VII
Cuidam, com falso discurso, algumas mulheres, que como elas guardem a lei devida á honra de seus maridos, em tudo o mais lhes devem êles de sofrer quanto elas quiserem que lhes sofram.
É êste um mero engano ; por duas razões : a primeira, porque nada se lhes deve ás honradas de guardarem a obrigação, em que Deus, a natureza, o mundo, o mêdo as tem posto.
Lembra-me que, estando em Madrid, tinha uma vizinha muito brava, que pelejando um dia, como sempre fazia, não cessava de dizer ao marido, e com verdade : Hermano, soy muy honrada ; e êle respondia-lhe : Pues anda a Dios que te lo pague, que a mi cuenta no está el pagarlo, quando lo seas, sino el castigarlo quando no lo seas.
A segunda, porque não só a honra de seus maridos se perde por sua descontinência, mas não menos pelas ocasiões a que põem os homens por muitos outros excessos que cometem. Foi assim graciosa, mais que segura, a opinião de certa pessoa, que ninguém tanto sofria como quem tinha bôa mulher, bom criado, e bôa cavalgadura. Porque à conta de bôas peças cada uma fazia sua vontade, e nunca a de seu dono. Não fôsse ora por isso o dizer a chocarrisse castelhana : Buena mula, buena cabra, buena hembra, son tres malas bestias.
As mulheres de rija condição, a quem comummente chamam bravas, são as que menos cura tem ; porque até da temperança do marido, que era a sua melhor mèzinha, tomam causa de se demasiarem ; sendo já antigo, que o soberbo se faz mais insolente à vista da humildade ; o bravo se enfurece diante da mansidão. A violência e o castigo não tem logar na gente de grande qualidade. Pelo que já disse um muito discreto, que entre as cousas, que os vilãos traziam lá usurpado aos fidalgos, era uma, o poderam castigar suas mulheres cada vez que lho mereciam.
Pouco mais remédio sóem ter estas tais condições, que uma grande prudência com que se atalhem. Aconselharia a aquele a quem tal sucedesse, se apartasse o possível de viver nas côrtes, e grandes logares. Quem grita no despovoado, é menos ouvido. Atalham-se assim inconvenientes ; não se ficará sendo a fábula do povo, onde de ordinário servem de iguaria aos murmuradores as acçoes de tais casados. Procede daqui não leve injúria ; pelo menos um escrúpulo de afronta, que anda sempre zunindo nos ouvidos do pobre marido, como os grilos da própria mulher brava.
A feia é pena ordinária, porém que muitas vezes ao dia se pode aliviar, tantas quantas seu marido sair de sua presença, ou ela da do marido. Considere que mais vale viver seguro no coração, que contente nos olhos e desta segurança viva contente ; que pouco mais importa haver perdido por junto a formosura, que vê-la ir perdendo cada dia, com lástima de quem a ama. Isto sucede sempre nas mulheres, já pela idade já pelos achaques, a que tôda a formosura vive sujeita. Donde com muita razão se queixava um discreto, não de que a natureza acabasse as formosas, mas de que as envelhecesse.
Mulher néscia, cousa é pesada, mas não insofrível ; procure o marido emprestar de seu juízo ás acções de sua mulher aquela discrição que vir que lhe falta. Assim o fará o entendido, e se êle também o não fôr, pouca pena lhe dará que ela o não seja.
A doença, que a muitos aflige, é também um não pequeno trabalho : vê-se penar a pessoa a quem se quere bem ; e porventura soem ser estas as que menos o merecem ; porque males e bens muito há que costumam andar desordenados. Deve a mulher, quando enfêrma, ser tratada de seu marido com todo o regalo possivel, sofrida com tôda a paciência. Pode-se fazer esta conta : que estando disposto haja de padecer o homem em ametade de sua alma, favor foi grande de Deus padecesse antes naquela parte que menos falta faria à sua família. Considere-se (para que se bem sofra) que a obrigação do fiel companheiro, é guardar companhia, tanto pelo mau, como pelo bom caminho. Se as sortes se mudassem, da mesma maneira quisera o marido ser tratado, e sofrido da mulher.
Há não poucas mulheres proluxíssimas, e de condição impertinente, cuja demasia de ordinário descarrega sôbre os criados, a quem são insuportáveis : donde à casa resulta ruim fama, e achar o senhor dela com dificuldade quera o sirva. Convém que a estas tais se lhes aperte o freio, se lhes dê pouca mão no govêrno, e como as pessoas feridas de mal contagioso, as sirvam, e ministrem ao longe, ouvindo-se pouco, e dando-lhes a ouvir menos. Mostrem-se-lhes por experiência os frutos de sua condição, faltando-lhes talvez com o serviço necessário ; porque se com êste garrote não tornam em si, são por outro modo de dificultoso remédio ; e vem a pagar o marido, sem culpa, os desabrimentos da mulher agressora, e merecedora da ruim vontade dos servos, que, como pouco prudentes, não distinguem em acções tam próprias como as de mulher, e marido, qual dêles é digno de amor, e qual de desamor.
Acontece serem escassas : e dos defeitos mais leves, que nelas se acham, é êste um dêles. Não julgo que seja de algum perigo (posto que pode ser de descontentamento, e azo de pouca paz) porque se o marido é liberal, êle dará logo remédio à condição da mulher ; se tiver o mesmo costume, viverão com miséria, mas com contentamento.
Não cuido certo que os Egípcios com tôda a sua agudeza, inventaram mais excelente geroglífico do que o descobre um nosso provérbio português : O marido barca, a mulher arca. Ouvi-o dias há a uma vélha, e o escutei como da bôca de un sábio : Traga o marido, e guarde a mulher.
Mulher ciosa, é bem ocasionada mulher para que se viva sem contentamento. Dizia uma de bom juízo : A mulher ciosa tende a ociosa. Queria dizer, não lhe deis causa, que ela a não tomará. Esta não vinha em distinguir a queixa do ciúme ; porque aquela que com razão se sente, não chamo eu ciosa. A ciosa é aquela que sem causa se queixa ; e estas são as trabalhosas. Porque emendar cada um as suas fraquezas, sôbre que é dificultoso, não é impossível ; mas emendar as alheias não é dificultoso, porque é impossível.
Contra as ciosas sem razão, o melhor remédio é que elas a não tenham ; porque assim se segura a consciência, e a honra. Contra as ciosas com razão, curando-se o marido da leviandade, fica a mulher curada do ciúme. Para desconfianças leves, que um discreto chamava sarna do amor, que faz doer, e gostar juntamente, digo eu, que como se satisfizeram as damas, se satisfarão as espôsas. Aquele amor desordenado, mais furioso é, e assim mais veementes seus ciúmes (como é do melhor vinho o melhor vinagre). Quem soube (que todos souberam) desmentir os ciúmes de sua dama, quando a teve, por êsse mesmo modo desminta os de sua mulher, quando a tenha.
Eis-aqui vem as gastadoras, fogo perenal das casas, e das famílias. Sempre foi causa de muitos males esta tal condição ; porque lá tem suas côres de cousa bôa ; e sobretudo é mui aceita. Digo, senhor N., com verdade, que me parece deve uma mulher honrada tratar o dinheiro com aquele mesmo temor que ao ferro e fogo, outras cousas de que convêm sejam medrosas. Parece o dinheiro em mãos da mulher arma imprópria, Pergunto : Se para despedir, e lançar de sua casa um criado, a mulher casada por si não tem bastante autoridade, porque a quererá ter para despedir, e lançar fóra de casa sua fazenda, em que consiste o bem, e repouso de amos, e criados !
Para a que fôr ferida dêste mal, é necessário armar de um grande recato, e vigia ; e assim como quem navega se teme muito mais de abrir uma ferida no casco do navio, por onde sem dúvida se irá a pique, do que se se lhe abriram outras muitas pelo bordo, que vai fóra da água ; assim não é tam perigosa a uma casa outra qualquer desordem, nem lhe ameaça ruína, como o excesso da mulher gastadora, e desregrada ; porque como êsse defeito jaz dentro na água (dentro digo do próprio cabedal) por ali logo se vai ao fundo a família inteira.
Umas há destas apetitosas, e que por tu bonifrate venderão um padrão de juro da câmara. É defeito que compreende não só as grandes senhoras (antes nelas menos perigoso, e mais desculpado) mas até à gente de pequena condição. Sucedeu, estando em Madrid, vir a minha casa com grande ânsia a mulher de um, obreiro a pedir, que sobre dos savanas le prestasen doze reales ; e perguntando-se-lhe, qual era sua necessidade : Ai señores, disse, que tengo concertadas a comprar media dezena de hijos de azavache lindissimas, y si agora no las tomo, no sé quando podré despues heverlas. Sofre-se melhor um dêstes desmanchos, quando não é costume. Na môça é tolerável, na mulher condenável. Saiba tôda a mulher, que o mundo é maior que seu apetite, porque não queira fazer-se necessitar de quanto vir, ou ouvir. Deus nos guarde de umas, que fazem certo aquele rifão bem vulgar, mas muito próprio: A minha filha Tareja, quanto vê tanto deseja. Responda-se-lhe nesta razão: Primeiro está a obrigação, logo a temperança, e depois o gôsto.
¿ Que direi das voluntárias, que por nome, não menos próprio, se dizem teimosas ? ¿ de outras que aporfiam ? As mais são constantes, e ainda contumazes em seu parecer. Acontece isto com maior freqüência nas ou muito néscias, ou muito presumidas. Não venho em que com a mulher se litigue, que é conceder-lhe uma igualdade no juízo, e império, cousa de que devemos fugir. Faça-se-lhe certo que à sua conta não está o entender, senão o obedecer, e fazer executar, mas que não entenda. Mostre-se-lhe às vezes que, havendo quando se casou entregado sua vontade ao marido, comete agora delito em querer usar daquilo que já não é seu.
Tudo é sombra, se se compara com o defeito da facilidade, ou ligeireza; e ainda o não acabo de dizer, porque não acho nome decente. Mulheres há leves e gloriosas, prezadas de seu parecer: loureiras, cuido eu que lhes chamavam nossos antigos, por significar que a qualquer bafejo do vento se moviam. Êste é o último de seus males. Nem o quero considerar, porque nos não é necessário, nem apontar o remédio. A honra de cada um, e a consciência sejam neste triste caso os conselheiros. Com agudeza definiu êste ponto em poucas palavras um discreto: Sofra o marido à mulher tudo, senão ofense : e a mulher ao marido ofensas, e tudo.
Advertirei, todavia, que aquele seu pretexto, de que cortesanias, ou galanterias não fazem mal, é conclusão erradíssima, cuja prática introduziu a indústria, não a razão. Para que se pregue um prego, costumamos fazer-lhe primeiro lugar com uma subtil verruma. Nenhum vicio entra tamanho como é. Aquele bicho que no Brasil se padece por achaque, sem falta que com providência nô-lo deu a natureza a todo o mundo por exemplo ; entra invisível, começa entretenimento, passa a ser moléstia, chega a ser doença, e acontece que pode ser perigo. A honra da mulher comparo eu à conta do algarismo ; tanto erra quem errou em um, como quem errou em mil. Façarn as honradas bôas contas, acharão esta conta certa.
De umas que se prezam de formosas, não há para que nos descuidemos. Que a mulher se conheça não é vicio ; antes antiga opinião minha que em muitas partes tenho escrito. Devemos tanto conhecer o bem, se o há em nós, como o mal quando o haja. Aquele para que se guarde, e não perca ; êste para que se emende, e não vá adiante. Desejo que da formosura se use como da nobreza: folgue cada um de a ter, mas não que a amostre. Levar da espada a cada passo, argüe pouca prudência. O marido que vir sua mulher inclinar a esta vanglória, viva por ela mesmo avisado, e saiba que tem perigosa mercadoria, sendo esta das mulheres ao revés que as outras, pois quando mais cobiçada é, menos e para cobiçar. E por esta razão não faltou já quem duvidasse se a formosura se dava por prémio, se por castigo.
Passado havemos êste enfadonho labirinto, ou por êstes monstruosos mêdos, que o guardam. Tudo há no mundo, donde em nada perigará a pessoa advertida. Verá v. m. nos mapas, porque se governam os mareantes, notados com tanta diligência os baixos de que se hão-de guardar, como os portos aonde devem de ir a surgir.