Introdução
editarCoimbra, 20 de Fevereiro de 1849
Eu, António José Santana de Almada, servo de sua Majestade Real, a Rainha Maria II de Portugal e dos Algarves, apresento, por via de documento escrito, uma pequena história de Sua Majestade, o Fidelíssimo, para a sua alteza real a passar aos seus letrados filhos e principes e princesas reais, D. Pedro, D. Luíz, D. João, D. Maria Ana e D. Antónia. Foi com o maior dos prazeres que, no ano de 1847, redigi estas notas por ordem de seu marido e rei-consorte D. Pedro e lhas apresento agora, por via de carta, no vigésimo dia de Fevereiro de 1849.
Com os maiores respeitos do seu fiel súbdito e estudioso de Coimbra
António José Santana d'Almada
Considerações Gerais acerca do Fidelíssimo
editarNo primeiro dia de Janeiro do ano de 1707, subiu ao trono de Portugal o grande D. João V. Inaugurou-se um reinado que estendeu-se exactamente até ao meio do século, portanto um dos mais longos da história portuguesa. Seria uma época de aparente esplendor, marcada pelo signo do ouro.
O Fidelíssmo nasceu em Lisboa, filho de D. Pedro II e da sua segunda mulher, a rainha Maria Sofia de Neuburgo.
Passou a infância rodeado por confessores e mestres eclesiásticos, um dos quais, o cardeal da Cunha, viria a ser Inquisidor-mor e um dos seus mais próximos conselheiros. Profundamente devoto, o rei tinha, além da obcecação religiosa, outra grande preocupação: mostrar ao mundo, através da sua majestade e opulência, a grandeza do reino. Se bem que este desígnio fosse partilhado por todos os monarcas absolutistas da Europa, poucos dispuseram, como D. João V, de tantos meios para levá-lo a cabo. As riquezas do Brasil tinham-no tornado um dos soberanos mais ricos do seu tempo.
Desde muito jovem que o monarca português admirava e tomara como modelo Luís XIV, o rei-sol. Tal como este, o Fidelíssimo cumpria meticulosamente as suas funções, dedicando por dia muitas horas de trabalho aos negócios do reino. Durante muitos anos, apenas teve um secretário de Estado – Diogo de Mendonça Corte Real –, fiando-se sobretudo nas opiniões de alguns poucos conselheiros da sua amizade e confiança, como o cardeal da Cunha ou o cardeal da Mota. De qualquer modo, era sempre o monarca quem tomava as decisões fundamentais.
Também como Luís XIV, o Fidelíssmo colocava acima de tudo o prestígio da sua imagem. Não era, porém, no círculo fechado da corte, que ele se manifestava. De facto, na corte portuguesa, para além de uma rigorosa etiqueta, nada mais contribuía para evidenciar a grandeza do monarca.
O Fidelíssmo preferia os cerimoniais públicos para ostentar a sua magnificência. Festas grandiosas, com fogos de artifício e desfiles de grande aparato, tinham lugar por ocasião dos casamentos e dos nascimentos de membros da família real. Não menos imponentes eram as solenidades religiosas: a inauguração de igrejas; a procissão do Corpo de Deus, em que o próprio Fidelíssimo e os infantes desfilavam a pé; as cerimónias da Semana Santa; e até os autos-de-fé (realizaram-se 28, em Lisboa, durante o reinado), aos quais o rei bem como a família real raramente faltavam.
Nada, porém, era mais importante do que glorificar o poder do Fidelíssmo e de Portugal no estrangeiro. Deste modo, o monarca ordenou aos seus embaixadores nas principais cortes europeias que celebrassem com grandiosidade certos acontecimentos relevantes. Dessas cerimónias nenhuma causou maior espanto, pela sua sumptuosidade, do que a entrada solene em Roma da embaixada enviada ao Papa em 1716. Todas estas manifestações de grandeza serviram de instrumento para impor a defesa dos interesses portugueses no contexto internacional. E de facto a intensa actividade diplomática desenvolvida na primeira metade do século XVIII – com as nações europeias, com a Santa Sé, com a própria China – trouxe a Portugal ganhos significativos, como o reconhecimento do domínio português sobre a Amazónia ou o aumento de prestígio resultante da elevação de Lisboa a sede patriarcal e da concessão do título de “Fidelíssimo” aos reis de Portugal.
Finalmente, a preocupação de enaltecimento tanto do poder régio como da fé religiosa levaram D. João V a consagrar grande parte da riqueza proveniente do Brasil à construção de obras monumentais. Com excepção do Aqueduto das Águas Livres de Lisboa, praticamente todas elas tinham uma finalidade religiosa. Em primeiro lugar, a ampliação da igreja patriarcal, situada junto ao Paço da Ribeira, na qual D. João V se empenhou fervorosamente até ao fim da vida, dotando o novo edifício com as mais ricas e belas peças ornamentais – um tesouro imenso que o terramoto de 1755 sepultaria para sempre. Depois, a construção, dirigida por Ludovice, do Palácio de Mafra, imponente complexo arquitectónico que o Fidelíssimo destinou a servir de cenário às grandes cerimónias régias; o magnífico conjunto barroco da Igreja e Torre dos Clérigos, no Porto, da autoria de Nasoni; e ainda a Capela de S. João Baptista, na igreja de S.Roque em Lisboa, uma preciosa obra-prima, projectada e construída em Itália pelos melhores artistas deste país. A estas haveria que acrescentar outras obras de menor vulto mas igualmente valiosas do ponto de vista artístico, como a biblioteca da Universidade de Coimbra. E sobretudo uma enorme quantidade de esculturas, de pinturas (retratos, cenas religiosas), de peças ornamentais muito diversas (talha, azulejo, mobiliário, ourivesaria), com que se rechearam palácios e igrejas.
Foi este o grande legado da política do Fidelíssimo. Porque, apesar de ser em grande parte realizado com o contributo de artistas estrangeiros, estimulou o aparecimento de muitos artistas portugueses notáveis – escultores, entalhadores, ourives, etc. O fidelíssimo criou, aliás, em Roma a Academia de Portugal, com a finalidade de formar novos talentos artísticos. De resto, manifestou também interesse pela modernização de outros aspectos da vida cultural portuguesa: instituiu a Academia Real de História, contribuiu para a renovação do ensino protegendo a ordem religiosa dos Oratorianos, dotou as bibliotecas com milhares de livros adquiridos no estrangeiro.
Toda esta política implicou, no entanto, despesas imensas .No período de maior afluxo de ouro e de diamantes, o fidelíssimo e os seus conselheiros não viam motivos para se preocuparem com gastos tão excessivos. Apenas se limitaram a regulamentar a exploração mineira e a cobrança de impostos sobre o ouro e as pedras preciosas que, com os rendimentos do açúcar e do tabaco, bastavam para equilibrar a balança comercial. Mas porque só timidamente apoiaram o fomento das indústrias, deixaram o País sem recursos, caso diminuíssem as remessas brasileiras. Em 1750, quando morreu o fidelíssimo, os políticos mais esclarecidos sabiam que era preciso mudar de orientação política.
Fontes do registo apresentado
editar- Carta de António d'Almada: Biblioteca Municipal de Castro Marim
- Considerações Gerais acerca de D. João V: Biblioteca do Convento de Mafra