V

Litteratura de Natal


Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, são esses lindos livros para creanças, que constituem a litteratura de Natal.

Não falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos editores francezes, em encadernações decorativas como fachadas de cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem lê e são offerecidos ás creanças, mas realmente servem para obsequiar os papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos; apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a aço, sob a fiscalização da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o resplandecente volume orna d’ahi por deante a jardineira da sala, ao lado do candieiro vistoso.

Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para creanças, que tem os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e genios — em nada inferior á nossa litteratura de homens sisudos. Aqui, apenas o bébé começa a soletrar, possue logo os seus livros especiaes: são obras adoraveis, que não contém mais de dez ou doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assumpto é uma historia, em seis ou sete phrases, e decerto menos complicada e dramatica que O Conde de Monte-Christo ou Nana; mas emfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe.

Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos Tres velhos sabios de Chester: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester!

Como estas ha milhares: a Cavallgada de João Gilpin é uma obra de genio.

Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos, proporciona-se-lhe outra litteratura. Os sabios, a barrica, os trambulhões, já o não interessariam; vêm então as historias de viagens, de caçadas, de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do triumpho, do esforço humano sobre a resistencia da natureza.

Tudo isto é contado n’uma linguagem simples, pura, clara — e provando sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da creança para o paiz do maravilhoso: — não ha n’estas litteraturas nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo que a creança, naturalmente, venha a rir-se d’esse lindo sobrenatural, e a consideral-o do genero boneco, como os seus proprios carneirinhos de algodão.

O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d’uma boneca honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha, n’uma guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a creança — mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas bayonetas torcidas ella todos os dias endireita com os dedos: e assim póde ficar depositado n’um espirito de creança um justo horror da guerra.

As lições moraes que se dão d’este modo são innumeraveis, e tanto mais fecundas quanto sahem da acção e da existencia dos sêres que ella melhor conhece — os seus bonecos.

Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos: popularisações de sciencias; descripções dramaticas do universo; estudos captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a historia; e, emfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no espirito tenro securas de misanthropia, nem uma falsa idealisação produza uma sentimentalidade morbida.

É no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas dos livreiros são então um paraizo. Não ha nada mais pittoresco, mais original, mais decorativo, que as encadernações inglezas; e as estampas, as côres leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras d’arte, de graça e d’humour.

Não sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se ouviu fallar. Apparece uma ou outra d’essas edições de luxo, de Pariz, de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A França possue tambem uma litteratura infantil tão rica e util como a de Inglaterra: mas essa Portugal não a importa: livros para completar a mobilia, sim; para educar o espirito, não.

A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para creanças; na Dinamarca, na Suecia, elles são uma gloria da litteratura e uma das riquezas do mercado.

Em Portugal, nada.

Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres creanças. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Garção, ou outro qualquer desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação pela leitura.

Isto é tanto mais atroz quanto a creança portuguesa é excessivamente viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes, só começamos a ser idiotas — quando chegamos á edade da razão. Em pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda, para citar só paises tão pequenos como o nosso, erguer-se-hia consideravelmente entre nós o nivel intellectual.

Em logar d’isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos, sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos a rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica (de logica, Deus piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice!

Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa. Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em escrever essas faceis historias: não é necessario o genio de Zola ou de Thackeray para inventar o caso dos tres velhos sabios de Chester. Ha entre nós artistas, de lapis facil e engraçado, que commentariam bem essas aventuras n’um desenho de simples contorno, sem sombras e sem relevo, lavado a côres transparentes... E quantos milhares de creanças se fariam felizes, com esses bonitos livros — que, para serem populares e se poderem despedaçar sem prejuizo, devem custar menos de um tostão!

Eu bem sei que esta ideia de compôr livros para creanças faria rir Lisboa inteira. Tambem, não é a Lisboa que eu a offereço. Lisboa não se occupa d’estes detalhes.

Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama em que se morre de paixão ao luar, o fadinho ao piano, o saboroso namoro de escada, a endeixa plangente, a bôa facadinha á meia noite, o discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza de cuia — emfim, tudo o que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os seus filhos intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade.

Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem alguns bons livros, bem engraçados, bem alegres, para os bébés — eu teria feito ao imperio um serviço colossal, que não sei como me poderia ser recompensado.

Uma bôa fazenda, de rendimento certo, n’uma provincia rica, com casa já mobilada e alguns cavallos na cavallariça, não seria talvez de mais. Se a gratidão do governo imperial quizesse juntar a isto, para alfinetes, um ou dois milhões em ouro, eu não os recusaria. E se me não quizessem dar nada, bastar-me-hia então que um só bébé se risse e fôsse alguns minutos feliz. Pensando bem — é esta a recompensa que prefiro.