I

Débil entanto a luz sobre o horizonte
Os seus trêmulos raios apagava,
E desde o ocidental imenso monte
A noite pelas terras se espalhava.
Morfeu, deixando os antros de Aqueronte,
No seio dos mortais se derramava.
Mas da bárbara gente que fugia,
Só se entregava ao sono a que morria.

II

Fatigado Diogo ao lado estava
E a bela esposa numa grã-floresta;
Nem ao preciso sono lugar dava
Na atenção de a guardar da gente infesta.
Um de outro os sucessos escutava,
Nutrindo em novo fogo a chama honesta;
Que, depois de um triunfo do inimigo,
Faz-se doce a memória do perigo.


III

Ao resplendor da lua que saía,
Misturava-se o horror com a piedade,
Porque em lagos de sangue só se via
Sanguinolenta, horrível mortandade.
O vale igual ao monte parecia,
E, do estrago na vasta imensidade,
O outeiro estava, donde foi o assalto,
Com montes de cadáveres mais alto.

IV

Não pôde vê-lo a bela americana,
Sem que a tocasse um triste sentimento;
E, ou fosse condição da gente humana,
Ou do seu sexo um próprio movimento,
Chorou piedosa a sorte desumana
Dos que, apartados do terreno assento,
Jaziam, como ouvira de Diogo,
Nas labaredas de um eterno fogo.

V

"E como (compassiva disse) é crível
Que o Deus, como me pintas, bom e amável
Sabendo o que há de ser e o que é possível,
Nos crie para fim tão miserável?
Antevendo um sucesso tão terrível,
Não parece crueldade inexcusável
Dar-lhe o ser, dar-lhe a vida, dar-lhe a mente,
Para vê-los arder eternamente?


VI

Quantos criar pudera que o servissem,
Deixando de criar quem o agravasse,
Onde todos a vê-lo ao céu subissem,
E as obras que produz todas salvasse?
Nossos pais, se dos filhos tal previssem,
Quanto fora cruel quem os gerasse!
E creremos da excelsa grã-bondade
Que ceda a nossos pais na humanidade?"

VII

"Segredos são (diz Diogo) da inscrutável
Majestade de Deus: que saberemos
Do seu modo de obrar sempre inefável,
Se o que somos e obramos não sabemos?
Faltando-nos razão clara e provável
Nos conselhos de Deus, que ocultos vemos,
E bem que toda a dúvida se acabe,
Porque ele pode mais, do que o homem sabe.

VIII

"Mas, se há lugar à humana conjetura
Dos possíveis na longa imensidade,
Não se podia achar uma criatura,
Que goze de impecável liberdade.
Uma firme inocência é graça pura,
É mercê liberal da Divindade,
E quem entanto a perguntar se atreve,
Por que lha não quis dar quem lha não deve?


IX

Desde a origem da imensa eternidade,
Que tudo sem princípio ordena e rege,
Devemos presumir da Divindade
Que onde o ótimo encontra em tudo o elege.
E, sendo em nós tão grande a iniqüidade,
Não temos coisa que a qualquer se inveje,
Onde se os mais possíveis vendo fores,
Nós fomos os eleitos por melhores."

X

Embora seja assim (disse a donzela);
Mas que culpa têm estes, que o ignoravam?
Não cuida acaso Deus, ou pouco zela
As almas, que entre nós se condenavam?
E senão, por que causa aos mais revela
As doutrinas que aos nossos se ocultavam?
Distava mais do céu a nossa gente,
Por que medeia o mar d'Este a Poente?"

XI

Tornai a culpa a vós, e a vós somente
(O herói responde assim). Se com estudo
Procurais sobre a terra o bem presente,
Por que não procurais o autor de tudo?
Para o mais tendes lume, instinto e mente;
Somente contra Deus buscais o escudo
Em a vossa ignorância à brutal culpa!
Essa ignorância é crime e não desculpa."


XII

Porém já da fadiga desvelada
Cerrava Paraguassu seus olhos claros,
Tendo-a Diogo na fé mais confirmada,
Com responder prudente aos seus reparos,
Enquanto a bruta gente aprisionada,
Mostrando-se da vida nada avaros,
Dançam e bebem com tripúdio forte,
E esperam, com a boda, a cruel morte.

XIII

Gupeva triunfante na grã-taba
O infausto prisioneiro à morte guia,
E, antevendo que a vida se lhe acaba,
A mulher cada um lhe oferecia:
Trazem-lhe o peixe, as carnes, a mangaba,
Brindando-lhe o licor, que a taça enchia,
Até que quando menos se recorda,
Dois selvagens o prendem numa corda.

XIV

Soltas as mãos lhe ficam, que maneia,
Nem o tem mais que em meio da cintura
A soga de algodão, como cadeia,
Que de uma parte e de outra os assegura.
Qual leoa feroz na maura areia,
Quando o laço no ventre a tem segura,
Toda da fronte a cauda se retorce,
E ruge e vibra a garra, e o corpo torce.


XV

Muitos então da furibunda gente
Dizem-lhe injúrias mil, com mil insultos
Que ele se esforça a rebater valente,
Sem que receie os bárbaros tumultos;
Algum ali chegando ao paciente
(Que tem por coisa vil morrer inultos)
Dá-lhe um cesto de pedras recalcado,
Com que, atirando aos mais, morra vingado.

XVI

Embiara e Mexira, dois possantes
Mancebos caetés de um parto vindos,
Que Ainubá dera à luz tão semelhantes,
Como tenros na idade, e em gesto lindos,
Muitas donzelas, que os amaram dantes,
Os belos dias seus choravam findos.
Mitigando o desgosto de perdê-los
Com a intenção que tinham de comê-los.

XVII

Estes na corda têm os da Bahia,
Dispostos a morrer no torpe abuso
De celebrar com sangue o fausto dia
Das vítimas triunfais ao pátrio uso.
Embiara, que com arte a pedra envia,
Muitas no povo disparou confuso,
E, apesar dos escudos, que põe diante,
Alguns feriu da turba circunstante.


XVIII

Uma grã-pedra ao ar nas mãos levanta,
E, erguendo os braços sobre a fronte atira;
Lança por terra alguns, outros quebranta,
E esmaga com o peso o grão-Tapira.
Outras três arrojou com fúria tanta,
Que, se de atorno a gente não fugira,
Com os tiros, que o bravo lhe dispara,
Em vingança cruel no chão ficara.

XIX

Mexira noutro lado era detido
Com o duro cordão; porém, sem medo,
Ao bárbaro Piri, que o tem cingido,
Esmigalha a cabeça cum penedo.
Foge o povo com pedras rebatido;
Mas Mexira, na corda atado e quedo,
Com três pedaços de uma ingente roca
Uns derriba no chão e outros provoca.

XX

Sai então Tojucane em campo ardente,
E ao som dos seus marraques aplaudido,
Um cinto tem de plumas sobre a frente,
Manto ao ombro de pluma entretecido;
Tinto de negro todo, a cor somente
Traz natural no vulto enfurecido;
E, por meter no horror maior respeito,
Com o beiço inferior varria o peito.


XXI

A cara, peito, braços (vista horrenda!)
Traz com golpes cruéis acutilados,
Golpes com que o valor se recomenda,
Feitos da própria mão com talhos dados,
Onde, se a chaga apodreceu tremenda,
Em meio do asco e horror desfigurados,
Vendo a gente brutal que um não se dói,
Este então (que ignorância!) é o seu herói.

XXII

Desta arte Tojucane armado vinha,
Posto ao vê-lo em silêncio, em pasmo tudo;
Atira-lhe Embiara (que ainda o tinha)
Um penedo, que rompe o forte escudo:
O tacape ele então desembainha,
Que de plumas ornou com belo estudo,
E, encostando-se ousado à longa corda,
Aos dois fortes irmãos falando aborda.

XXIII

"Não sois vós (disse o bárbaro), traidores,
Os que a matar-nos com furor viestes,
E sem respeito aos míseros clamores
Os nossos tenros filhos já comestes?"
"Somos (disseram) nós; os teus furores
Sem o laço, em que agora nos prendestes,
Soubéramos domar. E assim cativo,
A ver-me solto, te comera vivo."


XXIV

"Vivo, nem morto a mim me não tocaras
Porque, se braço a braço te mediras,
Ou imóvel de espanto em pé ficaras,
Ou de um só golpe (diz) no chão caíras."
"Verias bem, se agora nos soltaras,
Como logo (responde) me fugiras,
Não queira de valente ser louvado,
Quem pretende triunfar de um desarmado."

XXV

"Esse vão pensamento melhor fora
Que o tiveras, como eu, no campo, bravo;
Mas tu (diz Tojucane) na mesma hora
Te viste combatido e foste escravo.
Como te atreves a gloriar-te agora
Com vil jactância, com soberbo gavo?
A quem de resistir falta a constância
Vão fica mais lugar para a jactância."

XXVI

Dizendo assim, na fronte a espada ingente
Deixa o fero cair com golpe horrendo,
Cai por terra Embiara ainda vivente;
Mexira morto já, porém tremendo.
Mordeu aquele o chão com fúria ardente,
E em cima o matador co pé batendo:
"Morre, soberbo, diz, e serás vasto
Para nosso troféu vingança e pasto."


XXVII

Qual se diz que a Tifeu subjuga um monte,
Tal a planta cruel Embiara oprime;
E como a cobra faz-se junto à fonte,
Toda em nós quebrantada se comprime,
Retorcendo em mil voltas cauda e fronte,
Que ergue, vibrando a língua, no ar sublime,
Tal o infeliz morrendo em voltas anda,
E o espírito exalado às sombras manda.

XXVIII

Chega às cruentas vítimas chorosa
Femínea tropa, que com dor lamenta;
E, urlando todas com a voz maviosa,
Tudo vai repetindo a plebe atenta.
Depois daquela lástima enganosa,
Qualquer junto aos cadáveres se assenta,
E vão talhando pés, cabeças, braços,
E as vítimas fazendo em mil pedaços.

XXIX

Chamam moquém as carnes, que se cobrem,
E a fogo lento sepultadas assam;
Tudo em cima com terra e rama encobrem,
Onde o fogo depois com lenha façam.
Entanto as voltam, cobrem e descobrem,
Até que do calor se lhe repassam;
Detestável empresa, que escondiam
Da indignação de Diogo, a quem temiam.


XXX

Foi avisado o herói do ato execrando
Horrível pasto de nação perversa.
E a maneira oportuna meditando
Da bárbara função deixar dispersa.
Mil fogos de artifício ia espalhando,
De horrível forma, e de invenção diversa.
Treme a vil turba, e sem que a mais se arroje,
Deixa o pasto cruel e ao mato foge.

XXXI

Confusa a infame gente do sucesso,
Do grão Caramuru temia a vista.
Foge Gupeva, de terror opresso,
Nem sabe, em que maneira ao mal resista;
Mas o novo pavor na gente impresso
Mitiga Paraguassu, que o dano avista,
Se, como teme, o povo de espantado,
O terreno deixasse abandonado.

XXXII

Jararaca entretanto conduzido
Dos bravos Caetés à taba nota,
Diligente curava o pé ferido,
E em reparar cuidava a grã-derrota.
E, havendo no conselho a liga unido,
As forças representa, os meios nota,
E nigromante crê por perda tanta
O grão-Caramuru, que o fogo encanta.


XXXIII

Já na grã-taba os bárbaros se ajuntam,
Onde contra Diogo arte se estude,
E por magos famosos, que perguntam,
Recorriam de encantos à virtude:
Os nigromantes vêem que os corpos untam,
E nos sussurros do seu canto rude
Esperam que também ao forte Diogo,
Matando privem do temido fogo.

XXXIV

Um deles, que por sábio se acredita,
Não há (disse) quem possa a ardente frágoa
Apagar no trovão, que o raio excita,
Lastimosa ocasião da nossa mágoa:
Que se antídoto ao fogo se medita
Mais natural não há que lançar-lhe água:
Dentro n'água se apaga o fogo ardente:
E este é o meio, que ocorre de presente.

XXXV

Contra as vossas canoas não se atreve
O filho do trovão, se desce ao porto;
Vos o vereis sem força em tempo breve
Sair qual já saiu das águas morto:
Ninguém há que não saiba como esteve,
Quando o encontramos naufrago no porto:
Nem usou do trovão, que espanta em terra,
Nem fez com fogo n'água a horrível guerra.


XXXVI

São n’água, terra, e mar mui diferentes
Os anhangás, que reinam divididos;
Uns, que só no ar e fogo são potentes,
Causam ventos, trovões, raios temidos;
O terremoto e pestes sobre as gentes
Movem outros na terra conhecidos:
Este porém, que ao estrangeiro acode,
N'água não poderá, se em fogo pode.

XXXVII

Parece à rude gente este discurso,
Segundo os seus princípios concludente;
E ouvido com aplauso no concurso,
Votam na execução concordemente.
Toma a guerra por tanto um novo curso,
E ao mar se envia a belicosa gente;
Nem capitão há mais, nem há pessoa,
Que não embarque em rápida canoa.

XXXVIII

Chamam canoa os nossos nesses mares
Batel de um vasto lenho construído
Que escavado no meio, por dez pares
De remos, ou de mais voa impelido;
Com tropas e petrechos militares,
Vai de impulso tão rápido movido,
Que ou fuja da batalha, ou a acometa,
Parece mais ligeiro que uma seta.


XXXIX

Concorrendo as nações do sertão junto,
Trezentas, ou mais, arma Jararaca;
E, tendo escolha, porque o povo é muito,
Deixa em terra das gentes a mais fraca.
E sendo da Bahia tão conjunto
O ilhéu de Taparica, este se ataca,
Na esperança que Diogo acudiria,
Vendo o sogro em perigo, que o regia.

XL

Repousava sem susto Taparica,
E, confiado em Diogo e na vitória,
Gozava de uma paz tranqüila e rica,
Depois que a guerra terminou com glória;
E quando a rouca inúbia arma publica,
Tão longe tinha as armas da memória,
Que, ignorando em sossego os seus perigos,
Nas mãos se foi meter dos inimigos.

XLI

Prendem o inerme chefe de improviso,
Acometendo a taba descuidada;
A chama e fumo dão infausto aviso
Ao bom Diogo da bárbara assaltada.
Nem impulso maior lhe era preciso,
Vendo a ilha dos bárbaros tomada:
Ocupa em pressa as armas e as canoas,
Sem mais que Paraguassu com cem pessoas.


XLII

Vinte bombas de pólvora tem cheias,
De que uma parte já das naus salvara;
Quatro férreos canhões, que entre as areias
Por nadadores bons do mar tirara;
Metralhas, palanquetas e cadeias,
Pistolas e fuzis, que preparara;
Canoas três de pólvora e resina,
Que lançar nas contrárias determina.

XLIII

Forma-se em meia lua a vasta armada,
Cuidando de encerrar Diogo em meio,
E com nuvem de frechas condensada
A áurea luz do sol a impedir veio.
Firme estava do herói a turba irada,
E, coalhando-se o mar de lenhos cheio,
Retumba o eco na Bahia toda
Pela gente brutal que urlava em roda.

XLIV

Até que a tiro os vê do bronze horrendo
E, sem mais esperar, dispara fogo,
Que tudo com metralha ia varrendo,
E a pique dez canoas meteu logo.
Saltam muitos de horror no mar, tremendo;
Alguns, deixando o remo, as mãos de Diogo
Com bombas ardem, que feroz lhe lança,
Outros a espada de vizinho alcança.


XLV

Confusas entre si vão flutuando
As canoas, que a gente não regia,
E um vai sob'outras embarrando
Na desordem que todas confundia.
As três incendiárias arrojando,
Um dilúvio de fogo n’água ardia,
Com tal fumaça nas ardentes frágoas,
Que, cobrindo-se o ar, fervem as águas.

XLVI

Qual, se na selva densa o fogo ateia,
Em colunas de fumo voa a chama,
E a labareda, que pelo ar ondeia,
Traspassando se vai de rama em rama,
Tal na baía de canoas cheia
Um dilúvio de fogo se derrama;
E o bárbaro, de horror, de espanto e mágoa,
Foge a morte do fogo e escolhe a d’água.

XLVII

Jararaca entretanto em terra estava,
Donde prendera o incauto Taparica,
E raivoso das praias observava
Toda a frota naval, que em cinzas fica.
Foge dispersa a tropa que levava,
E, logo que a vitória se publica,
Toda a ilha, que as armas arrebata,
O tímido Caeté subjuga, ou mata.


XLVIII

Nem já dos inimigos se descobre
Uma canoa só no lago ingente,
E o mar de mil cadáveres se cobre,
Sem que saiba aonde fuja a infeliz gente,
Que Gupeva entretanto a praia encobre
Embaraçando a fuga ao continente;
Grande parte desde a água o braço estende
E a liberdade com a vida rende.

XLIX

Não assim Jararaca, que na praia
Põe por escudo o infausto Taparica;
E ameaça matá-lo, quando saia
Em terra Diogo, que suspenso fica.
Vê o transe a filha e sobre as mãos desmaia
Do caro esposo, e pelo pai suplica;
E vê-se Diogo em lance embaraçado,
Sem saber como salve o desgraçado.

L

Atirar-lhe quisera; mas duvida,
Na intenção de matá-lo vacilante,
Vendo do sogro ameaçada a vida,
E quase sem alento a esposa amante:
Três vezes pôs a mira dirigida,
Três vezes se deteve a mão constante;
E em terra e mar a um tempo a ação retarda
Jararaca ao bastão, ele à espingarda.


LI

"Que mais espero (diz)? feri-lo é incerto;
Mas é claro na mão desse inimigo
Que em qualquer caso enfim o dano é certo,
E cresce na tardança o seu perigo."
Disse e toma por alvo descoberto
A fronte do contrário, e neste artigo
Dispara o tiro e a bala lhe atravessa
De uma parte à outra parte da cabeça.

LII

Cai Jararaca em terra ao mesmo instante,
Qual penhasco que do alto se derroca,
Quando o raio, que o arroja fulminante,
Desde clima o arrancou da excelsa roca.
Num rio a terra se banhou fumante
Do negro sangue, donde pondo a boca
Morde raivoso a areia em que caíra,
E o torpe alento com a vida expira.

LIII

Já neste tempo se encontrava amigo
Taparica e Diogo em terno abraço,
Vendo por terra o pérfido inimigo,
Que, temendo, ocupava um vasto espaço.
Paraguassu, que aflita do perigo,
Sem sentido ficou no horrível passo,
Torna a si do desmaio e vê piedoso
O pai, que a tem nos braços, com o esposo.


LIV

Alegre vem do oposto continente
Em canoas Gupeva e Taparica,
Congratular-se com o herói valente
Que, morto Jararaca, em calma fica.
Pasma de ver o estrago a insana gente,
Que os arcos abatendo a paz suplica,
E, respeitando a superior potência,
Compensavam a paz com a obediência.

LV

Chegaram do sertão dez mensageiros
Em nome das nações que em guerra andavam,
Confirmando com pactos verdadeiros
A inteira sujeição que ao luso davam.
Vêm entre eles os príncipes primeiros,
E, com os ritos que na pátria usavam,
Príncipe aclamam com festivo modo
O filho do trovão do sertão todo.

LVI

Nem duvidou Diogo, imaginando
Quanto domar importa a gente bruta,
Aceitar das nações o excelso mando,
E consigo prudente os fins reputa.
Ouve-se em nome seu publico bando,
Que a bárbara caterva humilde escuta,
Em que todo o homicídio se proíbe,
E com pena de morte a culpa inibe.


LVII

Julga, porém, ao ver inveterada
A bárbara paixão na gente cega,
Que a grave pena ao crime decretada
Convém dissimular, se ao caso chega.
A tudo a gente bárbara humilhada
Só na gula cruel a emenda nega,
Por bárbara vingança carniceira,
Que tanto pode a educação primeira.

LVIII

Não tardou logo a ocasião de vê-lo,
Porque, apenas deixara a companhia,
O próprio Taparica sem temê-lo
Ao convite cruel se prevenia.
Bambu, que fora ao ponto de prendê-lo,
Quem lhe lançara as mãos com ousadia,
Preso em canoa o régulo conserva,
Por pasto infando à bárbara caterva.

LIX

Estava o desditoso encadeado,
E exposto a mil insetos que o mordiam;
Nem se lhe via o corpo ensangüentado,
Que todos os maribondos lhe cobriam.
Corria o negro sangue derramado
Das cruéis picaduras que lhe abriam;
E ele, imóvel entanto em tosco assento,
Parecia insensível no tormento.


LX

Vendo Diogo o infeliz quanto padece
No modo de penar mais desumano,
Maior a tolerância lhe parece
Do que possa caber num peito humano.
E, como autor do crime reconhece
Do cruel sogro o coração tirano,
Oferece a Bambu, que a morte ameaça,
Socorro amigo na cruel desgraça.

LXI

"Perdes comigo o tempo (disse o fero);
Ao que vês, e ainda a mais vivo disposto.
A liberdade, que me dás, não quero,
E da dor, que tolero, faço gosto.
Assim vingar-me do inimigo espero."
Disse; e, sem se mudar do antigo posto,
As picadas cruéis tão firme atura,
Como se penha fora, ou rocha dura.

LXII

"Se o motivo, diz Diogo, por que temes,
É porque escravo padecer receias,
E tens por menos mal este, em que gemes,
Do que uma vida em míseras cadeias,
Depõe o susto, que sem causa tremes;
Penhor te posso dar, por onde creias,
Depondo a obstinação do torpe medo,
Que a vida e liberdade te concedo."


LXIII

Aqui da fronte o bárbaro desvia
Dos insetos coa mão a espessa banda;
E a Diogo, que assim se condoía,
Um sorriso em resposta alegre manda.
"De que te admiras tu? Que serviria
Dar ao vil corpo condição mais branda?
Corpo meu não é já; se anda comigo,
Ele é corpo em verdade do inimigo.

LXIV

O espírito, a razão, o pensamento
Sou eu e nada mais; a carne imunda
Forma-se cada dia do alimento,
E faz a nutrição, que se confunda.
Vês tu a carne aqui, que mal sustento?
Não a reputes minha: só se funda
Na que tenho comido aos adversários;
Donde minha não é, mas dos contrários.

LXV

Da carne me pastei continuamente
De seus filhos e pai; dela é composto
Este corpo, que animo de presente.
Por isso dos tormentos faço gosto.
E, quando maior pena a carne sente,
Então mais me consolo, do suposto
Do me ver no inimigo bem vingado,
Neste corpo, que é seu, tão mal tratado."

LXVI

Impossível parece ao sábio herói
O que vê e o que escuta, e que assim possa,
Quando a carne mortal tanto se dói,
Vencer-se a dor da fantasia nossa.
Magoado interiormente se condói
De ver que no infeliz nada faz mossa,
Mostrando na brutal rara constância
Com tal valor tão bárbara ignorância.

LXVIII

Tinham disposto entanto no terreiro
As nações do sertão pompa festiva,
Criando Diogo principal primeiro
Com aplauso geral da comitiva.
Vê-se ornado de plumas o guerreiro;
E como em triunfo a multidão cativa,
E sobre os mais num trono levantado
Cingem de pluma o vencedor c'roado.

LXVIII

A roda, como em círculo, prostrados,
Sessenta principais das nações feras
Em nome de seus povos humilhados,
Submissões rendem com temor sinceras:
Tujucupapo, estando os mais calados,
"Grão-filho do trovão (disse) que imperas
Em terra e mar com glória combatendo,
Tudo domaste com o raio horrendo.


LXIX

Não te cedera, não, dos nossos peitos
A varonil constância em guerra humana;
Nem da morte tememos os efeitos,
Se a contenda não fora sobre-humana;
Rendemos-te fiéis nossos respeitos,
Depois que o teu valor nos desengana
Que em teus combates todo o céu te assiste;
E a quem socorre o céu quem lhe resiste?

LXX

As nações do sertão, já convencidas,
Põem a teus pés os arcos e as espadas.
Suspende o raio teu; protege as vidas
Desde hoje ao teu império sujeitadas.
E, se tens, como creio, submetidas
As procelas, as chuvas e as trovoadas,
Não espantes com fogo a humilde gente,
Mas faze-nos gozar da paz clemente.

LXXI

A teu comando estão sem replicar-te
Os povos deste vasto continente;
E farás com teu nome em qualquer parte
Que te obedeça a valorosa gente.
Faze com o favor que haja do amar-te,
Como a tens com terror feito obediente;
Que, se troveja o céu na esfera escura,
A luz manda também formosa e pura."


LXXII

"Não foi acaso (disse o herói prudente,
Respondendo ao discurso), foi destino
Querer o grão-Tupá que a vossa gente
A mão conheça do poder divino.
Do céu, que sobre vós brilha luzente,
Se receberdes o sagrado ensino,
Livres com glória do tirano averno
Sobre ele reinareis num sólio eterno.

LXXIII

Porém, por serdes na ignorância rude,
Incapazes de ouvir o mais entanto,
Buscai com razão maior virtude,
Implorando o favor do trono santo.
E, quando a vossa fé pedi-lo estude,
Vereis da antiga serpe no quebranto
Florescer nesta pátria de improviso
Uma imagem do ameno paraíso."

LXXIV

Disse o herói generoso; a turba imensa,
Em sinal de prazer com grata dança,
Vão em fileiras com a mão extensa,
Fazendo com os pés vária mudança:
Uma perna bailando tem suspensa,
E turma sobre turma em modo avança,
Que idéia dão dos bélicos ataques,
Retumbando entretanto os seus marraques.


LXXV

Os nigromantes, que o Brasil respeita,
Um marraque descobrem venerado;
Insígnia da nação, que ao povo aceita,
Consideram por símbolo sagrado.
O sacerdócio, como turma eleita
No ministério ao culto dedicado,
Pôs o bárbaro termo à função toda,
Bafejando nos príncipes à roda.