Cartas de Amor ao cavaleiro de Chamilly/Carta Quinta e Última

CARTA QUINTA E ÚLTIMA


V
 

Esta é a última carta que te escrevo e espero fazer-te conhecer pela diferença dos termos e do estilo dela, que me persuadiste enfim que não me amavas, e portanto que devo cessar de amar-te.

Aproveitei, pois, a primeira ocasião para mandar-te o que me resta de ti…

Não arreceies que te escreva, porque mesmo não porei o teu nome no sobrescrito.

De tôdas particularidades encarreguei D. Brites, a qual eu tinha acostumado a confidências mui diversas desta…

Os seus cuidados me serão menos suspeitos que os meus.

Ela há-de usar de tôdas as cautelas precisas, a fim de poder assegurar-me que recebeste o retrato e pulseiras que me déste.

Quero porêm que saibas que desde alguns dias me sinto em estado de poder rasgar e queimar os penhores do teu amor, que tam extremosamente queridos tinha; mas dei-te a conhecer tanta fraqueza, que jàmais terias acreditado que eu chegasse a ser capaz de uma tal extremidade…

Quero assim comprazer-me em tôda a pena, que experimentei, separando-me dêles e causar-te ao menos qualquer agastamento.

Confesso com vergonha minha e tua, que me achei mais apegada do que quero dizê-lo, a estas ninharias, e que senti serem-me de novo necessárias tôdas as minhas reflexões para desembaraçar-me de cada uma em particular, quando já me lisonjeava de não ser-te mais afeiçoada.

Mas tudo se consegue, sendo aí a vontade ajudada de tantas razões.

Entreguei-as a D. Brites… Quantas lágrimas me custou esta resolução!

Depois de mil agitações, mil incertezas que tu não conheces e de que não te darei conta seguramente, pedi-lhe com as maiores instâncias de não me falar mais nelas, de não restituir-mas, ainda quando lhas pedisse sòmente para as ver uma derradeira vez, e de enviá-las finalmente, sem dar-me aviso.

Só conheci bem o excesso do meu amor, depois que quis fazer todos os esforços para curar-me dêle, e creio que não teria ousado tentá-lo, se tivesse antevisto tamanhas dificuldades e tantas violências.

Estou persuadida que teria sentido perturbações menos desagradáveis, amando-te, ingrato como és, do que despedindo-me de ti para todo sempre.

Experimentei que te queria menos do que a minha paixão, e tive extraordinário trabalho em combatê-la, depois que os teus injuriosos procedimentos me fizeram a tua pessoa odiosa.

A altivez, própria do meu sexo, não me ajudou a tomar estas resoluções contra ti.

Ai de mim!

Tenho sofrido os teus desprezos, teria suportado o teu ódio, e até o negro ciúme que me causasse a tua afeição para outra; pois teria tido ao menos alguma paixão com que pelejar, mas a tua indiferença me é insuportável!…

As tuas impertinentes protestações de amizade e os ridículos cumprimentos da tua última carta me fizeram ver que tinhas recebido tôdas as que te escrevi, que não moveram no teu coração nenhuns afectos, e que todavia as lêste!…

Ingrato!…

Tal é ainda a minha loucura, que me desespero por não poder lisonjear-me que elas não chegassem até aí, ou que não te fôssem entregues.

Detesto a tua lhaneza…

¿Porventura tinha-te pedido de me participares singelamente a verdade?…

¿Porque me não deixavas as ilusões da minha paixão?…

Bastava não me escrever: eu não procurava ser alumiada e desenganada.

¿Não é grande desdita a minha, quando vejo que não pude obrigar-te sequer a usar de alguma precaução, para continuar a trazer-me em doce engano, e que assim não sei mais como desculpar-te?…

Sabe pois que percebo enfim seres indigno de todos os meus sentimentos, e conheço tôdas as tuas ruins qualidades.

Porem se tudo quanto obrei por amor de ti pode merecer que dês alguma, ainda que ténue, atenção ao favor que imploro, conjuro-te de não me escrever mais, e de ajudar-me a perder inteiramente de ti a memória.

Se levemente mesmo me afirmasses ter sentido algum pezar, lendo esta carta, talvez te acreditaria, e talvez também a tua confissão e o teu consentimento me causariam despeito e ira, e tudo isto poderia atear em mim de novo a chama.

Não te embaraces pois com a minha conduta; derribarias todos os meus projectos, de qualquer modo que te quisesses ingerir neles.

Não quero saber o sucesso desta carta: não venhas perturbar aquele estado para o qual me disponho.

Parece-me que podes estar satisfeito dos males que já me causas, qualquer que fôsse o teu primeiro intento de fazer-me desgraçada.

Não me prives da minha incerteza; espero com tempo alcançar por meio dela alguma tranqüilidade.

Prometo de não aborrecer-te; desconfio demasiadamente de todo sentimento violento, para ousar intentá-lo.

Estou persuadida que acharia neste país um amante mais fiel… mas ai! ¿quem poderia dar-me amor?

¿A paixão de outrem teria acáso virtude de ocupar-me?… ¿Que poder teve a minha sôbre ti?

¿Não fiz eu a experiencia, que um coração enternecido não esquece mais o que o fez descobrir transportes que não conhecia, e de que era capaz? — ¿que todos seus afectos e movimentos estão profundamente arraigados ao ídolo que erigiu para a sua adoração? — ¿que as suas primeiras feridas não podem ser nem cicatrizadas, nem extintas? — ¿que tôdas as paixões que lhe oferecem socorro, e com tôdas suas fôrças tentam enchê-lo e contentá-lo, lhe prometem vãmente uma sensibilidade que não recupera mais? — ¿que todos os prazeres que procura, sem desejo de os encontrar, não servem senão para convencê-lo, que nada lhe é tam caro como a lembrança das suas penas?

¿Para que me fizeste conhecer a imperfeição e desagrado de uma paixão, que não deve durar eternamente, e os infortúnios que acompanham um amor violento, quando não é reciproco?

¿E porque causa uma inclinação cega e um cruel destino se aferram de ordinário em decidir-nos por aqueles que nos desamam, e que seriam sensíveis a outros amores?

Quando mesmo eu pudesse esperar qualquer distracção e recreio de uma nova afeição, em encontrar um homem sincero ao qual me liasse, tenho tanto dó de mim, que faria muito escrúpulo de pôr o mais ínfimo de todos no estado de miséria a que me reduziste; e ainda que eu nenhuma obrigação tenha de poupar-te, não poderia resolver-me a exercitar sôbre ti uma vingança tam cruel, no caso mesmo que ela dependesse de mim, por uma mudança que não prevejo.

Procuro actualmente desculpar-te, e compreendo perfeitamente que uma religiosa é em geral pouco amável.

Contudo parece que, se os homens fôssem susceptíveis de razão nas escolhas que fazem, deveriam antes namorar-se delas do que das outras mulheres.

Nada as estorva de pensar constantemente na sua paixão; nenhuma das mil cousas que no século servem de ocupação e divertimento as distraem.

Parece-me que não deve ser muito agradável ver as damas que amam sempre distraídas por mil bagatélas, e que é preciso ter bem pouca delicadeza para sofrer, sem uma desesperada impaciência, que elas falem tam sòmente de assembleias, atavios, e passeios…

Êles estão expostos incessantemente a novos ciúmes, sendo elas obrigadas a obsequiosas atenções, a complacências e conversações infinitas.

¿Quem pode assegurar-se de que em tôdas estas ocasiões não sentem algum deleite, e de que suportam sempre todos os deveres de seu estado com extremo enôjo e nenhum consentimento?…

Ah! quanto devem elas desconfiar de um amante que lhes não pede contas bem exactas de tudo, que acredita fàcilmente, sem inquietação, quanto elas lhe dizem, e que com muita confiança e tranqüilidade as vê sujeitas a tôdas estas obrigações!

Mas não pretendo provar-te com bôas razões que devias amar-me. Êstes meios são péssimos, e outros muito melhores empreguei eu, que me não aproveitaram.

Conheço demasiadamente qual é a força do meu destino, para diligenciar superá-lo…

Hei-de ser infeliz tôda a minha vida!…

¿Não o era eu quando te via todos os dias?

Morria de susto de que não me fôsses fiel.

Queria ver-te a cada instante, o que não era possível.

Perturbava-me o perigo a que te arriscavas, entrando neste convento…

Não vivia quando estavas no exército.

Desesperava por não ter mais formusura, e ser mais digna de ti.

Murmurava contra a mediocridade da minha condição.

Imaginava muitas vezes que o amor, que parecias por mim, poderia de algum modo prejudicar-te.

Julgava, a meu parecer, que não te amava suficientemente; atemorizava-me a ira dos meus parentes contra ti.

Estava, enfim, em um estado tam lastimoso como aquele em que, presentemente, me acho.

Se me tivesses dado algumas provas da tua paixão, depois que estás ausente de Portugal, teria feito todos os esforços para sair também dêle, e disfarçada em outros trajos, ir encontrar-me contigo…

Ai! ¿que teria sido de mim se depois de chegar á França, tu ali de mim nenhum caso fizesses?

Que desordem! que desatino! que cúmulo de vergonha para a minha família, que tam cara me é depois que não te amo!

Bem vês que, a sangue frio, conheço que era possível chegar a ser ainda mais miserável e mais digna de comiseração do que o sou, e que ao menos te falo uma vez na vida de bom siso…

Quanto a minha moderação te será grata!

Quanto ficarás contente de mim!

Não quero sabê-lo…

Já te pedi de não tornar a escrever-me, e de novo te suplico com a maior instância o mesmo.

¿Acaso nunca fizeste alguma reflexão sôbre o modo por que me tens tratado?

¿Não te vem ao pensamento jàmais as muitas obrigações que me deves, com preferência a tôdas as pessoas do mundo?

Amei-te como uma louca!…

Que desprêzo tinha para tôdas as cousas!…

O teu procedimento não é de um homem honrado…

A não teres tido aversão natural para mim, era forçoso que me amasses descomedidamente.

Deixei-me encantar por qualidades muito medíocres!…

¿Que obraste tu jàmais que houvesse de agradar-me?…

¿Que sacrificíos me fizeste?…

¿Não correste após mil divertimentos?…

¿Descontinuaste porventura o jôgo e a caça?…

¿Não foste tu o primeiro a partir para o exército?…

¿Não foste o derradeiro a de lá voltar?… Expuseste ali loucamente a tua vida, apesar de haver-te rogado tanto de a poupar por amor de mim…

Não procuraste com diligência os meios de estabelecer-te em Portugal, aonde eras estimado.

Uma carta de teu irmão decidiu-te a partir, sem a menor hesitação.

¿E não soube eu que durante a viagem conservaste a mais alegre disposição?

Forçoso é o confessar que tenho obrigação de aborrecer-te mortalmente.

Ah! eu mesma careei tôdas as minhas desgraças…

Acostumei-te logo no princípio a uma grande paixão com demasiada candideza, e é necessário artificio para ser amada.

É necessário procurar com destreza os meios de inflamar: — o amor por si só não chama amor.

Pretendias que eu te amasse, e como tinhas formado êste desígnio, estavas resoluto a empregar todos os expedientes para conseguir o teu intento, até mesmo a amar-me de-véras, se necessário fôsse.

Mas cedo conheceste que podias sair bem da empresa, sem te deixar levar de amor por mim, e que esta a paixão era escusada.

Que perfídia!…

¿Cuidas tu que pudeste impunemente enganar-me?…

Declaro-te que se por algum acontecimento fortuïto voltares a êste país, eu mesma te entregarei à vingança dos meus parentes.

Vivi muito tempo em um abandôno e em uma idolatria que me horrorizam, e os meus remorsos perseguem-me com um rigor insuportável.

Sinto vivamente a vergonha dos crimes que me fizeste cometer, e falta-me, ai de mim! a paixão que me estorvava o conhecimento da enormidade dêles…

¿Quando deixará o meu coração de ser dilacerado?…

¿Quando me verei eu livre dêste embaraço cruel?…

Contudo creio que não te desejo mal algum, e que me resolveria a consentir que fôsses feliz…

¿Mas como poderás tu sê-lo jàmais, se tens um bom e bem formado coração?

Quero escrever-te outra carta para mostrar-te que poderei talvez estar mais tranqüila dentro dalgum tempo.

Que gôsto será o meu de poder então lançar-te em rosto os teus iníquos procedimentos, depois que êstes já me não causarem comoção, e de dar-te a conhecer que te desprézo, que falo com a maior indiferença da tua traição, que esqueci todos os meus prazeres e tôdas as minhas penas, e que só me lembro de ti quando muito quero lembrar-me!

Convenho em que tens grandes vantagens sôbre mim, e que me inspiraste uma paixão que me fez perder todo o siso, mas pouco deves vangloriar-te disto…

Era joven, era crédula, tinham-me encerrado desde a infância neste convento; aqui não tinha visto senão gente desagradável; jàmais tinha ouvido os louvores que me davas continuadamente; parecia-me que te devia os atractivos e a beleza que dizias admirar em mim, e que me fazias conhecer; ouvia dizer muito bem de ti; todos me falavam em teu favor, tu fazias tudo para espertar o amor…

Mas, enfim, quebrei êste encanto… verdade é que me déste poderosos auxílios, e confesso que dêles tinha extrema necessidade.

Ao remeter-te as cartas, que tinha toas, guardarei cuidadosamente as duas últimas, e as tornarei a lêr ainda mais vezes do que li as primeiras, como preservativo de recair nas minhas fraquezas. Ah! quanto estas me custam caro, e quanto teria sido feliz se houvesses querido sofrer que eu te amasse sempre!…

Conheço mui bem que ainda com alguma demasia atendo à tua infidelidade e às minhas argüições queixosas; mas recorda-te que eu me tenho prometido um estado mais sossegado, e que hei-de alcançá-lo, ou hei-de tomar contra mim alguma resolução violenta, cujo êxito conhecerás sem muito desprazer…

Mas de ti nada mais quero…

Sou uma insensata em repetir-te as mesmas cousas tantas vezes…

É necessário deixar-te, e desviar de ti para sempre o pensamento.

Creio mesmo que não tornarei a escrever-te…

¿Acaso tenho obrigação de dar-te exacta conta de todos os diversos movimentos do meu coração?

 
FIM DAS CARTAS DE AMOR.