Carta de guia de casados/Freqüência do Paço

XVIII


Freqüência do Paço


Trouxe-nos Deus agora (com todo o mais bem que veio a êste reino) um novo Paço e Côrte ; e porque da do tempo passado nos não lembramos os que vivemos agora, mal poderemos governar estas acções por aquelas antigas. A côrte portuguesa era bem freqüentada , bem galante, e bem luzida, mas de grande recolhimento.

As idas ao Paço são devidas, justas, e bôas ; as vezes devem de ser contadas. Nascimentos de infantes, bodas, festas de entre ano, achaques de príncipes, sua saúde, novas notáveis, e pouco mais que isto. O ir só, não é elegante ; seja a companhia sempre bôa, mas não de pessoa maior (salvo a primeira vez) cuja autoridade some o agasalho, que cada um deseja de achar na graça dos reis, em suas casas, e em as de qualquer hóspede.

Acontece que muitas mulheres muito para isso, começam a cobrar (vâmente) fumos de bem vistas das rainhas, e princesas ; a que, sem algum fruto, se segue grande inquietação. E sucede mais, que para dourarem sua ligeireza, se hão com os maridos como dizem que fazem os negros dos mercadores, que em indo por onde querem, tapam a bôca aos amos com dizer-lhes que foram ouvir missa. Vem muitas vezes a ser o lícito capa e manto do ilícito. Com achaque de que vão ao Paço, se gasta o tempo em ociosidades, e a casa se desgoverna.

A mulher principal basta-lhe que a sua rainha a conheça. Em melhor conta a terá quando vir o siso com que procede, as poucas vezes que a vir. O correio extraordinário a todos alvoroça, quando chega ; o correio ordinário vai e vem, sem ninguém fazer caso dêle. Às pessoas de fóra do serviço dos príncipes, é custosa, e arriscada a pretensão de seu favor. Punha um grande cortesão o servir às damas, e aos reis, com o uso do limão, e da laranja ; que o limão quere que o apertem muito, e então dá melhor sumo ; a laranja se quere espremida muito a de leve, porque logo amarga em se apertando. As damas querem ser assistidas ; os reis vistos à bôamente. Por isso já disse alguém, que os príncipes, e o fogo, se queriam tratados de longe, porque perto queimam, e longe alumiam.