IX

Os inglezes no Egypto


I

O que resta d’Alexandria. — A estreia d’Arabi Paxá. — Algemas ao café.

 

Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo convidativo dos Guias de viajantes como uma rica cidade de 250.000 habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera, tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum Guia, porém, por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.

Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d’um velho cemiterio mussulmano, uma coluna erigida outr’ora por um prefeito romano em honra de Diocleciano, conhecida pelo sobrenome singular de Pilar de Pompeu, e mais longe, estendido n’um areal, um obelisco pharaonico do templo de Luxor, que gosava a grotesca alcunha de Agulha de Cleopatra. E esta mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n’uma peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo dos comboyos...

Os bairros europeus d’Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos, antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia vivendo da pesca e do commercio d’esponjas) compunham-se principalmente d’uma vasta praça, a famosa praça dos Consules, orgulho de todo o Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares francezes — como um faubourg de Bordéus ou de Marselha transportado para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.

A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em terraço, pousados n’um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.

Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, insalubre, Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes, as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr’ora deuses, ainda hoje aves sagradas...

Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes, de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro, embaraçavam a passagem dos tramways americanos, onde os sheiks, de turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de libré — Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete, como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.

Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo, Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.

Do bairro europeu, da famosa praça dos Consules, dos hoteis, dos bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede enegrecida que se vae alluindo.

Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.

Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de Jehovah — uma d’essas coleras de que ainda estremecem as paginas da Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma chaga viva da Terra. Mas d’esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os seus canhões de oitenta toneladas.

Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos nomes dos homens fortes que n’estes ultimos dous mil annos se têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas, — aos nomes de Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o santo, de Diocleciano, o perseguidor, e de Ben-Amon, o sanguinario — o nome de Sr. William Gladstone, o humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d’essa cidade finmente dada ás letras o molestára n’um epigramma — por outro lado esta brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de Mehemet-Ali, este bombardeamento d’uma cidade egypcia, estando a Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia n’isto: — ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar fazendas. D’onde se vê que isso a que se chama aqui a politica imperial d’Inglaterra, ou os interesses da Inglaterra no Oriente, póde levar um ministro christão a repetir os crimes d’um pirata mussulmano, e o snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro d’Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não partilhar a cumplicidade d’esta brutal destruição d’uma cidade inoffensiva, deu a sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de oposição...

 

Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil legoas do Egypto e das suas desgraças.

No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns coupons, — a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os srs. Coloin e Blegniéres, ambos com funcções de secretarios de fazenda no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida egypcia!

De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados. No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada.

Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção estrangeira — porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva declarara-se coacto. Todos os que conhecem a historia contemporanea de Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que significa esta deliciosa phrase: El-rei está coacto! Isto quer dizer que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...

Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga n’esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então El-rei declara-se coacto, e pede a um rei visinho, mais forte e menos atarantado, que lhe mande uma divisão, a restabelecer a ordem — isto é a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d’autoridade regia, dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje, realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.

O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um pronunciamento planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do salamalek, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre o amor da nação, a felicidade dos subditos, que o ceremonial indica nas occasiões d’atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse, que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que os recompensou á maneira oriental — convidando-os a um banquete. Em torno da festiva mesa a cordealidade foi grande, o champagne espumou contra as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido nos jardins: e quando d’um lado entravam os escudeiros com os licores, do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas, levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza, foram conduzidos ás palhas do carcere.

Não ha nada mais delicioso — nem mais turco.

A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a energia de Sua Alteza!

II

A desforra de Arabi. — Reformadores e coroneis. — O programma fellah. — A conferencia de Constantinopla. — A confusão do Grão-Turco. — As esquadras.
 

O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.

Ao abrir o seu Times ou o seu Journal des Débats (porque este principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das potencias.

Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas — doze mil homens com dezoito peças d’artilharia — supplicando que Sua Alteza soltasse Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão, honrosa para a logica árabe: que, approvando o exercito as reformas de Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do carcere.

O Khediva, que acabava talvez de saborear no Times mais uma glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá: — e Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...

Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os foguetes que estalam n’esse dia — e de que ordinariamente, como dos foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a isto, aqui n’estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.

Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso principios de oitenta e nove ineditos nos sarcophagos dos Pharaós. Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse uma Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto governando-se a si mesmo, um Egypto para os Egypcios — não uma raça escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio franco para os esfomeados europeus.

A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador — era o ser elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n’uma d’essas tristes aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs — a peior que existe sobre a terra — elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda, e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas enfrascado em militança — e, portanto, prompto, desde que a sua voz resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do povo egypcio — o soldado e o fellah; — e desde o momento em que entre os egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas ideias, ao exilio e á enxovia, — tornou-se bem depressa, e naturalmente, chefe do partido popular que queria as grandes reformas nacionaes, e pela mesma occasião caudilho do partido militar, que só appetecia vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se infelizmente com a insubordinação.

Nas suas reformas encontravam-se, n’uma triste mistura, ao lado de idéas largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador, as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto — que elle pedia uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d’onde sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo, e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.

Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso moderno espirito europeu; mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes, é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito constitue a classe culta — a obra de progresso tem necessariamente de ser feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto — ou, antes, finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as reclamações da cabana — e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d’entre um quadrado de soldados...

De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do antigo typo, que apenas leu um livro — o Alcorão. Mas, como homem, possue qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr’ora pelos gafanhotos; — mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros, invocando o nome de Allah.

Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não póde attender a tudo, e que, portanto, se resolveu a tirar a espada em nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos agiotas christãos.

Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?

Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como consequencia d’esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande parte, para pagar os coupons de divida em Pariz e Londres, ficando tão pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se não dava soldo ao exercito!

Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua honra: — sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de recorrer ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia secretamente o agiota!...

Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas. Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os estrangeiros, que, sob o nome de tribunaes mixtos, distribuem duas justiças — uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim, esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados exclusivamente a estrangeiros — e que se não pagassem annualmente, como se pagavam, mais de trez mil contos de bom dinheiro egypcio, a francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston, foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto o seu regimento e ainda mesmo não tinha uniforme!

Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de Arabi, e não se imagina facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na Bolsa de Pariz, no Stock-exchange de Londres, onde os fundos egypcios tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d’esse iniquo aventureiro.

Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.

As potencias occidentaes trocaram as suas vistas, segundo a hedionda phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto estava em anarchia. O Khediva, esse já se declarara coacto, e urgia descoactar rapidamente esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França, pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e ancorados n’uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra, seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela approvação religiosa dos Ulemas...

Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o Times, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em todo o caso fez-se — e acompanhada de um documento, um papelucho diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos, toda a folia de um vaudeville? De um lado o Khediva abandonado, em palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi! Conheceis cousa alguma que mais reclame a verve do chorado Offenbach? Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho era estupido. Se o era! E estão d’ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens seus, gente de nervo e de arranque.

Perante esta resposta dada ao seu ultimatum, a Europa ficou, se me é licito este dizer irreverente — de orelha murcha. E então tomou a decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre os punhos. Chamou-se a isto a Conferencia de Constantinopla. O seu fim, todo louvavel, era resolver a questão do Egypto.

E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é terra britannica — e ella ainda lá está, a resolver!

Quanta habilidade n’aquella assembléa! N’aquella assembléa quanta auctoridade! Ainda lá está...

Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...

Depois de reunida a Conferencia, a Europa, naturalmente, lembrou-se que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos seus agitados dominios.

Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.

É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia hesita. Por um lado, os Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha, cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam, como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É simplesmente um pourboire?... Seja como fôr, o tributo existe — e, fundado n’elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente, devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão.

Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o pretexto de o tranquillisar e refazer d’elle uma provincia turca, um pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali, quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este caso, os ulemas da mesquita d’El-Azhar, o grande centro religioso e o grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do Oriente, possuindo no mundo mussulmano uma auctoridade igual á de um Concilio no mundo catholico, — tinham declarado que se o Sultão, em nome da Europa christã, pegasse em armas contra gente mahometana, tornava-se ipso facto apostata, e ipso facto perdia o califado. Por um lado tambem o Sultão, tendo, ao que se diz, recebido de Arabi promessas de depor o Khediva e proclamar em seu logar Helim-Pachá, que é em Constantinopla o conselheiro e o favorito do serralho — conspirava com Arabi contra o Khediva; mas por outro lado, tinha noticia das intelligencias de Arabi com o scherif de Meca, que, sendo o descendente directo de Mahomet, possue mais que o Sultão direitos ao califado, e é n’esta santa pretensão apoiado por todas as tribus da Arabia; e, receiando assim que Arabi se tornasse o auctor de um scisma no islamismo, o Sultão procurava minar-lhe a influencia crescente — e conspirava com o Khediva contra Arabi. Por um lado ainda, uma vaga revolução constitucional em paiz mussulmano era odiosa ao Sultão; mas, por outro, a maneira como Arabi, alma d’esse movimento, estava tratando d’alto parte da Europa colligada, lisongeava profundamente o seu coração turco. Emfim, este miserando chefe dos crentes não sabia onde havia de dar com a sua cabeça imperial... Não se pense, por este dizer ligeiro, que eu não respeito o Sultão: Abdul-Hamid não é um califa do antigo typo, embrutecido pelo uso de tres mil mulheres, — mas, segundo a expressão do principe de Bismarck, «um dos espiritos mais finos da Europa». Ora, o principe de Bismarck é um entendedor; ainda que, a meu vêr, duas cousas estragam esta famosa finura: primeira o ser excessiva, de modo que Abdul-Hamid, a maior parte das vezes, tropeça e fica enredado na engenhosa complicação dos seus proprios fios; depois o estar ao serviço, não de idéas praticas, mas de fantasias mysticas, como a que se lhe attribue de renovar, na ordem espiritual e em seu proveito, o imperio prophetico de Mahomet.

Emfim, instado pela Europa a intervir no Egypto, e não querendo que a Europa interviesse, porque isso seria a perda do seu pingue tributo annual, o Sultão decidiu-se a enviar Dervich-Pachá, uma velha raposa podre de manhas, com a missão de fazer reentrar Arabi no aprisco dos humildes. Mas apenas Dervich-Pachá começava esta operação, eis que o Sultão inquieto, vendo Arabi e o scherif de Meca de mãos dadas sobre o tumulo do Propheta, remette a Arabi a grande ordem do Medjidieh, a mais nobre condecoração turca, o favor supremo que póde cahir das mãos do califa, acompanhada de uma florida carta de amizade e d’uma esplendida placa de diamantes.

Isto tudo dá a medida da confusão do Grão-Turco.

Arabi, assim glorificado pelo califa, resplandeceu aos olhos do mundo mussulmano com um prestigio maior; Dervich-Pachá, um instante aturdido, redobrou de duplicidade: — e foi então entre Dervich, e Arabi, e o Khediva, e o Sultão, e as potencias, e os consules, e os pachás, e os coroneis, uma intriga tão emaranhada que eu prefiriria fazer-lhes um resumo lucido dos vinte e cinco volumes das Façanhas de Rocambole, do que penetrar na espessura inextricavel d’este embroglio turco-europeu — uma d’essas intrigas fastidiosas que devem enervar, fazer chorar de séca e de fadiga a Providencia, se ella, como affirmam philosophos que estão na sua intimidade, é obrigada a observar minuciosamente todos os successos humanos! Quanto o homem com a sua tolice deve, por vezes, fazer bocejar Deus!

Durante estes successos, emquanto a Europa chafurdava no atoleiro diplomatico, as duas esquadras de França e de Inglaterra, lá continuavam deante de Alexandria manifestando. Do romper do sol ao occaso, immoveis nas aguas calmas, com as camisolas da marujada seccando nas vergas, alli estavam manifestando...

Os officiaes repousavam de vez em quando d’esta rigida attitude de manifestação arranjando um pic-nic em terra, indo fazer um robber de whist ao club inglez, ou organisando, sob as sombras dos jardins de Ramleh, honestas partidas de cricket.

III

Episodio oriental. — Mussulmanos e christãos. — Uma estrumeira social. — Opiniões de mesa redonda. — Os funccionarios europeus do Cairo. — As dividas d’Ismail-Pachá. — O dia 11 de junho.
 

Achando-se as cousas assim, amanheceu o dia 11 de junho, que d’ora em deante na historia — n’esse curto instante de notoriedade humana, que emphaticamente se chama a historia — será conhecido por este gallicismo: o massacre de Alexandria.

O primeiro episodio oriental que eu vi, ao desembarcar ha doze annos em Alexandria, foi este: no caes da alfandega, faiscante sob a luz torrida, um empregado europeu — europeu pelo typo, pela sobrecasaca, sobretudo pelo bonnet agaloado — estava arrancando a pelle das costas d’um arabe, com aquelle chicote de nervo d’hippopotamo, que lá chamam courbach, e que é no Egypto o symbolo official da auctoridade.

Em redor, sem que esse espectaculo parecesse desusado ou escandaloso, alguns arabes transportavam fardos; outros empregados agaloados, de chicote na mão, davam ordens por entre o fumo do cigarro...

Saciado ou cançado, o homem do courbach, que era um magrisella, atirou um derradeiro pontapé á anatomia posterior do arabe — como quem, ao fim d’um periodo escripto com verve, assenta vivamente o seu ponto final — e, voltando-se para o meu companheiro e para mim, offereceu-nos, de bonnet na mão, os seus respeitosos serviços. Era um italiano, e encantador. A esse tempo o arabe (como quasi todos os fellahs, um soberbo homem de formas esculpturaes) depois de se ter sacudido como um Terra-Nova ao sahir d’agua, fôra-se agachar a um canto, com os olhos luzentes como braza, mas quieto e fatalista, pensando de certo que Allah é grande nos céos e necessario na terra o courbach do estrangeiro.

Quando, no dia 11 de junho, eu li esses telegrammas, repassados de panico, em que se annunciava á Europa que a população arabe massacrava os europeus nas ruas da Alexandria, — não sei porque revi logo o cáes da alfandega, o italiano serviçal de bonnet agaloado, o courbach estalando nas costas escuras do arabe. Isto não é trazido como allegoria, para dizer que as relações dos europeus e dos egypcios se reduziam a estas duas attitudes — um braço com manga de panno fino erguendo o courbach, e um dorso semi-nú esperando a sova: muito menos quero insinuar que o massacre do dia 11 foi a tardia vingança d’estas brutalidades burocraticas...

O Egypto não é a Serra Leoa; e o crescente ainda não anda tão de rastos que consinta em ser systematicamente espancado pela cruz. Mas a verdade é que no Egypto um qualquer empregado europeu da alfandega, das docas, ou dos caminhos de ferro, que não ousaria erguer a mão para um carrejão europeu, — retalha a pelle d’um egypcio, tão naturalmente e com tanta indifferença como se sacode uma mosca importuna.

É que o europeu d’Alexandria considerava o fellah egypcio como um sêr de raça infima, incivilisavel, mero animal de trabalho, pouco differente do gado; e se tivesse o estylo de La Bruyère, descrevel-o-hia como La Bruyère descrevia os aldeãos do tempo de Luiz XIV, «vultos escuros, curvados sobre a terra e tendo a vaga apparencia de seres humanos...»

N’estas condições de desprezo, usa-se facilmente o courbach e invariavelmente a insolencia...

E note-se que o europeu não tinha muito mais respeito pelo egypcio das classes superiores ou cultas. Qualquer amanuense de consulado julgaria da sua dignidade d’europeu não ceder o passo ao mais velho e nobre scheik, senhor de dez tribus e descendente do propheta; e o mais insignificante empregado dos telegraphos, leitor do Figaro, não nutriria senão desdem pelos sabios doutores da Universidade d’El-Azhar, que não vão ao café ler o Figaro, e pouco sabem de telegraphia.

Mas este absurdo desprezo por uma nobre raça, a quem a civilisação tanto deve, não se manifestava só entre os europeus de Alexandria, colonia de alluvião, formada pelos detritos das populações do Mediterraneo: não ouvimos nós ainda ha dias o proprio snr. Gambetta declarar das alturas da tribuna da camara franceza, esse Sinai da burguezia, que o povo egypcio só podia ser governado a chicote?...

A complicada abundancia da nossa civilisação material, as nossas machinas, os nossos telephones, a nossa luz electrica, tem-nos tornado intoleravelmente pedantes: estamos promptos a declarar desprezivel uma raça, desde que ella não sabe fabricar pianos de Erard; e se ha algures um povo que não possua como nós o talento de compor operas comicas, consideramol-o ipso-facto votado para sempre á escravidão...

Por outro lado, os egypcios olhavam para o europeu como para a ultima e mais terrivel praga do Egypto, uma outra invasão de gafanhotos, descendo — não do céo, onde ruge a colera de Jehovah, mas dos paquetes do Mediterraneo, com a sua chapeleira na mão — a alastrar, devorar as riquezas do valle do Nilo. E este prejuizo não é especial ás classes incultas: o pachá mais bem informado, educado em França, lendo como nós a Revista dos Dous Mundos, nunca reconhecerá o que o Egypto deve á energia, á sciencia, ao capital europeu; para elle, como para o ultimo burriqueiro das praças do Cairo, o europeu é mais que o intruso — é o intrujão.

O arabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas industrias, as nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo que, do calmo repouso dos seus harens, o grande ruido que nós fazemos sobre a terra, lhe parece uma vã agitação. Elle sente por nós o pasmo misturado de desdém que póde sentir um philosopho, vendo trabalhar um pelotiqueiro. O pensador diz comsigo que não é capaz de equilibrar uma espingarda sobre o nariz, e lamenta-o; mas consola-se reflectindo que o saltimbanco não é susceptivel de ligar duas idéas. Assim, o mussulmano admira um momento o nosso gaz, os nossos apparelhos, os nossos realejos, todo o nosso genio mecanico; depois cofia a barba, sorri, e pensa comsigo: «Tudo aquillo prova paciencia e engenho, mas eu tenho dentro em mim alguma cousa de melhor, e superior mesmo ao vapor e á electricidade — é a perfeição moral que me dá a lei de Mahomet.»

De resto, nós o sabemos pelas xacaras da nossa mocidade, sempre o crescente detestou a cruz; e póde-se imaginar quaes são os seus sentimentos, agora que a cruz, em logar de o combater como paladino, o explora como agiota.

Se em cidades como Damasco ou Beyrouth o europeu touriste inoffensivo, que passa com a bolsa aberta, excita olhares e murmurios de odio, sómente porque tudo n’elle é differente, desde os dogmas da sua religião até á fórma do seu chapéo — calcule-se o que se dá em cidades como Alexandria e como Tunis, onde o europeu não é touriste amavel que distribue gorgetas, mas o agenciador soffrego que vem instalar-se alli como em terra que conquistasse para arredondar depressa um peculio, sob a bandeira do seu consul.

Accrescente-se que no Egypto o europeu apparecia aos olhos do arabe com o caracter odioso de um privilegiado.

Uma cousa parecia intoleravel — é que o europeu empolgasse todos os logares, todos, desde as gordas sinecuras até os diminutos empregos de cem francos por mez.

Vagava um obscuro posto de carteiro ou de telegraphista — e concorriam, de um lado um arabe honesto e activo, do outro um sacripanta de nacionalidade grega ou malteza. A quem se dava o emprego? Ao sacripanta.

Este systema, fecundo a principio, quando o Egypto era uma barbara provincia turca, e os europeus chamados eram homens de saber especial e de integridade, começou no tempo de Mehemet-Ali, que tentava fazer uma nação sobre as ruinas do velho pachalato, e que convidava para essa obra a sciencia e o capital europeu: continuou depois com Said-Pachá, esse delicioso bon-vivant, tão francez que passava os dias a fazer calembourgs, e que não admittiria em torno de si, e nas repartições do estado, senão cavalheiros capazes de apreciar o Charivari; mas a grande invasão de empregados europeus consumou-se no tempo de Ismail-Pachá, — que acceitava tudo o que vinha da Europa, os especialistas e os vadios, os que traziam uma idéa e os que só traziam dividas...

O Egypto renovou então a velha lenda do El-Dorado. Quem em Pariz, ou em Londres, ou em Roma, se via filado pelos credores, com a derradeira sobrecasaca a coçar-se nos cotovellos, e sem poder voltar ao seu club, por dever dez francos ao porteiro, obtinha de um diplomata ou de um principe uma carta de recommendação para o Khediva e tomava o paquete de Alexandria.

Lá, nos primeiros dias, tinha o hotel pago por Sua Alteza — ao fim do mez emprego dado por Sua Alteza. Qualquer cousa: se era um velho tenor de sala, já sem voz, nomeava-se coronel de cavallaria; se era um militar desacreditado, despachava-se inspector das escolas. Quem não podia alcançar uma carta para o Khediva, ia rojar-se aos pés do consul. Quem não ousava apresentar-se ao consul, empregava as influencias transversaes do paço, as mais poderosas — os eunucos, os cosinheiros, as dançarinas... O emprego vinha, facil e pingue. E o fellah pagava toda a malta.

Mas o peior ainda eram os funccionarios superiores, que as potencias installavam no interior da administração egypcia — tão ciumentas umas das outras, que, se, por exemplo, a França conseguia accommodar um francez na directoria geral das finanças, logo a Inglaterra, para contrabalançar essa parcella de influencia, empurrava um inglez para dentro do estado-maior da marinha; e por seu turno a Italia, já desconfiada, mettia á força um filhote de Roma na direcção da instrucção publica. Alguns d’estes cavalheiros tinham de certo habilidades de especialistas; mas a sua abundancia mesmo enredava o movimento da machina administrativa. Está hoje provado que o Khediva, cedendo a estas pressões, era obrigado a ter seis empregados para fazer o simples trabalho de um! Todo este mundo formava um estado no estado.

Nas suas repartições de finança, nos seus tribunaes, nos seus estados maiores, nas suas commissões, em todos os recantos da sua administração, o Egypto só via faces estrangeiras, só escutava linguas estrangeiras, só sentia interesses estrangeiros; e o dinheiro egypcio mantinha esta cohorte, que só estava alli para annullar a influencia egypcia. E eram ao menos uteis?... O consul-geral dos Estados Unidos conta, n’um livro recente sobre o Egypto, que jantara um dia no Cairo com seis empregados superiores, todos estrangeiros, cujos ordenados sommados subiam annualmente a perto de cem contos! Nas suas repartições, a correspondencia, a escripturação, a contabilidade, tudo era feito em lingua arabe: e nenhum d’elles sabia o arabe!

 

Não havia talvez sobre a terra peior população que a de Alexandria. Essa cidade, que fôra outr’ora o refugio do saber e do luxo do oriente, tornara-se nos nossos dias, sob o Khediva Ismail-Pachá, o barril de lixo da Europa meridional. Todo o refugo humano da Grecia, das ilhas do Archipelago, da Italia, da Sicilia, de Marselha (e Deus sabe quanto estas bellas paragens classicas abundam em meliantes!) se esvasiava instinctivamente sobre Alexandria, alastrava-a, tornava-a sob o seu bello céo azul-ferrete uma fetida estrumeira social.

Bastava atravessar uma rua, para comprehender o conjuncto dos costumes.

A cada esquina, um café-cantante atulhado d’uma malta enxovalhada, que berra, cachimba, emborca aguardente, emquanto sobre o tablado, por traz da ribalta, uma matrona despeitorada e caiada vae rouquejando um estribilho obsceno... De dez em dez casas um lupanar, separado apenas da rua por uma simples cortina... Por toda a parte o jogo: um sacripanta traz uma pequena roleta, um banco, e no meio da rua installa a batota; em redor apinham-se logo outros sacripantas, e d’ahi a momentos a policia tem de acudir, porque corre sangue...

O viajante de gosto e de educação tinha de fugir bem depressa d’esta atmosphera, refugiar-se n’algum quieto café mussulmano, á beira d’agua tranquilla. Ahi ao menos só havia arabes que fumavam gravemente o seu chibouk, fallavam entre si com pollidez, comportavam-se com dignidade.

Ah! estou d’aqui a vêr a primeira mesa redonda a que me sentei em Alexandria!

Era presidida por um grego de pelle livida, de suissas reluzentes como verniz de sapatos, com um grilhão de ouro sobre o collete denotado e brilhantes, talvez verdadeiros, n’uma camisa de oito dias! Que intrujão! que bandido! Como aquillo rolara por todas as trapaças, todos os deboches do littoral levantino! O bom era ouvil-o fallar do Egypto como de um paiz conquistado, terra de ilotas que tinha obrigação de o vestir, de o calçar, de lhe encher a bolsa a elle, e aos outros que o applaudiam em torno da mesa redonda, todos europeus, agenciadores, empregadotes, simples vadios, todos de grilhões de ouro no relogio, de collarinho decotado, o carão resudando vicio, o fallar parlapatão, galãs de espelunca...

L’arabe, monsieur, dizia-me este equivoco personagem, n’um francez do Pireu, ce n’est qu’une infecte canaille!

O infecto canalha eras tu, livido grego!

É evidente que o que tornou Arabi mais popular no Egypto, foi a sua hostilidade aos estrangeiros. O Egypto para os egypcios! Esta phrase, todo um programma, calou fundo no animo do povo inteiro.

O Egypto para os egypcios — não para os empregados estrangeiros, nem para os agiotas estrangeiros...

Ah! esta questão dos credores! A famosa questão da divida egypcia! Em que gastou Ismail-Pachá esses centenares de milhões que a Europa lhe emprestou, e que o pobre fellah está pagando? Em primeiro logar, na realisação de uma idéa economica — o converter o Egypto, que é um paiz agricola, n’uma nação industrial. O Egypto produzia o assucar — porque o não refinaria? Possuia o algodão — porque o não teceria? E ahi começou, á força de milhões, a cobrir as margens do Nilo d’essas colossaes fabricas, de que hoje só restam ruinas; — ruinas de ferro enferrujado e de madeira podre, tão miseraveis e tão tristes, ao lado das bellas ruinas graniticas dos templos pharaonicos, representando, como ellas, a servidão de um povo, mas, pela sua fealdade, não podendo ao menos servir, como ellas, nem para assumpto de uma aquarella...

A outra causa da ruina do Khediva foi a sua prodigalidade. Quem não conhece essa lenda illustre? Quem se não lembra das festas do canal de Suez? Ahi cada verba se contou por milhões. Dois milhões para a illuminação do Cairo. Quatro milhões para o banquete de Ismailia. Despezas com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e no Canal — setenta milhões!... Para o champagne bebido n’essas semanas de bambocha — dous milhões! O fellah pagava.

Eh! E eu que estou aqui a fallar — tambem o bebi, esse champagne que era no fundo o suor do fellah espumante e assucarado! Tambem eu fui hospede de Ismail-Pachá, á custa do fellah! Tambem eu... Calemo-nos, cubramos a fronte de cinzas, imploremos o perdão do fellah!

 

O resultado d’estas fantasias industriaes, d’estes luxos de Salomão, foi que o Egypto se achou devendo á Europa centenares de milhões, por que pagava um juro de sete por cento, e, como burgueza prudente que zela os seus interesses, a Europa tinha pouco a pouco tomado conta da administração do Egypto...

Quando Arabi quiz modificar este systema, que convertia o povo egypcio n’uma horda de servos trabalhando para os financeiros de Pariz e Londres — as esquadras de França e Inglaterra appareceram logo, pedindo o desterro de Arabi, e o licenceamento do exercito, que era o instrumento e a força do partido nacional. Os arabes viram n’isto um odioso abuso da força, a Inglaterra e a França querendo manter á bala os interesses dos possuidores dos titulos da divida egypcia e os privilegios dos intrusos.

Desde esse momento Arabi tornou-se um libertador; e o Khediva, que as esquadras vinham proteger contra Arabi, passou a ser o renegado, o traidor.

Esta era a situação no dia 11 de junho. Alexandria tornara-se uma fornalha de excitação. Nas mesquitas prégava-se com furor a cruzada contra o christão: nos bazares fallava-se do estrangeiro como do cão maldito, da ave de rapina, peior que o gafanhoto que devora a seara nos campos ferteis do Nilo; e, ou fôsse o fanatismo que despertasse, ou fôsse a miseria que se queria vingar — todo o bom mussulmano se armava.

N’estas circumstancias, de uma chufa de botequim póde nascer uma guerra de raças. E, pouco mais ou menos, assim succedeu. Na manhã do dia 11, na rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglez, por um velho habito, deu chicotadas n’um arabe; mas, contra todas as tradições, o arabe replicou com uma cacetada. O inglez fez fogo com um revólver. D’ahi a pouco o conflicto entre europeus e arabes, em pleno furor, tumultuava por todo o bairro... Isto durou cinco horas — até que, por ordens telegraphadas do Cairo, a tropa, até ahi neutral, acalmou as ruas. E o resultado, bem inesperado, mas comprehensivel, desde que se sabe que os arabes só tinham cacetes e que os europeus tinham carabinas — foi este: perto de cem europeus mortos, mais de trezentos arabes dizimados. Os jornaes têm chamado a isto o massacre dos christãos: eu não quero ser por modo algum desagradavel aos meus irmãos em Christo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a matança dos mussulmanos.

IV

A fuga dos europeus. — O grande sonho inglez. — O «casus belli». — A vespera do bombardeamento.
 

Esta matança de christãos — para continuarmos a dar-lhe a sua alcunha diplomatica — puxou bruscamente a attenção do mundo que lê jornaes para o Egypto, e por isso devem ahi ter presentes e vivos — sem que se torne necessario o rememoral-os, detalhe a detalhe — todos os episodios que n’uma semana se desencadearam uns sobre os outros, com uma barafunda de melodrama: a indignação excessiva e tumultuosa da Europa, excitada pelo clamor e pelos gritos da imprensa ingleza; o desordenado panico que se apossou dos europeus residentes no Egypto; e o facto, estranho mesmo n’essa terra de classicos exodos, de uma colonia de mais de cem mil almas abandonando de repente o solo, onde, desde gerações se estabelecera, deixando occupações, interesses, empregos, casa e fazenda, precipitando-se apavorada para os caes de embarque, apinhando-se em paquetes, em navios de carga, em barcaças, em qualquer cousa que pudesse fluctuar na agua, e fugir da terra funesta, pagando a peso de ouro o direito de se agachar n’um buraco de porão; a maneira magistral como a Inglaterra, pelos officiaes da sua armada, organisou e policiou esta nova fuga dos hebreus; emfim, a chegada a Alexandria do Khediva, que perdera toda a auctoridade no Cairo, e colhia a opportunidade de vir abrigar os restos esfrangalhados da sua realeza sob os canhões do almirante Seymour.

Arabi-pachá, que se tornára, de facto, dictador, correu tambem a Alexandria — e o seu primeiro passo foi estabelecer tribunaes marciaes, para julgarem os massacradores do dia 11.

Note-se que se não tratava, nem por sombras, de punir os europeus que tinham mandado tresentos mussulmanos d’esta terra de miserias para o paraiso de Allah; mas sómente os mussulmanos suspeitos de terem posto mãos violentas sobre christãos. Ainda assim, os jornaes inglezes bradaram logo que não se podia ter confiança na justiça, na imparcialidade dos magistrados egypcios, tão hostis ao estrangeiro como á populaça — e que taes julgamentos não passavam d’uma farça, onde os réus, que se mostravam um momento á Europa carregados de ferros postiços, eram depois, por traz dos bastidores, acclamados como bons patriotas.

Arabi-pachá propoz então que esses tribunaes se compuzessem de juizes arabes e de officiaes inglezes. Isto indicava um desejo vivo, quasi uma sofreguidão de justiça. E, com effeito, se o partido nacional agora todo poderoso, se não mostrasse severo — corria o perigo de passar por cumplice; e se as suas refórmas tinham já inspirado tanta antipathia á Europa — o que seria se a elle se pudessem plausivelmente attribuir taes attentados?

De resto, para um mussulmano orthodoxo e fino como Arabi, toda a violencia contra o estrangeiro, contra o hospede, constitue a mais negra violação da lei santa. Arabi era sincero. Mas a Inglaterra não acceitou as suas propostas...

A Inglaterra não acceitou. A Inglaterra estava armada a bordo dos seus couraçados. E, todavia, mais que nenhuma outra nação ella soffrera com os tumultos d’Alexandria: o seu consul, brutalmente espancado, achava-se á morte; alguns dos officiaes da esquadra tinham recebido no uniforme, que é o orgulho da Grã-Bretanha, a lama e as pedradas da populaça egypcia; a maior parte dos europeus assassinados eram de nacionalidade ingleza; contra a Inglaterra se prégara a guerra nas mesquitas, nos bazares, e até sob a tenda beduina...

Mas a Inglaterra, generosa e paternal, queria esquecer essas injurias. Pudera!

É que não lhe convinha reconhecer as atrocidades do dia 11 como um mero e casual episodio de fanatismo mussulmano, a que algumas grilhetas e algumas cordas de forca poriam definitivamente termo; nem lhe convinha descer dos seus couraçados unicamente para ir a um tribunal ajudar a sentenciar dez ou doze facinoras.

O que á Inglaterra convinha, era attribuir a este conflicto local a magnitude de uma anarchia nacional, e offerecer ou impor o seu prestimo — não para castigar os tumultos de um bairro, mas para pacificar todo um paiz em desordem. E assim ella rejubilava com a chegada d’esse dia tão appetecido, tão pacientemente esperado desde o começo do seculo, tão anciosamente espiado desde a abertura do canal de Suez, em que teria emfim um pretexto para assentar na terra do Egypto o seu pé de ferro, essa enorme pata anglo-saxonia, que, uma vez pousada sobre territorio alheio, seja um rochedo como Gibraltar, uma ponta de areia como Aden, uma ilha como Malta, ou todo um mundo como a India — nenhuma força humana póde jámais arredar ou mover.

Já se não tratava de libertar o Khediva coacto, de defender as algibeiras dos portadores do emprestimo egypcio. Um interessse mais alto, ligado com os destinos do Imperio, levantava-se, dominava tudo.

O Egypto estava em anarchia: logo competia á Inglaterra, paladino da civilisação, restabelecer lá a ordem, impedil-o de recahir no estado barbaro.

O Egypto estava em anarchia: logo competia á Inglaterra, como grande potencia oriental, defender essa parte preciosa da terra egypcia — o canal de Suez, e evitar que elle cahisse nas mãos de Arabi ou de outro dictador mussulmano, hostil aos beneficios da civilisação.

É o que pouco mais ou menos respondia a Inglaterra, e bem alto, para que o mundo ouvisse — quando Arabi-pachá lhe propoz uma alliança judicial para punir o crime mussulmano do dia 11.

— Não, dizia John Bull, não se trata do dia 11! Esqueçamos o dia 11. Esqueçamol-o, como se elle fosse apenas o dia 7. A questão é outra. O Egypto está em anarchia. É necessario salvar a civilisação!

E estas nobres palavras significavam, despidas dos seus atavios humanitarios, que a Inglaterra, sob o pretexto de pacificar o Egypto, desembarcaria em Alexandria, occuparia por motivo de operações militares Port-Said e Suez, as duas portas do canal, e depois — depois nunca mais, n’esses pontos estrategicos do caminho da India, se arriaria a bandeira ingleza!

E, feito isto, ficava realisado o grande sonho britannico: — posse absoluta da estrada das Indias; John Bull fazendo sentinella a todas as portas succesivas que conduzem ao seu imperio do Oriente: á entrada do Mediterraneo, Gibraltrar e o seu rochedo inexpugnavel; no Mediterraneo, Malta e Chypre, duas ilhas, dois collossaes depositos de guerra: á entrada do canal, Port-Said; ao fim do canal e á bocca do Mar Vermelho, Suez; á beira do Golfo Persico, Aden; e d’ahi por deante as suas esquadras varrendo os mares...

Deante d’esta esplendida opportunidade se achou a Inglaterra, depois das carnificinas de Alexandria; e, tendo logo declarado officialmente o Egypto em anarchia, sem perda de um momento, começou a armar-se.

E, no meio de tudo isto — a Europa? Oh! a Inglaterra convidava, com bellos ademanes de desinteresse, a Europa a partilhar com ella a honra de pacificar o Egypto! Mas sabia bem que nenhuma das potencias moveria um soldado: nem mesmo a França, que tinha uma frota na bahia de Alexandria e collaborára nas manifestações platonicas; a França, governada por uma democracia burgueza que enriquece, e tornada toda ella uma vasta casa de negocio, não quereria por cousa alguma perturbar aquella paz tepida e doce em que amadurece o Milhão.

Além disso, as potencias já tinham resalvado a sua dignidade, sentando-se em torno da mesa verde da conferencia, á beira das aguas luminosas do Bosphoro, meditando com a cabeça entre os punhos a solução da questão egypcia. E, emquanto ao resto, estavam-se observando, armadas até os dentes, desconfiadas, ciumentas, odiando-se, mas immobilisadas reciprocamente pela propria magnitude dos seus armamentos.

A França receia a Allemanha; a Turquia teme a Russia; a Austria está contida por ambas; a Italia necessita a benevolencia de todas; e cada uma por seu turno treme do snr. de Bismarck, o hediondo papão, o Jupiter trovejante do Olympo diplomatico, que, no seu retiro de Varzin, torturado por toda a sorte de males, passa parte do tempo sob a influencia da morphina...

De resto, que todas appeteciam os despojos do Egypto, só o póde duvidar quem ignore os instinctos de pilhagem, de gatunice, de pirataria, que alberga sempre a alma d’um povo civilisado; mas nenhuma das potencias é, como a Inglaterra, uma ilha cercada d’um mar agitado, onde se move a maior frota da terra; e, apertadas no estreito continente, hombro contra hombro e espada contra espada, nenhuma dellas ousaria dar um passo para o lado do Egypto, com receio que o vizinho lhe saltasse ás guellas. Limitavam-se, por isso, cheias de rancor, a trocar phrases de diplomatica doçura, sentadas á mesa da conferencia.

Quando, deante d’uma casa fechada, os que lhe appetecem as riquezas, discutem, de penna na mão, a melhor maneira de lá entrar — a vantagem pertence toda áquelle que, em logar d’uma penna, se muniu d’um machado e atira de subito a primeira machadada á porta. Foi o que fez a Inglaterra. Emquanto os outros faziam planos pro-forma em cima d’uma carteira — ella fez fogo sobre Alexandria.

Sómente não se póde atacar uma cidade inoffensiva sem um pretexto. E a Inglaterra foi, á falta de outro melhor, forçada a apresentar um tão máu, que, como dizia a Associação dos Positivistas Inglezes, no seu protesto contra a invasão do Egypto, a sua puerilidade só consegue augmentar a sua immoralidade.

Perante os armamentos da Inglaterra, Arabi-pachá, se lhe não comprehendia as intenções espoliadoras, devia pelo menos concluir que era contra elle, contra o partido que elle dirigia, e contra as idéas que elle encarnava, que a Inglaterra se estava preparando; e, muito naturalmente, na espectativa de um ataque, organisou a sua defesa, artilhando os fortes de Alexandria, e erguendo baterias novas pela costa.

Foi contra isto que a Inglaterra protestou; e foi d’isto que fez um casus belli — declarando que, se as obras dos fortes não cessassem, ella destruiria os fortes!... Sem estar em guerra com o Egypto, ella considerava-se no direito de reunir deante de Alexandria uma frota ameaçadora; mas não admittia que as auctoridades de Alexandria concertassem sequer as brechas das velhas fortificações de Mehemet-Ali!

E que explicações estupendas o snr. Gladstone dava á Europa para justificar o casus belli! As baterias que Arabi ergue (dizia elle), os novos canhões que monta, põem em perigo os couraçados inglezes! E os couraçados não punham em perigo os fortes? Mas ao lado da esquadra ingleza estavam navios de guerra francezes, allemães, italianos, gregos, austriacos — tão expostos ás balas de Arabi como os que hasteavam o pavilhão britannico: e esses não se julgavam em perigo!

Que diria a Inglaterra se o commandante de algum dos couraçados francezes ou allemães, que por vezes vêm ancorar nas aguas de Portsmouth ou de Southampton — mandasse de repente prohibir ao governador de uma d’essas praças a continuação das obras de defesa que ahi se vão incessantemente aperfeiçoando, sob o pretexto de que taes baterias poderiam fazer mal ao navio de seu commando?... Com tal precedente, os almirantes inglezes, que honram frequentemente o humilde porto de Lisboa com a presença dos seus pavilhões — estariam auctorisados a exigir a destruição da torre de S. Julião, do Bugio e de Belém! Dir-se-hia que não é de prever que o portuguez, pacato e bonacheirão, faça fogo — muito menos sobre couraçados inglezes. De accordo. Mas que ganharia Arabi-pachá em mandar de surpreza algumas balas á esquadra ingleza — e portanto ás outras que estavam no mesmo ancoradouro — senão o attrahir sobre si, e o seu partido, e o seu paiz, a pavorosa vingança da Europa inteira, injuriada em todos os seus pavilhões?

Arabi fez uma cousa fina: cedeu, promettendo interromper os trabalhos de defesa. E a Inglaterra ficou desapontada. Esta submissão de Arabi desmanchava o seu engenhoso plano.

Alguns jornaes mais cynicos e impacientes chegavam a aconselhar que se não respeitasse a palavra d’um vil mussulmano — e que se fosse bombardeando! O trabalho então da frota foi vigiar incessantemente as fortificações, na esperança de descobrir algum sapador, d’enxada ao hombro, que desmentisse a promessa d’Arabi. De noite, os couraçados projectavam sobre a costa longos e vivos raios de luz electrica, movendo-os lentamente ao longo das baterias, pesquizando anciosamente os menores recantos, procurando o mais leve vestigio de trabalho — fosse elle um cesto de pedras esquecido; e assim foi que uma noite — noite venturosa para o governo do snr. Gladstone! — a esquadra descobriu dois soldados limpando um velho canhão! Que allivio para a Inglaterra! Immediatamente o almirante Seymour mandou este ultimatum a Toulba-pachá, governador da cidade: — dentro em vinte e quatro horas os fortes deveriam ser entregues ás tropas inglezas, ou toda a linha de couraçados abriria fogo sobre Alexandria. A isto, realmente, só se póde responder a grande palavra de Cambronne em Waterloo.

Lamento que Arabi a não dissesse: era a segunda vez na historia que John Bull a receberia em plena face.

A vespera do bombardeamento foi dramatica. O almirante Seymour fez sahir da bahia todos os navios mercantes; e, depois, com a usual etiqueta, convidou os navios de guerra de outras nações a fazerem-se ao largo, levando para fóra da linha de fogo a neutralidade das suas bandeiras. Essa longa procissão de couraçados de toda a Europa, deixando lentamente as aguas da Alexandria, para que a Inglaterra pudesse livremente commetter o seu attentado — é descripta pelos correspondentes inglezes como cheia de solemnidade e de ceremonial. As salvas succediam-se; uns aos outros cortejavam-se os pavilhões dos almirantes. Os ultimos a sahir foram os navios francezes, os alliados na manifestação, que, honra lhes seja, não quizeram ser alliados no crime: — e a tricolor afastou-se tambem, saudada pelo almirante Seymour, entre os hurrahs de despedida da marinhagem e o estridor da Marselhesa. A tarde estava bella; tudo era luz na bahia; os minaretes d’Alexandria branquejavam no azul... Magnifico espectaculo, sem duvida: — sómente que pensariam d’elle os milhares de pobres arabes, de mulheres e de creanças, que o contemplavam das alturas da cidade, e sobre os quaes ia cahir no dia seguinte bala, metralha e bomba?

Por fim, a noite desceu e estrellou-se; á beira da agua calma luziam as luzes d’Alexandria; tudo ficou em silencio na bahia.

Estavam a sós, frente a frente, sob a paz dos ceus, uma grande esquadra ingleza e a cidade inoffensiva que ella, na madrugada seguinte, para satisfazer a sofreguidão mercantil de um povo de lojistas, ia friamente arrasar.

V

Depois do bombardeamento. — Os incendios. — As responsabilidades. — Uma Alexandria ingleza. — A invasão. — A attitude da Europa.
 

O almirante Seymour, dias antes, tinha declarado que em duas breves horas desmantelaria os fortes de Alexandria. Ao cabo, porém, de nove compridas horas ainda não fizera calar as baterias egypcias; e ainda justamente uma bomba vinha escavacar a camara do commandante do Inflexivel.

Sir Beauchamp Seymour reconheceu, nos seus despachos para o almirantado, «que os melhores artilheiros da Europa se poderiam orgulhar de uma tão bella resistencia». Mas nem coragem, nem reductos, nem muralhas de granito prevalecem contra esses negros monstros que desfeiam os mares — o Monarcha, o Alexandra, o Soberbo, o Sultão, o Invencivel, o Minotauro, e tantos outros que lá estavam, movediços castellos de ferro, servidos pelas forças combinadas do vapor, da hydraulica, da electricidade, devastadores como um cataclysmo e exactos como uma sciencia.

Pobres fortalezas de Mehemet-Ali! Foi a velha fabula da panella de barro contra que tombou a panella de bronze. Ao anoitecer, eram apenas montões de ruinas fumegando em silencio...

Estava consummada a façanha! Na bahia, agora, tudo cahira n’uma grande paz; a noite descera calma e escura; os enormes couraçados repousavam; da cidade vencida não vinha o menor ruido; só n’um ponto de terra o palacio de Rasel-tin ardia ao abandono. Foi então que o eloquente correspondente do Standard telegrahou para o seu jornal esta phrase que merece fama: — A situação não póde ser mais satisfactoria!

Pelo meio da noite, porém, da parte de Alexandria, onde ficava a Praça dos Consules, começou a erguer-se um vasto clarão. Alli, evidentemente, havia um incendio. Mas como? Porque?

O almirante Seymour lavaria d’ahi as suas mãos — se tivesse a bordo a bacia de Poncio Pilatos. Elle concentrára escrupulosamente o seu fogo sobre os fortes: uma ou outra bomba poderia ter cahido nos bairros arabes — e nada mais legitimo, nem de mais salutar terror; mas a parte européa de Alexandria fôra poupada... E todavia, era lá que o incendio se estendia avermelhando, aquecendo o ceu; e de outros pontos visinhos iam subindo na noite altas labaredas. Diabo! A situação já não era tão satisfactoria...

Ao outro dia houve um tempo muito nublado, com um mar muito forte. Os couraçados, por precaução, fizeram-se ao largo. Quando, horas depois, vieram retomar as suas posições de combate, Alexandria, deante d’elles, ardia toda como uma monstruosa fogueira. Positivammente, não era nada satisfactoria a situação!

Não era. Arabi-pachá abandonára Alexandria, levando o grosso do exercito. E a população mussulmana, enfurecida por nove horas de bombardeamento, sem policia para a conter, com os ulemas a excital-a, tomada da cobiça da pilhagem, e inflammada pela furia das represalias, correra aos bairros europeus, — e incendiou, saqueou, matou, destruiu; matou pela raiva de matar, porque até pobres cavallos de carruagem appareceram esquartejados; destruiu pela raiva de destruir, porque se acharam nas ruas, aos pedaços, vestidos de senhoras, relogios de sala e oculos de theatro...

Ferocidades de fanatismo, que se arremessa n’uma vingança indiscriminada sobre tudo o que lhe represente a raça, os costumes, as idéas que elle odeia — sobre os homens e sobre os espelhos. Isto não se dá só em paiz mussulmano. Sempre que os parizienses invadiam as Tulherias, rasgavam á ponta de sabre o setim das poltronas...

Collocou-se a população de Alexandria, por taes excessos, fóra da humanidade? Os inglezes dizem que sim; eu digo que nós teriamos feito o mesmo, nós europeus, christãos e podres de civilisação. Se, quando os allemães estavam bombardeando Pariz — os parizienses vissem no centro da sua cidade um bairro exclusivamente allemão, compacto, monumental, luxuoso, erguido pelo dinheiro que o allemão ganhára a explorar a França, — resistiriam os parizienses, os mais civilisados dos mortaes, a besuntal-o de petroleo e fazel-o flammejar por uma bella noite de inverno?

A resposta é facil, lembrando-nos que, quando por seu turno o snr. Thiers, esse homunculo de estado, bombardeou Pariz, os parizienses apressaram-se a destruir o palacete do snr. Thiers.

Foi Arabi que ordenou o incendio de Alexandria? Não, evidentemente. Arabi não é um patriota selvagem, do typo d’esse Rostopchin que queimou Moscou: é um fellah fino e sagaz, que sabe que na Europa, na Inglaterra sobretudo, onde affectamos todos uma sensibilidade humanitaria, nada desacredita mais que uma fria crueldade. Basta observar a attitude polida, quasi paternal que elle toma com os prisioneiros inglezes — o guarda-marinha Chair, por exemplo.

Quando este official foi levado ao acampamento arabe, Arabi disse-lhe logo, depois d’um shake-hands.

— Escreva a sua mãe, conte-lhe que está entre mãos leaes, e tire-a d’inquietações...

Isto era de certo sincero — mas sobre tudo habil: e uma tal palavra voou direita ao coração de todas as mães inglezas. Desde os conflictos d’Alexandria, o empenho d’Arabi tem sido proteger os europeus que ainda restam nas villas do interior. Os cadis que não evitaram o massacre dos empregados do caminho de ferro do Delta, foram decapitados. A elle se deve a tranquillidade do Cairo, onde existe uma enorme massa de propriedades e riquezas européas. Que ganharia Arabi em destruir esta prospera cidade egypcia, no começo da campanha e com o seu exercito intacto? Apenas a fama d’um monstro boçal.

Á Inglaterra cabe a responsabilidade da catastrophe. As bombas do almirante talvez, com effeito, não tivessem arrasado mais que alguns casebres arabes; mas á imprevidencia do governo se deve a ruina d’Alexandria.

Desde o meiado de junho, o mais experiente, mais auctorisado dos seus agentes diplomaticos, o snr. E. Malet, consul geral do Egypto, não cessou de bradar — que se o bombardeamento era inevitavel, Sir Beauchamp Seymour devia ter tropas de desembarque, para occupar a cidade, apenas os fortes fossem destruidos, e impedir assim que, no caso provavel de Arabi se retirar para o interior, ella ficasse á mercê d’uma plebe semi-barbara...

Nada d’isto se fez.

Sir Beauchamp Seymour bombardeou, arrasou, repelliu virtualmente d’Alexandria a Arabi, a unica força que continha uma populaça de cem mil fanaticos — e, depois, ficou a bordo do seu couraçado, vendo tranquillamente arder, deante de si, uma das mais ricas cidades do Mediterraneo.

Por outro lado, a quem aproveitava o incendio? Á Inglaterra. O pretexto de que os fortes punham em perigo os couraçados britannicos, só a auctorisava, perante os escrupulos da Europa, a destruir os fortes, não a occupar a cidade. Agora, porém, que ella estava em chammas, abandonada á anarchia, á pilhagem, ao ataque das hordas beduinas que corriam do deserto — agora ella tinha o direito — mais, ella tinha o dever! — de desembarcar e ir salvar de uma total aniquilação tanta riqueza, tão esplendido centro de commercio!...

Generosa Inglaterra! E desembarcou logo, aquartelou tropa, plantou bandeira. Tinha deante de si um monte de ruinas, e em poucos dias foi dando fórma a uma Alexandria nova, já com feição ingleza e administrada á ingleza.

Os incendios foram dominados; as ruas desentulhadas; estabeleceu-se uma policia terrivel, que executava summariamente os ladrões e os incendiarios; abasteceu-se a cidade: a alfandega reabriu as portas; em substituição das lojas destruidas, armaram-se barracões de venda; o machinismo judicial foi posto em movimento; reparou-se a fabrica do gaz, a cidade foi reilluminada; os bancos voltaram a funccionar.

E, como era necessaria uma auctoridade, em nome de quem se reorganisasse a vida municipal, os inglezes, que apenas estão alli (diziam elles) como um corpo de policia, foram buscar o Khediva a uma casa dos arredores, onde elle se refugiara durante o bombardeamento, e installaram-n’o solemnemente no palacio de Ras-el-tin, palacio meio ardido, onde elle é uma auctoridade meio morta!...

 

Desde este momento, a situação tornou-se muito definida, muito simples. Os inglezes possuiam, governavam Alexandria, tão naturalmente como se ella estivesse situada no condado de Yorkshire; e de fronte d’Alexandria, n’essa especie de isthmo arenoso que a liga á terra do Delta, estava Arabi n’um acampamento entrincheirado, governando d’ahi todo o valle do Nilo e o deserto até o mar. Os inglezes recebiam incessantes reforços de casa e da India. Arabi chamava á guerra contra os inglezes todo o povo fellah. A Inglaterra preparava uma invasão. Arabi organisava uma grande defesa nacional. Nada mais claro. A questão é entre a Inglaterra, procurando estabelecer um protectorado sobre o Egypto, arrancar-lhe as cidades estrategicas que dominam o canal, e Arabi-pachá, um patriota, que quer o Egypto para os egypcios, que receia a protecção do estrangeiro como a peior desgraça de um paiz fraco, e que entende que, pelo facto de que Alexandria, Port-Saïd e Suez se acham desgraçadamente no caminho da India, não é motivo para que se tornem guarnições inglezas. E dos dous lados, grande enthusiasmo.

Em Londres, onde acabou a season e começa a monotonia das praias de banhos, o partir para conquistar o Egypto passou a considerar-se uma feliz aventura. Se o ministerio da guerra o consentisse — toda a mocidade de ouro, ou apenas de latão dourado, se alistaria, porque é do mais requintado chic ir dar cabo de Arabi!

O duque de Connaugth, um dos filhos de S. M. a Rainha, faz parte da expedição, e o duque de Teck, seu cunhado, não sendo militar, partiu, diz-se, como simples empregado do correio. Os officiaes dos regimentos de guardas, essa pura nata da aristocracia e flôr da finança, tiveram a ventura de vêr os seus luxuosos regimentos, de ornamentação monarchica, expedidos para o Egypto; sómente este natural prazer foi em parte estragado pela severidade do ministerio da guerra, que, como se tratava de uma campanha e não de um torneio, não consentiu que esses gentis-homens fôssem seguidos por equipagens, creados de librés, tendas de luxo e caixas de vinho de Champagne.

Um d’estes officiaes exprimiu alto a sua indignação, porque o estado-maior só lhe consente tres cavallos de sella, dous creados de quarto e cinco malas de bagagem!

Por outro lado, ao comprido do Nilo toda a população fellah se declarou por Arabi; como por elle se declararam as classes lettradas, as mesquitas, os ulemas, os coptas, os proprios principes parentes do Khediva. Os mudirs, governadores de provincias, pagam-lhe a elle os impostos. Os scheiks do deserto mandam-lhe a sua cavallaria.

E este ardor é tanto maior, quanto Arabi-pachá foi de ha muito prophetisado; já a sua inesperada entrada no governo se considerou um advento divino; e este rebelde (como outros rebeldes que tão gloriosamente fizeram o seu caminho na terra e no ceu) é Messias!

Uma antiga prophecia mussulmana annuncia que no seculo decimo terceiro da Hegira nascerá á beira de um grande rio um homem de raça vil, por nome Ahmet, que se revoltará, e restaurará o esplendor do Islam; ora, os arabes estão no século XIII da Hegira, e Arabi, cujo nome é Ahmet, cuja origem é fellahina, tendo nascido n’uma aldêa á margem do Nilo, revoltou-se contra o seu califa. Assim, elle reune o duplo prestigio de um Spartacus e de um Christo.

Concentrada a questão entre uma poderosa nação invasora e um patriota que defende o seu solo — a Europa tomou logo a sua tradicional attitude: isto é, murmurou algumas palavras de branda admoestação, e depois recuou para longe, a observar como um braço forte sabe usar da sua força, a estudar como se consuma a espoliação de um fraco.

Nos ultimos quinze annos a Prussia roubou a Dinamarca, e depois foi pela Allemanha saqueando reinos e grãos ducados; em seguida, desmembrou a França; mais tarde a Russia espatifou a Turquia; ha dous annos, subitamente, a Republica Franceza cahiu sobre Tunis, e empolgou esse desventurado estado barbaresco. Em cada um d’estes casos a Europa comportou-se como um coro das operas d’antiga escola, quando membrudo barytono, ahi pelo quarto acto, erguia o ferro sobre o tenor gentil e magrizela: o côro adeanta-se, modula uma larga phrase, agita os braços em cadencia, faz o commentario amargo da acção, brada talvez: suspendei! Depois, afastando-se em grande compostura, deixa á bocca da scena o tyranno barbudo sondando tranquillamente com a ponta da lamina o interior do galã...

 

Não fallemos mais na Europa. Não ha, nunca houve Europa, no sentido que esta palavra tem em diplomacia. Ha hoje apenas um grande pinhal de Azambuja, onde rondam meliantes cobertos de ferro, que se odeiam uns aos outros, tremem uns dos outros, e, por um accordo tacito, permittem que cada um por seu turno se adeante — e assalte algum pobre diabo que vegeta ou trabalha ao canto de seu cerrado. Nas largas e bem traçadas estradas do Direito Internacional, allumiadas por Ortolan e outros lumes, rouba-se de carabina alta, e rompem a cada momento brados de povos assassinados. A Europa, como os campos de corridas em Inglaterra, devia estar coberta d’estes avisos em lettras gordas: Beware of pick-pockets! Cautela com os salteadores.

A pequena propriedade politica tende a acabar. Toda a terra vae em breve reunir-se nas mãos de quatro ou cinco grandes proprietarios... Hontem, era Tunis — porque a França necessita proteger a fronteira da Argelia. Hoje, é o Egypto — porque a Inglaterra precisa assegurar o caminho da India. Amanhã, será a Hollanda — porque a Allemanha não póde viver sem colonias. Depois, a Servia — por motivos que a seu tempo a Austria dirá. Mais tarde, a Rumania — porque a Russia é forte. Depois a Belgica — porque sim. Depois...

Este assumpto é lugubre. Voltemos ao valle do Nilo!

VI

Situação dos exercitos. — O Nilo, a secca, os areaes. — Os perigos de um «Jehad». — O septicismo mussulmano. — O mundo ingleza-se. — Filaucias de John Bull.
 

Postos estão frente a frente

Os dois valorosos campos...

Esta melancolica chacara que, se bem me recordo, chora as desgraças de Alcacer-Kibir — serve para pintar graphicamente a situação estrategica de inglezes e egypcios, desde que se abriu a campanha. Para comprehenderem bem, imaginem um grande A. O triangulo interno da lettra é o Delta — essa terra amada dos deuses, tão rica, que ella, só por si, outr’ora alimentou o imperio romano; ao alto da lettra, na ponta, está o Cairo — de sorte que um poeta persa poude dizer gentilmente que o Delta é um leque verde fechando sobre um botão de diamante, que se chama o Cairo. Á base da perna direita do A fica Alexandria, e ahi permanece uma parte do exercito inglez, defendido pelas fortificações de Ramleh — e tendo deante de si, a tiro de peça, o grande campo entrincheirado de Arabi-pachá, que se chama Kraf-Daonar, contendo 18 mil egypcios, enormes parques de artilharia, e fechando a marcha pelo Delta. A outra parte do exercito inglez, commandada pelo proprio general em chefe Sir Garnet Wolseley, dirigiu-se por mar á base da perna esquerda do A, que é, pouco mais ou menos, Ismailia, e d’ahi subiu por essa linha até Kassassine, onde parou e se fortificou; achando-se igualmente a pouca distancia, outro enorme campo entrincheirado, onde Arabi tem quinze mil homens, que se chama Tel-el-Kebir. E estes quatro campos, postos frente a frente, e observando-se, constituem até hoje a guerra do Egypto.

Para chegar, pois, ao Cairo, seu objectivo militar e politico, Sir Garnet precisa tomar as posições egypcias de Kraf-Daonar, se quizer ir pelo Delta — e as de Tel-el-Kebir, se tentar avançar pelo deserto.

Até hoje os quatro campos limitam-se a trocar entre si, em certas escaramuças, algumas languidas balas. Os jornaes de Londres, naturalmente, noticiam estes tiroteios de vanguarda com um tremendo apparato de lettras de palmo, mappas lithographados e largos rufos de prosa — fazendo maior alarido do que se tivesse sido pelejada de novo a batalha de Waterloo; mas isto é simplesmente para promover a venda do numero.

Os egypcios, entrincheirados, em seus campos contam com poderosos alliados: do lado do Delta confiam no Nilo, o velho e bondoso Nilo, que não poderá deixar de ser fiel áquelles que ha seculos nutre, e que, dentro em pouco, inundando as terras do Delta; e ajudado pelos engenheiros d’Arabi, que certamente obstruirão os canaes, terá convertido n’um immenso estendal de lamas inatravessaveis esse caminho do Cairo, o mais favoravel para os inglezes, pois seria como marchar n’uma rica e infindavel granja, entre pomares, jardins, frescuras e celleiros cheios... Do lado do deserto, os egypcios contam com o sol, com a secca e com a areia. Póde-se imaginar o que soffrerão essas tropas do frio Norte, marchando em areaes abrasados n’uma reverberação de luz que estonteia, sob um calor tão torrido, que o metal dos estribos cresta os botins, e tendo para beber só agua barrenta, que é necessario ferver primeiro! Já as insolações, as dysenterias, a nostalgia, dizimam os regimentos — e como o commissariado inglez, sempre mau, encontra aqui difficuldades de transporte, as tropas de S. M. a Rainha Victoria já tem soffrido fome! Ah! custa caro o caminho das Indias!

Além d’estes alliados que elle possue na natureza, Arabi espera ainda nas tribus beduinas, e n’essas hordas errantes d’arabes a cavallo que estão chegando do lado de Tripoli a combater o cão estrangeiro, e que, se diz, constituem um reforço de trinta mil homens...

Por seu lado, os inglezes contam apenas comsigo. E isto não é pouco. Como diz a sua celebre canção de guerra — elles têm os navios, têm o dinheiro, e têm os homens. Têm tambem essas magnificas tropas indias, que riem do sol, da secca, e das areias d’Africa. E isto levou Sir Garnet a declarar que a campanha estaria finda no dia 15 de setembro. É verdade que nós estamos a 7 de setembro, e elle, entrincheirado em Kassassine, tendo deante de si a barreira formidavel de Tel-el-Kebir, ainda está pedindo reforços. Mas isto prova só que esse raio de guerra, tendo habitos differentes dos de Cesar, chegou, viu, e reflectiu. Demos-lhe mais um mez; demos-lhe tres largamente; o certo será que ao fim d’este anno, Arabi, os seus campos, o seu exercito, a sua bella aspiração a uma nacionalidade egypcia, tudo isso se terá esvaido — como se esvae uma nuvem n’esse secco céo africano.

Os inglezes poderão soffrer revezes, perder milhares d’homens, gastar milhões de libras; mas, tendo uma vez compromettida a honra da sua bandeira, com um fim d’engrandecimento imperial, não embainharão a espada antes de ter installado na cidadella do velho Cairo, ao som do God save the Queen, um governador inglez.

Evidentemente o snr. Gladstone falla apenas de restabelecer a ordem e restaurar o Khediva. Meras locuções diplomaticas. O Times, que é o verbo d’Inglaterra, esse falla, sem rebuço, em protectorado. E ha muitos inglezes, ainda menos reservados que o Times, que dizem redonda e seccamente — conquista.

Mesmo quando o snr. Gladstone, que é a seu modo um democrata dentro dos limites do Evangelho, e o seu illustre collega Lord Granville, que é um jurista e um diplomata, quizessem, em respeito ao liberalismo, á Europa, ao direito internacional e a outras cousas vagas, deixar o Egypto reorganisar-se a si mesmo — sahindo elles de lá com as mãos vasias, depois de terem supprimido Arabi e o seu turbulento partido — a Inglaterra inteira, em massa, protestaria contra este philosophico desinteresse...

Ha alguem ahi assaz ingenuo para suppôr que John Bull, essa torre de senso pratico, consentiria em que se lhe dizime o exercito, em que se lhe gaste o dinheiro como elle gasta a agua das fontes, em que se lhe augmente o income-tax — só para que o Khediva, esse amavel moço, continue a fumar o narghilé do poder sob as sombras dos jardins de Choubra? John Bull não ficará satisfeito senão com este resultado macisso e duradouro — um Egypto inglez, tendo dentro do seu territorio, como um corredor de casa particular, o canal de Suez, caminho das Indias. Um ministerio que, depois de ter enterrado nos areaes da Africa milhões de libras e milhares de vidas, não lhe der isto — receberá no mesmo instante, na parte posterior da sua individualidade, o bico da bota de John.

Mas se Arabi, derrotado, conseguir levar o Scherife de Méca a proclamar contra a Inglaterra um jehad — que é uma guerra santa, uma crusada, um levantamento em massa do mundo mussulmano?

Bons espiritos, em Inglaterra, dizem ser este um grande perigo — pois que só na India ha cincoenta milhões de mahometanos. Eu não creio, porém, que haja aqui motivo para John Bull empallidecer. E lamento-o! Porque é d’um bello pittoresco essa idéa d’um jehad com o seu ceremonial — o Scherife de Méca desenrolando o estandarte verde de Mahomet, os doutores do Islam assignando todos o fetva fatal, e logo, de cada canto da Asia e d’Africa, a torrente dos crentes precipitando-se em nome de Allah! Bello motivo d’ode — a que não corresponde nenhuma realidade...

Em primeiro logar, nunca se fez! O crescente tem sido muitas vezes humilhado pela cruz, o Islam tem recebido na face a mão da Europa christã, o Califa tem fallado repetidamente em proclamar um jehad — e todavia o estandarte do Propheta continuou enrolado nos sacrarios de Méca. E a minha opinião é que se elle fôsse um dia desenrolado — haveria apenas um pedaço de panno verde mais, fluctuando ao vento do ceu.

E querem que lhes diga porque? Porque penso que os mussulmanos estão a esta hora tão scepticos como nós outros, os christãos. Nas areias do deserto, como nas nossas praças allumiadas a gaz — já não será facil encontrar mil homens de boa vontade, que peguem em armas em nome do seu Deus.

De certo todo o bom mussulmano, a certas horas do dia, se orienta para o lado de Méca e se prostra nas reverencias rituaes: pura questão de educação, de boas maneiras, de habito, como nós outros tiramos o chapéu ao passar por um calvario de aldeia. Ou então, superstição vaga, vago terror nervoso, como o de certos philosophos e positivistas das minhas relações, que sempre, ao saltar da cama, fazem o signal da cruz.

Dentro do Alcorão vê-se já o caso melancolico de uma lei divina ir cahindo em desuso. O Sultão recebe a jantar os embaixadores, e bebe com elles champagne: a policia do Cairo prende os santos derviches vagabundos, e já não é respeitado o jejum do Ramazan.

Como o nosso Evangelho, a palavra de Mahomet vae-se tornando objecto de poesia, de commentario, de controversia. Ha Renans no Islam; e o verbo divino, uma vez analysado, deixa de inspirar a fé que leva á morte.

O mundo mussulmano está no seu seculo decimo-terceiro, na sua plena meia edade, e certamente ha muito beduino sob a tenda, tão crente, tão penetrado de Mahomet, como aquelles corações simples, que, ainda ha pouco no deserto dos nossos claustros, choravam ao ler a paixão de Jesus; mas não creio que mesmo esses patriarchas deixassem os seus oasis, os seus rebanhos, os seus harens, para virem gratuitamente, sem outro pret a não ser o sorriso das houris nos jardins do Paraizo, supportar o fogo dos canhões Krupp. E emquanto ás classes cultas de Constantinopla, do Cairo, de Smyrna, de Tunis, essas acreditam tanto na promessa das houris, como nós outros, aqui em Regent-Street, nas palmas verdes da Bemaventurança e no côro dos Serafins...

Por todo o universo a religião desapparece das almas; e apenas lá fica essa vaga religiosidade, feita em parte do abalo que deu ao nosso coração uma tão longa sujeição ao sobrenatural, em parte do confuso terror que impera n’este grande universo que nos cerca, tão simples e tão mal comprehendido. N’este estado negativo, de passividade na duvida, não se gera facilmente um impulso d’acção forte. Um jehad no Islam é tão impraticavel — como uma cruzada no Christianismo. Pedro Ermita hoje iria acabar na policia correcional, por perturbador da ordem publica e das relações internacionaes; e os fanaticos que, ainda hoje, ás portas das mesquitas do Cairo, bradam contra o touriste estrangeiro as injurias aconselhadas pela boa doutrina, são immediatamente levados para a enxovia, por fazerem alarido nas ruas!

Mahomet, nas suas mesquitas, Christo, nas nossas capellas, vão singularmente envelhecendo; o nosso Messias vae-se cobrindo pouco a pouco do pó que levanta o forte arado da razão, lavrando um mundo novo; e o propheta do Islam, tendo perdido a força da sua unidade, subdividido em mil prophetas menores que presidem a mil seitas differentes, mal póde resistir á lenta avançada da civilisação occidental. E com Christo e Mahomet, que eram os principios militantes e vivos das suas religiões, desapparece o que n’essas religiões havia de vivo e de militante. Resta Deus, resta Allah. Sublimes abstracções, incapazes de inspirar amor ou heroismo.

O que mais faz amar a Divindade é a quantidade de humanidade que ella encerra. Clovis batia-se por Jesus, que tinha um peito de homem como o d’elle, e n’esse peito humano cinco chagas abertas; Soliman morreria feliz por Mahomet, que era como elle um guerreiro, e como elle amava a belleza.

Mas quem se vae bater por Deus, por Allah, essas entidades tão vastas que enchem todo o ceu, e tão pequenas que não bastam a satisfazer o nosso coração, que nos são subalternas, porque são feitas á nossa imagem, e são no fundo a nossa propria alma alargada até ao infinito com todas as suas fraquezas?!

De resto, é possivel que eu esteja aqui attribuindo a fortes corações de Meca e do deserto os scepticismos litterarios de Pall-Mall e do Boulevard de la Madeleine. Que sabemos nós do que se passa dentro do Islam? Tão pouco como os lettrados da mesquita d’El-Azhar sabem o que por cá vae dentro do nosso confuso catholicismo.

 

Mas, mesmo que se effectuasse um jehad, seria apenas motivo para a Inglaterra gastar mais alguns milhões e sacrificar mais alguns regimentos. Nem o Alcorão, nem o famoso estandarte verde, nem o proprio Mahomet, que voltasse á terra a desfraldal-o, impediriam que John Bull se estabeleça no Egypto...

Já lá está, nunca mais de lá sahirá!

Estão em toda a parte, esses inglezes! O seculo XIX vae findando, e tudo em torno de nós parece monotono e sombrio — porque o mundo se vae tornando inglez. Por mais desconhecida e inedita nos mappas que seja a aldeola onde se penetre, por mais perdido que se ache n’um obscuro recanto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe — encontra-se sempre um inglez, um vestigio de vida ingleza!

Sempre um inglez! Inteiramente inglez, tal qual como sahiu da Inglaterra, impermeavel ás civilisações alheias, atravessando religiões, habitos, artes culinarias differentes, sem que se modifique n’um só ponto, n’uma só prega, n’uma só linha o seu prototypo britannico. Hirtos, escarpados, talhados a pique, como as suas costas do mar, ahi vão querendo encontrar por toda a parte o que deixaram em Regent-Street, e esperando Pale-Ale e roast-beef no deserto da Petrea; vestindo no alto dos montes sobrecasaca preta ao domingo, em respeito á egreja protestante, e escandalisados que os indigenas não façam o mesmo; recebendo nos confins do mundo o seu Times ou o seu Standard, e formando a sua opinião, não pelo que vêm ou ouvem ao redor de si, mas pelo artigo escripto em Londres; impellindo sempre os passos para a frente, mas com a alma voltada sempre para traz, para o home; abominando tudo o que não é inglez, e pensando que as outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os habitos, as maneiras que os fazem a elles felizes na sua ilha do Norte!

Estranha gente, para quem é fóra de duvida que ninguem póde ser moral sem ler a Biblia, ser forte sem jogar o cricket, e ser gentleman sem ser inglez!

E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se desinglezam. Ha raças fluidas, como a franceza, a allemã, que, sem perderem os seus caracteres intrinsecos, tomam ao menos exteriormente a forma da civilisação que momentaneamente as contêm. O francez no interior da Africa adora sem repugnancia o manipanço, e na China usa rabicho. O inglez cahe sobre as idéas e as maneiras dos outros, como uma massa de granito na agua: e alli fica pesando, com a sua Biblia, os seus clubs, os seus sports, os seus prejuizos, a sua etiqueta, o seu egoismo — tornando-se na circulação da vida alheia um encommodativo tropeço.

É por isso que, nos paizes onde vive ha seculos, é elle ainda o estrangeiro.

Em toda a parte onde domine e impere, todo o seu esforço consiste em reduzir as civilisações estranhas ao typo da sua civilisação anglo-saxonia. O mal não é grande quando elles operam sobre a Zululandia e sobre a Cafraria, n’essas vastidões da Terra Negra, onde o selvagem e a sua cubata mal se distinguem das hervas e das rochas, e são meros accessorios da paizagem: ahi encontram apenas uma materia bruta, onde nenhuma anterior fórma de belleza original se estraga, quando elles a refundem para a fazer á sua imagem. Vestir o desventurado rei negro Cetewayo, como elles agora fizeram, de coronel de infanteria, obrigar os chefes dos Basutos a saber de cór os nomes da familia real ingleza, são talvez actos de feroz despotismo, mas não deterioram nenhuma primitiva originalidade de linha ou de idéa. Para Cetewayo, que andava nú, uma fardeta, mesmo de infantaria, não faz senão vestil-o; e é indifferente que dentro do craneo dos Basutos haja só formulas de invocação ao manipanço, ou tambem nomes de principes da casa d’Hanover.

Mas quando elles trabalham sobre antigas civilisações como a da India, onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma grande raça pôz toda a originalidade do seu genio — então a politica anglo-saxonia repete pouco mais ou menos o attentado sacrilego de quem desmantellasse um templo buddhico, bello como um sonho de Buddha, para lhe dar na sua reconstrução as linhas hediondas do Stock Exchange de Londres; ou ainda de quem se fôsse ao marmore divino da Venus de Milo, e tentasse, á força bruta de martello e cinzel, dar-lhe o feitio, as suissas e a sobrecasaca de lord Palmerston! A expansão do inglez para o Oriente, seu objectivo imperial, seria toleravel, mesmo aos nervos de um artista — se elle se contentasse em levar para lá os seus tecidos, as suas machinas, os seus telegraphos, os seus railways, deixando depois que essas raças usassem esse colossal material de civilisação em se desenvolverem no sentido do seu genio e do seu temperamento. Que por todos os modos se forneça á santa cidade de Hydrabad gazometros e illuminação — mas, por Deus! que se não mettam á força bicos de gaz dentro dos seus templos, se isso offende os seus ritos e repugna ao seu gosto! Que a India, por exemplo, seja coberta de caminhos de ferro, fornecidos pelos industriaes de Northumberland e pagos pelo indio — excellente! Mas ao menos que as aldêas onde elles passam, essas aldêas que os mesmos inglezes descrevem como pequenos paraizos de paz, de trabalhos simples, de costumes doces, de frugalidade, de frescura, de belleza moral, não sejam tornadas tão tristes como as tristes parochias de Yorkshire, introduzindo-se logo lá o policeman, o deposito de cerveja, a capella protestante de tijolo, o livreiro de Biblias, o vendedor de gin, a fumaraça de uma fabrica, a prostituição e a workhouse!...

Mas deixemos isto. É facil maldizer da Inglaterra. Basta abrir os livros dos seus grandes homens, desde Thackeray, o artista, que com um tão frio rancor lhe fez a satyra sangrenta, até Carlisle, o philosopho, que passou a existencia a fulminal-a com uma tumultuosa colera de propheta...

Da Inglaterra póde-se dizer que — ao contrario da generosa França — as suas virtudes só a ella aproveitam e os seus vicios contaminam o mundo.

É á Inglaterra que se deve o egoismo crescente que nos vae petrificando o coração — esse egoismo tão particularmente inglez, que faz com que em Hyde-Park, no seu centro de luxo, trezentas pessoas, em torno de um lago, vejam uma pobre criança afogar-se, sem que nenhuma se encommode a tirar o charuto da bocca para lhe estender uma taboa! É á Inglaterra que devemos esta crescente hypocrisia que invade o mundo, e que faz com que em Londres, nos cartazes que annunciam as peças de Sardou ou Dumas, se ajunte esta estupenda declaração: adaptada ás justas exigencias da moralidade ingleza; — emquanto que, na rua, por baixo d’esses mesmos cartazes, rola, sem cessar, a mais vil torrente que o mundo viu de bebados e de prostitutas!

Mas deixemos as maculas da Inglaterra: a lista é longa; — quero só alludir a um outro abominavel defeito que ella sempre teve, e que agora desenvolveu em proporções intoleraveis: — a sua espantosa filaucia, a sua ruidosa basofia, o seu tremendo ar mata-sete!

É sobretudo n’este momento, desde o começo da guerra do Egypto, que os que, como eu, amam a Inglaterra, soffrem de lhe vêr estes extravagantes modos de valentão de romance picaresco. Os telegrammas que os correspondentes dos jornaes enviam das operações da guerra, sobretudo os commentarios dos proprios jornaes, seriam lamentavelmente grotescos, se não fossem odiosamente impertinentes. Os francezes (que não são modestos) puzeram trinta mil allemães fóra de combate na batalha de Gravellote, e todavia não fizeram a decima parte do alarido, da gloriola, do espalhafato com que os inglezes celebravam a escaramuça de Ramleh, onde os egypcios perderam quarenta e tantos homens! Parece faltar-lhes o sentimento da proporção das cousas. Um correspondente do Daily News annunciava, ha dias, como um feito heroico, digno de ir á posteridade, o terem alguns soldados em marcha dado um pedaço de pão de munição a um arabe que morria de fome á beira de um caminho! Era espanto de encontrar dentro de peitos inglezes um resto de piedade humana? Não. Queria provar que nenhum exercito no mundo faz a guerra com uma tão profunda clemencia!

Ou celebrem o aspecto physico dos regimentos ou a afinação das bandas de musica, a pontaria dos artilheiros ou a fórma dos capacetes, os talentos do Estado Maior ou a excellencia da bolacha de munição, vem logo em lettras gordas, a phrase tola — o que ha de melhor no mundo!

Faz uma vedeta ingleza fogo sobre uma vedeta egypcia e depois recolhe á trincheira? Logo este facto é declarado tão nobre pelo heroismo como habil pela prudencia!

Os córos que se entoam em torno do general Wolseley, pertencem á pura farça.

Eu quero crêr que elle é um grande homem — ainda que por ora nada mais fez que debandar uma pobre horda de negros armados de flechas que vegetavam junto a não sei que rio d’Africa; mas que se póde pensar quando se lê, no World e em outros papeis, que elle é o maior general do seculo? Onde vive um certo Moltke? Quando existiu um chamado Napoleão?

O melhor, mais bem feito, mais importante jornal de Londres, a Pall Mall Gazette, envergonhado de tudo isto, explica, com a sua usual habilidade, que estas fanfarronadas não são destinadas á Europa, mas ao Egypto «para levantar o moral das tropas!» Têm pois esses regimentos em campanha nos areaes da Africa, diante d’um inimigo formidavel, vagares para ler as gazetas? Recebe cada soldado raso, com o seu rancho da manhã, um numero do Times? A respeitavel Pall Mall blaguêa. Para animar, recompensar as tropas, lá estão as proclamações dos generaes. Ahi, sim, a emphase deve correr em torrentes: e quando um desgraçado homem depois de ter marchado todo um dia, com fome, com sêde, com os pés em sangue na areia e um ceu de fogo nas costas, volta á noite ao acampamento, estendido n’uma maca com duas balas no corpo — não é muito que se lhe diga que elle é o primeiro soldado do mundo!

É também «para levantar o moral das tropas» que o Times e o Spectator, fallam, de mão na cinta, e suissa ao vento, de «impor á Europa a vontade da Inglaterra?»

Não; é mera fanfarronada.

E não é só nos jornaes. Entre-se n’um club, n’um restaurante, converse-se com um conhecido, entre duas chavenas de chá — e vem logo a mesma jactancia de roncador: «Vamos dar cabo de tudo. Temos dinheiro a rodo. Cá, ao pulso inglez, nada resiste... E se o mundo respinga, quebram-se-lhe as ventas!...»

A Inglaterra perdeu as suas boas maneiras.

É forte, de certo — mas falla da sua força com a brutalidade de um Hercules de feira que esbogalha os olhos e mostra os musculos; é rica, de certo — mas falla do seu dinheiro com a grosseria d’um ricaço que abarrota fazendo tinir as libras na algibeira...

Onde está a famosa self-possession da Inglaterra, a sua tranquilla dignidade? John Bull tornou-se Ferrabraz. Ora uma muito velha banalidade ensina-nos que não ha verdadeira força sem serenidade e que sem modestia não ha verdadeira grandeza.