Cartas de Inglaterra (Eça de Queirós)/II
II
Ácerca de livros
Outubro chegou, e com este mez, em que as folhas cáem, começam aqui a apparecer os livros, folhas ás vezes tão ephemeras como as das arvores, e não tendo como ellas o encanto do verde, do murmurio e da sombra.
Estamos, com effeito, em plena Book-Season, a estação dos livros.
Estes dous mezes, setembro e outubro (e elles merecem-no porque como côr, luz, repouso, são os mais simpathicos do anno) têm accumulado em si as mais interessantes seasons, as estações mais fecundas da vida ingleza.
A London-Season, a celebre estação de Londres, quando a Aristocracia, maior e menor, os dez mil de cima, como se dizia antigamente, o folhado, como se diz agora, recolhe dos parques e palacios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres — passa-se em abril, junho e julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e ôca estação de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de cotillon. Emquanto que as outras!...
Olhem-me para estas sabias, uteis, viris, solemnes seasons, que abundam n’estes dourados mezes de setembro e outubro. Isto sim! Aqui temos, por exemplo, a Congress-Season, a estação dos congressos.
Que espectaculo! Toda a verde superficie da Inglaterra está então, de norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação. Ha-os de metaphysicos e ha-os de cosinheiros.
Aqui, duzentos individuos carrancudos e descontentes elaboram uma nova ordem social; além, uma multidão de sabios, acocorados, semanas inteiras, em torno de um objecto escuro, não pódem chegar á conclusão se é um tijolo vilmente recente ou uma laje da camara nupcial da rainha Ginevra; e adiante cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina definitiva da engorda do leitão — esse amor!
Os congressos mais notaveis este anno fôram — o de medicina em Londres, a que assistiram mil e tresentos congressistas medicos e cirurgiões dos dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometteu á humanidade, para d’aqui a annos, a suppressão das epidemias pelas vaccinas; o da British Association, a grande Sociedade das Sciencias (congresso annual celebrado este anno em York) em que o presidente, sir John Lubbock, esse amavel sabio que tem passado a existencia a estudar as civilizações inferiores dos insectos, laboriosas democracias de formigas, deploraveis oligarchias de abelhas — occupou-se d’esta vez, dando um balanço á sciencia durante os ultimos cincoenta annos, a mostrar algumas das estupendas habilidades d’esse outro ephemero insecto, o Homem: e emfim o congresso annual da Egreja, celebrado em Newcastle, composto de bispos, dignitarios ecclesiasticos, theologos, doutores em divindade, este largo clero anglicano, o mais douto e litterario da Europa. N’este, entre outros assumptos discutiu-se a Influencia da Arte na vida e no pensar religioso: mas, quanto a mim, o resultado mais nitido foi o revelar incidentalmente que a frequentação dos templos, em Inglaterra, diminue de um terço todos os dez annos, ao passo que o espirito de religiosidade cresce nas massas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia mais desprendido das fórmas caducas e pereciveis das religiões.
N’este momento ha outros congressos — o dos Metallurgistas, o das Sciencias Sociaes, o dos Telegraphistas, o Archeologico, o dos Gravadores, o dos... emfim, centenares. Até o dos Browninguistas. Não sabem o que são os Browninguistas? Uma vasta associação, tendo por fim estudar, commentar, interpretar, venerar, propagar, illustrar, divinisar as obras do poeta Browning. Isto, mesmo n’este paiz de arrebatados enthusiasmos intellectuais, me parece um pouco forte. Browning é sem duvida, com Shelley, Shakspeare e Milton, um dos quatro principes da poesia ingleza: mas tem o inconveniente de estar vivo. Elle proprio assiste, materialmente, com o seu paletot e o seu guarda chuva, ao congresso de que é objecto espiritual e assumpto: e fatalmente, pelo effeito mesmo da sua presença, a admiração litteraria tende a tornar-se idolatria pessoal, e os shake hands que elle distribue começam naturalmente a ser mais apreciados no congresso que os poemas que elle escreveu. Por isso mesmo que o divinisam, o amesquinham: não é então o grande poeta de Inglaterra, é o idolo particular dos Browninguistas, deixa assim de ser um espirito fallando a espiritos — para ser apenas um manipanso aterrorizando supersticiosos.
Mas, continuando com as estações, temos ainda a Yachting-Season, a estação nautica, das regatas, das viagens em yacht. Hoje em Inglaterra ter um yacht é, como entre nós montar carruagens, o primeiro dever social do rico ou do enriquecido, uma das fórmas mais triviaes do conforto luxuoso. Um yacht não é só um frágil e airoso barco de cincoenta toneladas e vela branca; póde ser tambem um negro e poderoso vapor de duas mil toneladas e sessenta homens de tripulação. N’este ultimo caso, em logar de bordejar gentilmente em redor das flôres e das relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar n’essas prodigiosas paisagens marinhas do alto Norte da Escossia, vae dar a volta ao mundo, carregado de biblias para os pequenos patagonios e de champagne e d’amor para as lindas missionarias, vestidas de marinheiras. A vida de yacht tem os seus costumes especiaes, a sua etiqueta, a sua phraseologia, a sua moral propria, e sobretudo a sua litteratura. A litteratura de yacht é vasta — William Black, o autor das Azas Brancas, do Nascer do Sol, da Princeza de Thude, o seu romancista official: um paisagista maravilhoso, de resto, tendo na sua penna todo o vigor do pincel d’um Jules Breton.
Temos igualmente n’este mez a Shooting-Season, a estação da caça ao tiro, que abre no 1.º de setembro com uma solemnidade tal, e no meio de um interesse publico tão intenso, tão fremente — que me dá sempre ideia do que devia ter sido nas vesperas da Grande Revolução a abertura dos Estados Gerais. Peço perdão d’esta abominavel comparação — mas a carne é fraca, e eu considero esta estação sublime. É n’ella que se caça o grouse, e é durante ella que se come o grouse. Não sabem o que é o grouse? É um passaro do tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençôe!) nos moors, ou descampados da Escossia... Agora deixem-me repousar um momento, e ficar aqui, n’um extasi manso, pensando no grouse, com as mãos cruzadas sobre o estomago, o olho enternecido, lambendo o labio... Não imaginem que eu sou um guloso. Mas nunca se deve fallar nas coisas boas sem veneração. Lord Beaconsfield, esse mestre do bom gosto, deu-nos o exemplo quando, tendo mencionado n’um dos seus livros o ortolan, esse outro delicioso passaro, acrescentou — que o peitinho gordo do ortolan é mais delicioso que o seio da mulher, o seu aroma mais perturbador que os lilazes, e o sabor da sua febra melhor que o sabor da verdade. Póde-se dizer o mesmo do grouse.
Continuando, temos a Burglary-Season, a estação dos assaltos e roubos ás casas. Esta começa tambem em setembro, quando a gente rica sai de Londres e deixa os seus palacetes, ou fechados, ou ao cuidado de um velho e somnolento guarda-portão. Os salteadores de Londres, corpo social tão bem organisado como a propria policia, procede então systematicamente, por quadrilhas disciplinadas, usando os mais perfeitos meios scientificos no arrombamento e no saque d’essas propriedades abarrotadas de cousas ricas...
Temos a Lecture-Season, ou estação das conferencias. O seu nome explica-a e seria longo detalhar-lhe a organisação. Basta dizer que n’esta estação não ha talvez um bairro em Londres (quasi podia dizer uma rua), nem uma aldeia no resto do paiz, em que se não veja, cada noite, um sujeito, com um copo d’agua, dissertando sobre um assumpto, deante d’uma audiencia compacta, attenta, interessada e que toma notas. Os assumptos são tudo — desde a ideia de Deus até á melhor maneira de fabricar graxa. E os conferentes são todo o mundo — desde o professor Huxley até um qualquer cavalheiro, o senhor Fulano de Tal, que sóbe á plataforma a contar as suas impressões de viagem ás ilhas Fidji, ou as aptidões curiosas que observou no seu cão...
Ha ainda outras estações que basta enunciar: a Hunting-Season, a estação da caça á raposa (isto é todo um mundo); a Cricket-Season, a estação em que se joga o cricket, — e em que se vêm d’estes edificantes espectaculos: doze cavalheiros, vindos do fundo da Australia, outros doze partindo dos altos da Escossia, e encontrando-se em Londres a jogar ao desafio uma tremenda partida que dura tres dias, na presença arrebatada de um povo em delirio!
Temos tambem a Angling-Season, a estação da pesca á linha, instituição nobilissima a que a humanidade deve o salmão e a truta. É o sport favorito da alta burguezia culta, da magistratura, dos homens de sapiencia, d’aquela parte da velha aristocracia sobre que mais pesam as responsabilidades do Estado. Todo este mundo, de solemne respeitabilidade e de alto ceremonial — pesca á linha. Talvez por isso, de todos os sports inglezes, a pesca á linha é um dos que têm produzido uma litteratura mais consideravel — tão consideravel que a sua bibliografia, a simples enumeração dos seus tratados, occupa um livro de duzentas paginas! Ahi observo com respeito a noticia de um ponderoso estudo sobre a Pesca á linha entre os Assyrios...
Só esta semana a litteratura da pesca á linha nos deu já dois livros, segundo as listas: A carteira de um pescador á linha, Pela beira dos rios.
Temos ainda a Traveling-Season, a estação das viagens, quando o famoso touriste inglez faz a sua apparição no continente. N’esta epoca (setembro e outubro) todo o inglez que se respeita (ou que, não podendo em sua consciencia respeitar-se, pretende ao menos que o seu visinho o respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte para os paizes do sol, do vinho e da alegria. Os anjos (se o não sonharam, como diz João de Deus) devem assistir então, do seu terraço azul, a um espectaculo bem divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto de Dover — e d’ahi successivamente partirem longos formigueiros de touriste, riscando de linhas escuras o continente, indo alastrar os valles do Rheno, negrejando pela neve dos Alpes acima, serpenteando pelos vergeis da Andaluzia, atulhando as cidades da Italia, inundando a França! Tudo isto são inglezes. Tudo isto traz um Guia do Viajante debaixo do braço. Tudo isto toma notas. Isto ás vezes viaja com a esposa, a cunhada, uma amiga da cunhada, uma conhecida d’esta amiga, sete filhos, seis creados, dez cães, e outros cães conhecidos d’estes cães; e isto paga por tudo isto sem resmungar! Não: não digo bem, resmungando sempre. Esta viagem de prazer passa-a quasi sempre o inglez a praguejar (mentalmente — porque nem a Biblia nem a respeitabilidade lhe permitem praguejar alto).
A verdade é que o inglez não se diverte no continente; não comprehende as linguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro, maneiras, toilettes, modos de pensar, o choca; desconfia que o querem roubar; tem a vaga crença de que os lençóes nas camas d’hotel nunca são limpos; o vêr os theatros abertos ao domingo e a multidão divertindo-se amargura a sua alma christã e puritana; não ousa abrir um livro estrangeiro porque suspeita que ha dentro cousas obscenas; se o seu Guia lhe affirma que na cathedral de tal ha seis columnas e se elle encontra só cinco, fica infeliz toda uma semana e furioso com o paiz que percorre, como um homem a quem roubaram uma columna; e se perde uma bengala, se não chega a horas ao comboio, fecha-se no hotel um dia inteiro a compôr uma carta para o Times, em que accusa os paises continentaes de se acharem inteiramente n’um estado selvagem e atolados n’uma putrida desmoralisação. Emfim o inglez em viagem, é um ser desgraçado. É evidente que eu não alludo aqui á numerosa gente de luxo, de gosto, de litteratura, de arte: fallo da vasta massa burgueza e commercial. Mas mesmo esta encontra uma compensação a todos os seus trabalhos de touriste quando, ao recolher a Inglaterra, conta aos seus amigos como esteve aqui e além, e trepou ao Monte Branco, e jantou n’uma table-d’-hote em Roma e, por Jupiter! fez uma sensação dos diabos, elle e as meninas!...
Que mais estações temos ainda? A Speech-season, a estação dos discursos, quando, nas ferias do parlamento, todos os homens publicos se espalham pelo paiz discursando, perante enormes meetings, sobre os negocios publicos. É uma das feições mais curiosas da vida politica em Inglaterra...
Ha outras muitas estações em setembro e outubro, mas não me lembram agora. E emfim, para não ser injusto, devo mencionar tambem o Outomno.
De todas estas, para mim, naturalmente, a mais interessante é a Book-Season, a estação dos livros.
Isto não quer dizer que fóra d’esta estação (outubro a março) se não publiquem livros em Inglaterra — longe d’isso, Santo Deus! Como não quer dizer que fóra da London-Season se não dance, ou fóra da Travelling-Season se não viaje. Significa simplesmente que as grandes casas editoras de Londres e d’Edimburgo reservam, para as lançar n’esta epocha as suas grandes novidades. Um livro de Darwin, um estudo de Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance de Georges Meredith serão evidentemente guardados para a estação. De resto, durante todo o anno não s’interrompe, não cessa essa publicidade phenomenal, essa vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se, fazendo pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo, uma outra crosta de papel impresso em inglez.
Não sei se é possivel calcular o numero de volumes publicados annualmente em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por dezenas de milhares. Aqui tenho eu deante de mim, no numero de ontem do Spectator, a lista dos livros lançados esta semana: NOVENTA E TRES OBRAS! E isto é apenas a lista do Spectator. Apenas o que se chama aqui Litteratura Geral. Não se contam as reimpressões; nem as edições dos classicos, em todos os formatos, desde o in-folio, que só um Hercules póde erguer, até ao volume miniatura, cujo typo reclama microscopio, e em todos os preços desde a edição que custa 50 libras, até á que custa 50 réis: não se contam as traducções de livros estrangeiros, sobretudo as litteraturas da antiguidade: não se conta, emfim, essa incessante producção das Universidades, essa outra levada de gregos e latinos, de commentarios, de glossarios, de in-folios, que lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon.
Ha n’esta litteratura geral uma especie de que o inglez não se farta — a litteratura de viagens. Já não fallo nos romances: isso não constitue hoje uma producção litteraria, é uma fabricação industrial.
Na vida domestica ingleza, a novela tornou-se um objecto de primeira necessidade como a flanella ou as fazendas de algodão; e, portanto, toda uma população de romancistas se emprega em manufacturar este artigo, por grosso, e tão depressa quanto a penna póde escrever, arremessando para o mercado as paginas mal seccas no ancioso conflicto da concorrencia.
Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é tambem consideravel, e de resto bem explicavel n’uma raça expansiva e peregrinante, com esquadras em todos os mares, colonias em todos os continentes, feitorias em todas as praias, missionarios entre todos os barbaros, e no fundo d’alma o sonho eterno, o sonho amado de refazer o Imperio Romano. Isto produziu um outro typo de industrial das lettras — o prosador viajante.
Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: o homem que visitava paizes longinquos, se achava em aventuras pittorescas, á volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a penna e ia revivendo esses dias n’uma agradavel rememoração de impressões e paisagens. Hoje não. Hoje emprehende-se a viagem unicamente para se escrever o livro. Abre-se o mappa, escolhe-se um ponto do Universo bem selvagem, bem exotico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um diccionario. E toda a questão está (como a concorrencia é grande) em saber qual é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro! Ou, quando o paiz é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda alguma aldeola, algum afastado riacho sobre que se possam produzir trezentas paginas de prosa...
Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito de capacete de cortiça, lapis na mão, binoculo a tiracollo, não pense que é um explorador, um missionario, um sabio colligindo floras raras — é um prosador inglez preparando o seu volume.
Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens publicados em Londres n’estas duas ultimas semanas.
É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os titulos, sómente, da lista de dous jornaes de critica: o Atheneum e a Academy. Note-se que estes livros são quasi sempre bem estudados: dão o traço e a linha que pinta, a paysagem com a sua côr e luz, a cidade com o seu movimento e feições; são graphicos e são criticos; têm a geographia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver com o detalhe caracteristico, o povo visitado, na sua vida domestica, a sua religião, a sua agricultura, o seu sport, os seus vicios, a sua arte se a tem. Calcule-se, pois, a importancia d’esta litteratura, que se torna assim um inquerito sagaz, paciente, correcto, feito ao Universo inteiro.
Aqui está, com os titulos traduzidos, o que se publicou n’estes quinze dias: A minha jornada a Medina — Entre os filhos de Han — Nas aguas salgadas — Longe, nos Pampas — Sanctuarios de Piemonte — O novo Japão — Uma visita á Abyssinia — Vida no oeste da India — Pelo Mahakam acima, e pelo Barita abaixo — A cavallo pela Asia Menor — Scenas de Ceylão — Atravez de cidades e prados — No meu Bungaló — As terras dos Matabeles — Fugindo para o sul — Terras do sol da meia-noite — Peregrinações na Patagonia — O Soudan egypcio — Terra dos Maggiyres — Atravez da Siberia — Notas do mundo do Oeste — Caminhos da Palestina — Norsk, Lapp e Finn (onde será isto Santo Deus?!) — Guerras, peregrinações e ondas (que titulo, Deus piedoso!) — A linda Athenas — A peninsula do Mar Branco — Homens e casos da India — A bordo do «Rapoza» — Sport na Crimêa e Caucaso — Nove annos de caçadas na Africa — Diario de uma preguiçosa na Sicilia — A leste do Jordão...
Ainda ha outros, ainda ha muitos — e em quinze dias!
Seria curioso dar parallelamente a lista de poemas, livros de poesias, odes, balladas, tragedias, annunciados ou já publicados na primeira quinzena da estação; mas não tenho paciencia em revolver todo esse lyrismo. Ha uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóes.
Não menos espessas, nem menos compactas são as listas dos livros de Theologia, Controversia, Exegese, etc., — exhalando de si uma melancholia de cemiterio. Em metaphysica ha o costumado sortimento — macisso e vago, como diria Herbert Spencer. Em historia, biographia, critica, as listas bibliographicas vêm riquissimas... Emfim, ao que parece, é uma formidavel e grandiosa estação de livros. Aos romances, nem alludo: montões, montanhas — e monturos!
Uma pastora meio-selvagem das Ardennes, que nunca vira outro espectaculo mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia trazida das suas serranias a Pariz, quando no boulevard passava, com a tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzella fez-se branca como a cêra, e só poude murmurar n’uma beatitude suprema:
— Jesus! tanto homem!
Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridiculo d’esta pastora, e balbuciando, com a bocca aberta, como se chegasse tambem das Ardennes:
— Jesus! tanto livro!
Mas não é este grito, como o da pastora, natural?
O beduino do deserto d’Oeste, que, passando a Serrania Lybica, avista pela primeira vez, immenso, lento, enchendo um valle, o rio Nilo, exclama espantado:
— Allah! tanta agua!
A agua é a sua preoccupação: todas as tristezas das areias que habita vêm da falta da agua: mais que ninguem sente as maravilhas que a agua produz; e no seu grito ha uma timida reprehensão a Allah! «Tanta agua aqui, e tão pouca lá d’onde eu venho!...»
Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor astuto.