriental em que a Ásia se perpetua como o lânguido sol decadente das exóticas sensualidades.

Nos seus nervos, nas suas veias circulavam flamas geradoras dessa Originalidade trucidante que naturezas febris ansiosamente procuram, como buscariam o recôndito veio profundo da água nas camadas mais obscuras da terra.

Olfato delicado, claro, que tudo sentia, que tudo respirava, ainda por extremo requinte de volúpia, era extraordinária, maravilhosa a sensibilidade aguda da sua membrana pituitária, fariscando ativamente, em cios.

Mas, os cheiros mais prediletos, mais sugestivos para ele, que lhe penetravam e cocegavam mais a mucosa nasal, numa atuação de esfregamento, como que no atrito agradável provocado na pele para a cessação de irritante prurigem, eram os cheiros acres de matérias resinosas, as emanações de folhas silvestres machucadas, a exalação úbere dos estábulos, o aroma estonteador e verde das maresias, o odor do sedimento de certos líquidos, o fartum que diversos animais segregam, o hircismo quente dos bodes, o estimulante de fermentação da cevada nas cervejarias, o sumo travoroso e ativo dos limões verdoengos, quase que tocados de um sentido penetrante, claro, inteligente e todos os amargos sabores das frutas ácidas e cálidas que como que lhe feriam, abriam numa chaga, em apetites aguçados e picantes, o grosso lábio enervado pela volúpia letárgica.

E como ele se empurpurasse, se enlabaredasse no esplendor triunfal da Arte, esses odores todos o penetravam, o fascinavam, alertando-o, transfigurando-o para a Escrita, para a Forma.

Era como se saísse de andar em volta de vasta coivara a arder e viesse dela aquecido, com o sangue esporeado, as veias latejando em febre, numa sensação intensa de produtividade.

Mas, uma vez caído em frente ao papel branco, que tinha de receber o exuberante pólen do seu espírito, todos esses ímpetos, esses fervores esmoreciam, o calor dessa temperatura artística baixava logo e ei-lo então novamente vencido, numa espécie de coma, no adormecimento que lhe tolhia sempre o próprio esforço da vontade.

E, súbito, naquela espiritual ansiedade de natureza impotente, como que a dolorosa e enervante crise olfativa continuava, mais violenta, dava-se o mesmo fenomenal período de volúpia capra, nervosa, mental, no qual o sentimento pituitário dominava, impunha-se, avassalava as outras funções de modo verdadeiramente estranho.

E o seu olfato desejava, ansiava sentir o talho sangrento nos açougues, as carnes rasgadas nos anfiteatros anatômicos, as feridas abertas nos hospitais de sangue, dentre os aços frios e cortantes dos instrumentos, como indiferentes, desdenhosos aparelhos, rindo, em rijas cutiladas sonoras, cantando o hino dos metais fulgentes ante as torturas humanas da matéria dilacerada.

No entanto, outrora, esse lascivo, natureza dispersa, sem unidade de conjunto, produzira já algumas belas páginas cantantes, estilos com flamejamentos de espadas, vibrações candentes de bigorna, cintilantes como os polidos, espelhados broquéis antigos.

Fora isso na adolescência, quando a sua natureza não se achava absorvida pela pestilência do meio ou mesmo quase constituindo, como agora, as próprias células dele. Eram primícias, prodigalidades do seu cérebro ainda não sazonado completamente; a abundância espontânea, mas não produzida por seleção, de um temperamento fecundo, farto de idealização e de força, mas sem a intensidade essencial que nasce da condensação e da síntese. Aquelas páginas eram verdadeiros viços, opulências de rebentos, florescências inéditas e castas que lhe brotavam do ser com o mesmo ímpeto de germinação dos vegetais rasgando a terra.

Mas, desde que o seu temperamento chegara ao mais cabal desenvolvimento, que atingira à Elevação, subindo a extremos requintes, ele sentira essas páginas descoloridas, ocas, vazias, sem mergulharem no mar convulsivo, vulcânico da sua Imaginação, sem dizerem, sem falarem, sem reproduzirem todo o sol e toda a treva da sua recôndita Nevrose.

Armado de coruscante cota de malha de espírito, tecida de diamantes, ele agora quereria para a Estética um majestoso damasco de Inauditismo, a psicologia imprevista que os organismos virgens e novos provocam na sua evolução lenta e curiosa.

Impotente, no entanto, para revelar, sob uma forma gráfica, os segredos espirituais que o dominavam, incapaz de concentração, de isolamento para agrupar e dar corpo às visões que ondulavam em torno do seu centro ardente de ação mental, o pólo das emoções do Capro, talvez por um doentio e instintivo despeito dessa Impotência, era a sensualidade, e era gozar, através das puras manifestações da Carne, sem a dolorosa expressão escrita, a volúpia secreta de um anseio transcendental, de um Ideal rebuscado e uno, olfatando tudo, tocando mentalmente tudo, para ver se encontraria nas cousas o odor do Desconhecido, a essência singular, a emanação casta e original que tanto o inquietava e atraía.

A idéia da Morte, com os seus terrores ocultos, obscuros e surdos, imponderados, com os seus enregelamentos supremos, lançava-lhe sempre à espinha um frio de angústia, soprava-lhe no cérebro tredo tufão tenebroso, esmagando-o e deleitando-o ao mesmo tempo, num deleite luxurioso e fatal, que o envenenava como de ódio terrível, sanguinolento.

Vinha de um fundo misterioso, de recônditas raízes de sofrimento, de ânsias e desesperos concentrados, esse vendaval ululante de sensações imprevistas que o abalavam até ao íntimo do seu ser, perante a idéia vulcanizadora da Morte, da lívida, da rígida, da impenetrável Morte...

Era o estremecimento latente, lancinante, de um terror absurdo, que o esmagava, que o dilacerava, como se já andasse de rastros, agrilhoada às sombras e à gelidez tumulares, toda a sua convulsa existência de extasiado olímpico, de absorto egrégio nas luminosas volúpias da Arte.

E quando lhe soava nos nervos a hora alta da febre da grande alucinação para a perpetuidade do nome no espírito das Gerações que surgissem; quando se surpreendia absorto, na contemplatividade muda desse inquietante e vago Aspirar que fecunda as almas anelantes de Indefinível; nesses impressionativos momentos em que ele, transfigurado, empalidecia, os que mais e melhor sentiam todos os íntimos segredos, todos os voluptuosos encantos da sua mentalidade, lhe perguntavam pela obra que deixaria, lhe diziam:

— Então! nada tens feito que revele a tua estesia, que determine as tuas sensações, a tua sensibilidade extrema. Vives preguiçando, dormindo lassos, longos sonos de luxúria... Olha que a morte aí vêm, aí vêm já, irremovível e oblíqua, sôfrega, sequiosa da tua carne e te vai surpreender inútil, mudo, sem nada dizeres ao mundo, cérebro budicamente indiferente, boca fechada numa contração torturante de impotência doentia rodando na mesma poeira vertiginosa, no mesmo torvo e banal rodomoinho dos homens e das cousas, sem nunca revelares todo esse estranho Infinito que trazes na alma.

Sentes o mundo vão, estreito, de dolorosa dureza e no entanto não queres ou não sabes fugir dele pela única larga porta estrelada que se te oferece ao teu espírito, esse vasto campo ideal onde livremente colhes a cada passo tanta admirável flor de pensamento! Olha a morte, olha a morte!... Aí vêm ela, irremovível e oblíqua... Olha o tempo, olha as horas fatais que te caem na cabeça, negras e surdas, fulminando-te, com a inevitabilidade inquisitorial do lento suplício do pingo d'água.

Ele ficava, ante estas abaladoras palavras, em sobressaltos assustadores, aterrado, azoinado e vencido, quase cambaleando, como um homem que leva de repente em cheio uma forte pedrada em pleno peito.

Abria-se então na alma inquieta do Capro um rasgão de mar e estrelas, dava-se no seu temperamento fugitivo um tocsin de alarma, um bimbalhar de carrilhões ruidosos, um estrugir de músicas marciais em marcha, clarões que rompiam névoas de vacilação, de timidez psíquica, um flavo e transfigurado acordar de alvoradas, todo um sol de alvoroço e triunfo que o iluminava, impelindo-o ao trabalho tenazmente, insistentemente, mergulhando-o na chama das concepções, dos estilos virgens, das formas não sonhadas ainda — órbitas estreladas e azuis onde a sua astral natureza com tanta ansiedade girava.

Mas desde que essas transfigurações o impulsionavam ao trabalho, desde que ele procurava traduzir, por formas caprichosamente sensacionais e singulares, as impressões que o abalavam, que viviam nele vida curiosa e intensa, todo esse poderoso esforço tornava-se vão, o pulso, de repente, gelava-se-lhe, a mão não agia com eficácia, e os pensamentos, confusos, embaralhados, emaranhados, num tropel, fugiam, recuavam como paisagens encantadas, feéricas, como ondulantes zonas de luz que desaparecessem da retina deslumbrada de um opiado visionário.

Um vácuo tenebroso, um vazio sepulcral, horrível fazia-se logo no seu cérebro, como se uma onda pestífera, violenta e glacial, lhe varresse os pensamentos desoladoramente.

Ficava então sufocado, em ânsias, respirando mal: parece que lhe faltava ar, sol, céu. Erguia-se da mesa do trabalho, inquieto, lívido; sentava-se de novo; erguia-se outra vez; saía, corria, desorientado, desesperado, a vagar nalgum cais, onde o mar parecia estar de grandes braços abertos para recebê-lo, para dar-lhe generosamente toda a seiva dos seus abismos glaucos; ou então buscava com ansiedade a paz bucólica de algum campo próximo, respirando assim com avidez e consolo o hálito virgem, as sadias emanações fortalecestes da vegetação e das ondas salgadas, como se procurasse haurir nelas todo o poder secreto que não possuía, toda a força de concentração, de generalização e de síntese que no momento fatal da Concepção tão capciosa se lhe mostrava e tão impiedosamente lhe fugia.

Era como se ele fosse um condenado a quem estivessem para sempre interditas as portas livres e luminosas da salvação. Natureza que a intemperante sensualidade, já pela sua expressão alcoólica, já pela sua expressão carnal, já pela sua expressão de preguiça inerte e até mesmo, por fim, de gula, ia aos poucos devorando funestamente. Dir-se-ia que procurava nos inebriamentos, vertigens, delírios e perturbações da Carne como que o veículo mais pronto, mais fácil, embora inferior, para nele fazer mover e canalizar alucinadamente a Sensação que trazia.

As qualidades que lhe tinham de vir unas, homogêneas, condensadas para o espírito, dispersavam-se na sensualidade, transformavam-se em instintos puramente sensuais, como que para mais e melhor justificar, agravando, a sua impotência conceptiva.

Nas claras e fundas horas abstratas de julgamento próprio que cada um tem no seu Intimo, seja o mais puro ou o mais perverso dos homens, o mais superior ou inferior, ele reconhecia toda a sua Impotência, via-se flagrante no espelho cruel e nu do seu Nada.

Assim como há certos intelectuais que na superioridade dos grandes meios ficam radicalmente esmagados, enquanto outros ganham o mais extraordinário esplendor e vigor, como que absorvem o céu e a terra, os continentes, são infinitos que se desdobram no Infinito; há também, especialmente nas regiões da Arte, seres que trazendo consigo a alta responsabilidade do Espírito, pelo verbo falado, não a podem registrar, entretanto, pelo verbo escrito.

Como que se dá com eles o mesmo fenômeno curioso e aflitivo de um cego que sente tactilmente as cousas, mas que não as pode ver; de um mudo, que possui o órgão vocal, mas que não pode falar...

Nesses momentos acerbos de irrequietabilidade mórbida, doentia, quando lhe fugiam todos os raios de unidade amorável e harmoniosa do seu ser e que alguém lhe surpreendia o flagrante do sentimento, o íntimo do íntimo da alma, certas negruras venenosas, o Capro perdia-se na floresta de brumas, afundava-se nos atoleiros lúbricos do álcool, como numa capciosa desculpa de vício, de miséria e de tristeza, para que não lhe sentissem os gritos surdos e o ranger de dentes daquela Impotência.

Parece que se dava nele um transbordamento esquisito de natureza, uma anomalia da visão e da imaginação, de modo a não se poderem ligar entre si os fios sutis e harmônicos do entendimento e do sentimento, a não terem correspondência direta e rítmica as correntes psíquicas do seu cérebro e da su'alma. Parece que falta a esses seres mais um grão de visão para abrangerem o complexo todo psíquico ou que algumas das suas células não têm a intensidade una, a energia pronta, a espontaneidade essencial e igual para manifestar por completo as sensações que experimentam...

E o Capro perdia-se, mergulhava no centro devorador do seu nirvana de impotência; sucumbia sob as garras ferozes e os despedaçadores tentáculos do seu Irremediável!

Ah! era o eterno, o tremendo e incognoscível sofrer da dor das Idéias, implacavelmente, no tormento profundo das mais acerbas agonias.

Mas essa insaciabilidade, essa aguda inquietação indomável, tensibilizando-lhe cada vez mais os nervos, requintando-lhe os sentidos, galvazinando-lhe o rosto num espasmo lívido, ia no entanto cavando d'enxadadas brutais e inevitáveis a sua própria cova.

Toda a desarmonia geral, todo o desequilíbrio do seu esforço ingênito de mentalizado, toda a ação desvirtualizada dos seus pensamentos, que era já o desmoronamento final provocado pela hipertrofia, ou anulação de uma função do seu cérebro, todo o desmembramento intelectual do Capro, resultante do seu subjetivismo facilmente transbordante, sem centros de intensidade, de condensação, tudo isso apressava já os seus passos impacientes, ávidos nas batidas da Vida, para a sepultura, dando-lhe à fisionomia gasta e dolente um lúgubre macabrismo de esqueleto...

E, quando afinal o vi na Morte, pairando-lhe na face fria o êxtase ignoto da indefinida, incoercível visão do Sonho, não sei por que vaga sugestão daquela improdutiva concupiscência psíquica, daquele lascivo e psicológico sentir e pensar desordenado, os seus pés, hirtos, enregelados no féretro, pareciam ter também, sinistra e ironicamente, estranha evidência capra, como se toda aquela espiritualidade que transbordara em luxúria, como se todo aquele vão e dilacerado esforço houvesse, por agudos fenômenos de sensibilidade nervosa, por cristalização de angústias lancinantes, desesperadas, supremas, transformado fantástica e exoticamente o seu ser naquela expressão animal reveladora do seu espírito, por um espectral e derradeiro desdém da Natureza...