Carta de guia de casados/Casamentos dos filhos

LV


Casamentos dos filhos


Uma das cousas, em que os casados mais necessitam de advertência é nos casamentos dos filhos. V. m. ainda está longe ; porém, como nisto falamos por uma só vez, não será justo que, havendo-me lembrado de tanta impertinência, me esqueça de cousa tam importante.

Anda uma prática entre os homens, que afirma que o tempo do casamento dos filhos é quando houver melhor ocasião. Esta regra, a meu juízo, é bem falível ; porque, dado que haja bôa ocasião para casar, e má disposição para casar, em tal caso o acêrto seria duvidoso, e as mais vezes não seria. Deve-se entender isso da ocasião depois da disposição, e quando a vontade dos filhos estivesse conforme para receber êsse estado. Porque ainda que das conveniências dêle se podia esperar que o proveito trouxesse o gôsto ; todavia a vontade , que é nesta demanda o autor ou réu, raras vezes se governa por essas regras ; e de casamentos sem vontade não há que esperar contentamento.

Seja livre a eleição do estado dos filhos ; mas de tal sorte livre, que seus pais os estejam sempre inclinando a aquele que lhes convém. Sejam então seus conselheiros, não seus senhores.

Mas filhas é grandíssimo perigo ; porque havendo trazido a vaidade humana umas leis (certo tiranas) contra a honra, portes, e virtude, e só em favor do interêsse ; sucede de ordinário que nas casas ilustres, e grandes, onde há muitas filhas, apenas pode haver dote com que casar uma como convém. Ficam logo as outras condenadas a perderem por fôrça a liberdade, e haverem de tomar estado que não desejam, e violentíssimamente sofrem.

O remédio dêste dano é quási sem remédio ; porque seria necessário emendar primeiro tôda a república, e os maus costumes dela. Se nos houvéssemos de governar por exemplos passados, vimos que muitos grandes homens, achando-se ricos de filhas, se fizeram maiores nas descendências, e a elas não violentaram. Recolheram na religião as que a pediam : casaram que o desejavam. Nêste caso, parece que o pai de muitas filhas se pode contentar não abaixando, sem que procure subir ; que mais claramente é dizer-lhe, poderia casar suas filhas com pessoas que lhas pedissem para se honrar com tais mulheres ; e não querendo achar para genros homens com que se honrasse. Basta que se não desonrasse com êles. Isto não é sempre nem para todos ; nem lhes nego a todos que procurem o melhor ; mas amoesto que se acomodem com o possível.

Guardaram esta matéria de estado muito notáveis pessoas dêste reino, que pudera nomear, se não fôra aqui escandalosa a comparação : fazendo memória de algumas desigualdades, que depois igualou o tempo, e a fortuna.

A valia dos príncipes, a grande riqueza, o valor notável da pessoa nas armas, ou nas letras, quando seja acompanhado de limpeza de sangue, realçam as qualidades dos homens de sorte que os fazem merecedores de se poderem aparentar com os maiores ; e a êstes dão confiança para se deixarem aparentar com êles.

Dizia um grande senhor em duas palavras tudo o que aqui há que dizer : Que com seus filhos haviam de ir rogar seus pais, para serem bem casados ; e para suas filhas haviam de ser rogados, para serem bem casadas. E outro, não menos entendido, costumava dizer : Que as bôas partes eram chapins da qualidade, que faziam crescer as pessoas de sorte que muitas vezes igualavam os pequenos com os grandes.

Falta-me aqui por advertir alguma cousa a umas certas mães, e não sei se a alguns pais, que dão seus geitos às filhas para que se casem ; particularmente a aquelas de bom frontispício, largando-lhes para êsse efeito um pouco a rédea do recato.

Digo de mim, que sou austeríssimo nesta matéria. Se a houvesse de julgar conforme meu natural, não acabára nunca de condená-la. Vemos contudo pelo contrário tantos exemplos, que parece tem já tirado o horror que nela acharam outros. Fóra de Espanha é tam ordinária esta arte (em Flandres especialmente) que os galanteios são permitidos, e devidos, e chega a tanto, que os pais, e mães vem a ser os mestres das filhas, a quem aconselham os termos porque se devem haver com seus amantes até os obrigar a que lhes sejam maridos.

De má vontade direi (mas enfim o digo) que se pode dissimular a uma filha, quando se saíba é bem vista de tal pessoa, que lhe estará bem para marido. Mas devem ser tais os modos porque esta dissimulação possa ser lícita, que tenho o achá-los por impossível. Aconselhará neste caso o ânimo de cada um.

Vem agora aqui o casar a furto, que chamamos, e contra a vontade dos pais. Isto é em duas maneiras : em acção, ou em paixão, em acção casando o filho, em paixão sendo a filha casada.

Ao homem que seu filho se casasse bem, ainda que contra vontade de seus pais da mulher com que casasse, aconselhára que o sofresse, que de secreto o ajudasse, e se não desse por contente, nem descontente da acção daquele filho. Receitaria neste caso uma ausência, que é cousa utilíssima para negar ao juízo público a tristeza, ou alegria, quando delas não convém testemunho. E se fôsse antes do sucesso, seria maior prudência.

Ao homem que sua filha lhe fôsse levada para casar com o filho alheio, se assim fôsse que nisso não perdesse, aconselharia que se fôsse após dela, e se vencesse no pezar que lhe daria essa desobediência ; que nos mais é teima, e raiva, e nos menos verdadeira dôr.

Destas abominações entre os pais dos que assim se casam, nascem de ordinário inimizades, brigas, contendas ; e mais de ordinário públicos ditos, remoques, e desonras ; desenterram-se avós, publica-se o que se não sabia, vão os escândalos de monte a monte ; então no cabo de todos seus defeitos, verdadeiros, ou mentirosos, virem à praça, ei-los amigos.

O casar bem dos filhos pode absolvê-los da culpa de ser o desgôsto dos pais ; que obrigados eram a ter gôsto do aumento dos filhos. Finalmente o modo sempre era bem que fôra bom ; mas lá diz o rifão castelhano : Hagase el milagro, hagalo el diablo. O casar mal, e a desgôsto dos pais, é o último desconcêrto, e o que mais vezes se vê. Tem só' o remédio na preservação ; porque para o êrro não há mèzinhas. Advirtam-se assim os pais de darem com tempo estado aos filhos ; e pelo menos, quando não possa ser com a brevidade que se deseja, mostrem-lhes que disso se trata. Com esta esperança os entretenham.

Acontece haver homens, que por se gozarem de sua casa inteira, ouvem mal, e respondem pior aos casamentos dos filhos ; e não poucas mulheres há que por não verem a nora enfeitada junto a si, ou a filha descoberta, e próximo o perigo de serem avós antes de tempo, enxotam de casa as bôas ocasiões das bôdas dos filhos, que dão em ser tam melindrosas, e desconfiadas, que poucas vezes tornam onde una vez as desprezaram. Vale-se de tam indignos defeitos o marido sisudo, e a mulher honrada. Queiram para os filhos quando sejam pais, aquilo que, quando eram filhos, quiseram para si.