- Em que se contam as desordens que Fanfarrão obrou no governo das tropas.
Agora, Doroteu, agora estava
Bamboando, na rede preguiçosa
E tomando, na fina porçolana,
O mate saboroso, quando escuto
De grossa artilharia o rouco estrondo.
O sangue se congela, a casa treme,
E pesada porção de estuque velho,
A violência do abalo despegada
Da barriguda esteira, faZ que eu perca
A tigela esmaltada, que era a coisa
Que tinha, nesta casa, de algum preço.
Apenas torno em mim daquele susto,
Me lembra ser o dia em que o bom chefe,
Aos seus auxiliares, lições dava
Da que Saxi chamou pequena guerra.
Amigo Doroteu, não sou tão néscio,
Que os avisos de Jove não conheça.
Pois não me deu a veia de poeta,
Nem me trouxe, por mares empolados,
A Chile, para que, gostoso e mole,
Descanse o corpo na franjada rede.
Nasceu o sábio Homero entre os antigos,
Para o nome cantar, do grego Aquiles;
Para cantar, também, ao pio Enéias,
Teve o povo romano o seu Vergílio:
Assim, para escrever os grande feitos
Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,
Entendo, Doroteu, que a Providência
Lançou, na culta Espannha, o teu Critilo.
Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo
A cumprir, respeitoso, os meus deveres
E, já que o meu herói, agora, adestra
Esquadras belicosas, também, hoje,
Tomarei por empresa só mostrar-te
Que ele fez, na milícia, grandes coisas.
Ha, nesta capital, um regimento
De tropa regular, a quem se daga.
Tu sabes, Doroteu, que não há corpo
Que, todo, de iguais membros se componha.
Das ordens mais austeras, que fizeram
Os santos penitentes patriarcas,
Saíram, contra o trono rebelados,
Os infames Clementes, e saíram
Contra o dogma, os Calvinos e os Luteros;
O mesmo Apostolado teve um Judas.
Se isto pois, Doroteu, assim sucede
Nos corpos, que se formam de escolhidos,
Que não sucederá, nos grandes corpos,
Aonde se recebam as pessoas
Que timbre fazem, dos seus próprios vícios?
O meio, Doroteu, o forte meio
Que os chefes descobriram para terem
Os corpos que governam, em sossego,
Consiste em repartirem com mão reta
Os prêmios e os castigos, pois que poucos
Os delitos evitam, porque prezam
A cândida virtude. Os mais dos homens
Aos vícios fogem, porque as penas temem.
Ora ouve, Doroteu, o como o chefe
Os castigos reparte aos seus guerreiros.
Não há, não há distúrbio nesta terra,
De que mão militar não seja autora.
Chega, prezado amigo, a ousadia
De um indigno soldado a este excesso:
Aperta, na direita, o ferro agudo
E penetra as paredes de palácio,
No meio de uma sala, aonde estavam
As duas sentinelas, que defendem,
Da casa do dossel, a nobre entrada.
Aqui, meu Doroteu, aqui se chega
Ao camarada inerme e, pelas costas,
O deixa quase morto, a punhaladas.
Que esperas tu, agora, que eu te diga?
Que o militar conselho já se apressa?
Que já se liga, ao poste, o delinqüente?
Que os olhos, com o lenço, já lhe cobrem?
Que a bala zunidora já lhe rompe
O peito palpitante? Que suspira?
Que lhe cai, sobre os ombros, a cabeça?
Meu caro Doroteu, o nosso chefe
É muito compassivo, sim, bem pode
Oprimir os paisanos inocentes
Com pesadas cadeias, pode, ainda,
Ver o sangue esguichar das rotas costas
À força dos zorragues, mas não pode
Consentir que se dê, nos seus soldados,
Por maiores insultos que cometam,
A pena inda mais leve: assim praticam
Os famosos guerreiros, que nasceram
Para obrarem, no mundo, empresas grandes.
Ele, sim bem conhece que não há-de
Talar, com estas tropas, as campinas,
Que o céu lhe não concede a esperança
De entrar no templo augusto da Vitória,
Coberto de poeira e negro sangue.
Mas sempre, Doroteu, as quer propicias,
Pois, inda que não cinjam as espadas,
Para cortar loureiros e carvalhos,
Que a testa lhes circulem, são aquelas
Que, prontas, executam seus mandados;
São aquelas, que infundem, nestes povos,
O medo e sujeição, com que toleram
O verem em desprezo as leis sagradas.
Conhece, Doroteu, o próprio chefe,
Que vai passando a muito a liberdade
Das fardas atrevidas, e, querendo
A tais desordens pôr remédio e freio,
Não manda que se cumpram as leis santas
Que, aos delitos, arbitram justas penas.
Manda, sim, um cartaz, aonde inova
Que, todos os domingos, na parada,
Se leia o militar regulamento.
Indigno e bruto chefe, de que serve
Que se leiam as leis, se os malfeitores,
Do que mandam, não vêem um só exemplo.
Tens visto, Doroteu, o como o chefe
Os delitos castiga; agora sabe
Da sorte que reparte, aos bons, os prêmios.
Morreu um capitão, e subiu logo,
Ao posto devoluto, um bom tenente.
Porque foi, Doroteu? seria, acaso,
Por ser tenente antigo? Ou porque tinha
Com honra militado? Não, amigo,
Foi só porque largou três mil cruzados!
Ah! não mudes a cor de teu semblante,
Prudente Maximino! Não, não mudes.
Que importa que comprasses a patente?
Se tu a merecias, a vileza
Da compra não te infama, sim ao chefe,
Que nunca faz justiça, sem que a venda.
Reforma um capitão e, no seu posto,
Encaixa, sem vergonha, a Tomazine,
Um moço, na milícia pouco esperto,
Que um ano inda não tinha de tenente.
Em que guerras andou, em que campanhas?
Quais as feridas, que no corpo mostra?
Aonde, aonde estão as diligências,
As grandes diligências arriscadas,
Que fez este mancebo, com que possa
Preferir aos antigos, destros cabos?
Ah! sim, eu já me lembro! Tem serviços,
Tem famosos serviços, na verdade:
A casa deste moço, bem que pobre,
É a casa somente, aonde o chefe
Entra em ar de visita, bebe e folga.
Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio;
Tu foste a capitão e tu passaste
Ao posto de major em breves meses.
Quais são os teus serviços? Quais? Responde.
Mas não, não me respondas; eu conheço
Que és tolo, que és brejeiro e, mais, que mandas
As redradas pedrinhas. Estes dotes
Te fazem, no conceito do teu chefe,
Um digno pai da pátria, herói do reino.
Também tu, ó Padela, te distingues
Na corja dos marotos. Tu conservas
De capitão o cargo, mas tu logras
O soldo de maior, e mais as honras.
Que foi que te fez digno de subires
À privança do chefe? Ah! sim, eu vejo
O teu merecimento! É coisa grande:
Ultrajas aos ministros e proteges
A todos os tratantes, que exercitam
O furto e o contrabando. Tu, piedoso,
Não queres ver perdido um só soldado;
Se algum, se algum consente que se escalem
Os vedados lugares, tu escreves
Ao sucessor honrado e lhe suplicas
Que parte não te dê, de um tal desmancho.
O teu fidalgo peito não se vence
Da sórdida avareza. Tu repartes
Os luzentes seixinhos c’o teu chefe,
E, bem que o seu Matúsio, em nome dele,
Os ache miudinhos, sempre servem.
Também tu, digno irmão, também cavalgas
O posto de tenente, por dizeres
Que honrado comandante, na parada,
Austero te corrige, por falares
Dos retos magistrados, sem respeito.
Que vezes a cachaça... Mas, amigo,
Deixemos de falar na paga tropa
E vamos a falar do grande corpo
Da gente auxiliar; aqui podemos
Acabar de dizer o mais que falta.
Tinha este continente, levantados,
De tropa auxiliar uns treze corpos.
O nosso chefe ainda não se farta:
Alista o povo inteiro, e, dele, forma
Inda mais de quarenta regimentos,
Mais faminto de ver galões e fardas
Que Midas de trocar em ouro puro
As coisas em que punha o torpe dedo.
O coronel, valente, agarra tudo
Quanto tem, de varão, a forma e traje;
Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados
Meninos inda sejam; que eles crescem,
E cresce, com os corpos, igualmente,
O santo amor das armas. Muitos, muitos,
Quando vão para a igreja receberem
As águas salvadoras do batismo,
Já vão vestidos com a curta farda.
Este mesmo costume tem, amigo,
O pago regimento. Apenas nasce
Aos cabos algum filho, logo, à pressa,
Lhe assenta o chefe, de cadete, a praça
Venturoso costume, que promete
Produzir, de cordeiros, tigres bravos!
Aníbal, Doroteu, desde menino
Com seu pai militou; talvez não fosse
O terror dos romanos, se passasse
A tenra, inda imberbe mocidade,
Entre os moles prazeres de Cartago.
Contudo, Doroteu, o céu permita
Que guerras não tenhamos;pois, a termos
Algum acampamento, que constranja
A saírem da praça os regimentos,
Há de haver bom trabalho em conduzir-se
O rancho de crianças em jacases.
Há-de, também, haver despesa grande
Em levar-se uma tropa de mulheres,
Que dêem o peito a uns e a outros papa.
Tu sabes, Doroteu, que as nossas tropas
De infantaria são, porem montada;
Que as leis do nosso reino não consentem
Que estas montadas tropas se componham
De membros, que não tenham certas rendas,
Com que possam manter os seus cavalos.
Ora ouve, Doroteu, quais são as posses
Dos míseros paisanos, que se alistam
Nos fortes regimentos: quase todos
Um sendeiro não têm, e muitos deles
Gemeram nas prisões, por não poderem
Ajeitar uma grossa e curta farda.
Eu topei Doroteu, por várias vezes,
Atrás de um regimento, os rapazinhos
Em veste e mais descalços: fina idéia
Em que deram os cabos, para verem
Se, à força de vergonha, se fardavam.
Eu sei, eu sei, amigo, que alguns destes,
Cansados de sofrerem mais opróbrios,
Fizeram fardamentos dos produtos
Dos únicos escravos, que venderam
E dos trastes alheios, que furtaram.
Perguntarás, agora, doce amigo:
"Aonde estão os ricos taverneiros?
Aonde os mercadores, que têm lojas
A que chamam de seco e de molhado?"
Aonde, Doroteu? Eu já t’o digo:
Estão, estão, também, nos regimentos,
Mas trazem nas direitas, que conservam
Inda lixosas peles, as bengalas.
Não rias, Doroteu, das nossas tropas.
De que gente formou um corpo invicto
O luso Viriato? Foi de moços
Criados, desde a infância, nas campanhas?
Não foi, meu Doroteu, foi de uns pastores,
De uns pastores incultos, que, animados
Do esforço do seu chefe, conseguiram
Vitórias singulares, contra um povo
Que ao mundo sujeitou, à força de armas.
Os homens, Doroteu, são todos fortes
Em cima das muralhas, que defendem
As chorosas mulheres e as fazendas,
Os ternos filhos e os avós cansados.
A desordem, amigo, não consiste
Em formar esquadrões, mas, sim, no excesso.
Um reino bem regido não se forma
Somente de soldados; tem de tudo:
Tem milícia, lavoura, e tem comércio.
Se quantos forem ricos se adornarem
Das golas e das bandas, não teremos
Um só depositário, nem os órfãos
Terão também tutores, quando nisto
Interessa, igualmente, o bem do império.
Carece a monarquia dez mil homens
De tropa auxiliar? Não haja embora
De menos um soldado, mas os outros
Vão à pátria servir nos mais empregos,
Pois os corpos civis são como os nossos,
Que, tendo um membro forte e os outros debeis,
Se devem, Doroteu, julgar enfermos.
É também, Doroteu, contra a policia
Franquearem-se as portas, a que subam
Aos distintos empregos, as pessoas
Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros,
Mal se vêem capitães, são já fidalgos;
Seus néscios descendentes já não querem
Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros
Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode
Um povo sustentar, que só se forma
De nobres sem ofícios? Estes membros
Não amam, como devem, as virtudes,
Seguem à rédea solta os torpes vícios.
Daqui saem os torpes malfeitores,
Os vis alcoviteiros, os perjuros,
Os famosos ladroes; numa palavra,
A tropa insultadora de vadios.
A este corpo imenso de milícia
Concede Fanfarrão as regalias
Que as nossas leis não dão aos bons vassalos,
Que chegam aos empregos mais honrosos,
Em paga de proezas e serviços.
Não quer, não quer o chefe, que aos seus cabos
Mandem citar os tristes acredores
Por ordem de justiça. Quais os grandes,
Que não vêm a juízo sem licença
Do príncipe, a quem servem, nesta terra,
Sem licença do chefe, não se citam
Os negros, os crioulos e os mulatos,
Mal vestem a fardinha e, muito menos,
Mal cingem, na cintura, honrosa banda.
Se alguém requer ao chefe que permita
Para isso faculdade, põe-lhe em cima
De humilde petição, que o suplicado
Componha ao suplicante o que lhe deve.
Se diz o suplicado ao suplicante
Que não lhe deve nada, foi-se embora
O sólido direito, que a policia
Do chefe não consente que se ponha
Aos seus oficiais, inda que sejam
Velhacos e ladrões, no foro, um pleito.
Já viste regalia igual a esta?
A pátria, Doroteu, concede aos nobres,
Que os postos exercitam, grossas rendas,
Com que possam pagar, aos mais vassalos
As coisas que lhes compram; não concede
Ao mesmo general que vista e coma,
À custa do suor dos outros homens.
E quando o rei não quer pagar a todos,
Com dinheiro contado, remunera
Os serviços com graças, mas daquelas
Que deixam sempre intacto o jus alheio.
Não são somente isentos da justiça
Os cabos valerosos. Onde habitam,
Se acolhem, Doroteu, os malfeitores,
E, quais antigas casas de fidalgos,
Ou famosos conventos, que, na porta,
Têm as grossas cadeias, onde pegam
Os míseros culpados, aqui todos
Se livram dos meirinhos, bem que sejam
Indignos, torpes réus de magistrado.
Se os ousados meirinhos entrar querem
Nas casas destes cabos, a que chamam
Militares quartéis, os fortes donos
Encaixam nas cabeças os casquetes,
Apertam as correias, põem as bandas
E, cingindo as torcidas, largas folhas.
Ultrajam com palavras a justiça,
Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.
Os zelosos juízes punir querem
A injúria da justiça: formam autos,
Procedem às devassas, pronunciam,
E mandam que estes nomes se descrevam
Nos róis dos mais culpados. Mas, amigo,
De que serve fazer-se o que as leis mandam
Na terra, que governa um bruto chefe,
Que não tem outra lei mais que a vontade?
O chefe onipotente logo envia
Atrevidos soldados, que, chegando
À casa do escrivão, os nomes riscam
Do rol dos delinqüentes e lhe arrancam
Da fechada gaveta os próprios autos.
Ousado, indigno chefe, que governo,
Que governos nos fazes? A milícia
Ergueu-se para guarda dos vassalos,
E tu, e tu trabalhas, por que seja
A mesma que nos prive do sossego
Que, próvidas, nos dão as leis sagradas.
Agora, Doroteu, talvez trabalhes
Em achar o motivo por que o chefe
Concede tanto indulto aos seus soldados;
Pois ele, Doroteu, não é o enigma,
Que vem nos doces versos de Vergílio,
De umas flores, que têm de reis os nomes
Escritos sobre as folhas, e do sitio
De que três braças só do céu se avista.
O chefe, Doroteu, só quer dinheiro,
E, dando aos militares regalias,
Podem os grandes postos, que lhes vende,
Subir à proporção, também de preço.
Tu assim o conheces, Cata Preta,
Pois deste mil oitavas por trazeres
Lavrado castão de ouro sobre a cana.
Tu também, capanema, assim discorres,
Pois largaste seiscentas, por vestires
De capitão maior vermelha farda.
Todos assim o julgam. Ah! só pensa
De diversa maneira, aquele néscio
Que sofreu que Matúsio lhe rompesse
A passada patente à sua vista,
Por não largar, de luvas, os trezentos.
Dize-me, Doroteu, um chefe sábio
Levanta nas conquistas umas tropas,
Com que não pode a força do distante
Conquistador império? Infunde, inspira
Nos cabos tanto orgulho, que se atrevam
A resistir aos mesmos magistrados,
Que a pessoa do augusto representam?
Maldito, Doroteu, maldito seja
Um bruto, que só quer a todo custo,
Entesourar o sórdido dinheiro.