Cartas de Inglaterra (Eça de Queirós)/XI
XI
A festa das creanças
A mais engraçada festa das creanças de que me lembro, foi em Inglaterra, na casa de campo dos meus amigos Birds, no paiz de Cornwall. Era uma mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-rei Arthur e dos cavaleiros da Tavola Redonda. E o que tornava interessante a ressurreição d’este mundo heroico e gentil, popularizado por Tennyson, é que nós estavamos alli justamente na região de Cornwall, onde viviam, entre saráus e batalhas, Arthur, a sua rainha Guinevra e os doze valentes da Tavola. A pouca distancia do parque dos Birds, n’uma collina coberta de carvalheiras, a tradição colloca os paços de Arthur e a maravilhosa e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas era o velho Usk. Nas suas frescas margens erguera-se outr’ora o mosteiro, onde o irmão de Percival, uma noite, da janella da sua cella, viu passar n’uma nuvem côr de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. E das varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao longe, na costa, e entre as rochas, as ruinas d’esse castello de Tintagil, que apparece em todas as balladas do rei Arthur, negro e triste junto ao mar de Cornwall.
A côrte começou a reunir-se cedo, á hora do lunch, no grande salão branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro personagem da lenda que chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino, um adoravel bébé, gordo e embezerrado com a corôa de hera, uns cabellos louros e umas enormes barbas propheticas enchendo-lhe a bochecha côr de rosa. Depois, seguidos das mamãs, vieram entrando todos os outros figurões da romantica chronica, cavalleiros de cinco annos armados e emplumados, mongesinhos nedios, bispos quasi de mama com os seus baculos nos braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda, e fadas mais lindas que as fadas. As tres rainhas mysticas do Walhalla chegaram por ultimo, gravesinhas, todas tres pela mão, cobertas de véos negros, escoltadas por um grande lacaio empoado.
Pouco a pouco o salão ficou animado como o velho Caerleon n’uma manhã de torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto bordado d’ouro, os cabellos frisados sahindo em anneis de sob a corôa carregada de pedras, passeava magestoso, entre os seus irmãos de armas. Uma senhora, encantada, quiz dar-lhe um beijo. Elle repeliu-a asperamente, como teria feito o casto Rei Arthur. Mais orgulhoso do que elle, só o bravo Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido de armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde o elmo até ás esporas d’ouro, não tirava a mão da espada. E o que parecia ensoberbece-lo mais era a sua faxa de gaze branca, passada sobre a couraça, e feita em rigida obediencia á epopéa, d’um véo da rainha Guinevra. Essa era a grande belleza do saráu, a rainha Guinevra, uma irlandezasinha com as duas tranças negras e os olhos verdes como os prados d’Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de setim azul, conservava-se no meio de um sofá, immovel, com um sorriso que lhe punha uma covinha no queixo, indifferente aos madrigaes, insensivel ás proezas dos cavalleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ella os bardos firam as harpas, ou por ella se batam os vassalos junto ao mar de Cornwall.
Um escudeiro annunciou o lunch, tocando uma buzina de prata, tal qual como no Caerleon. E pelo corredor, aos pares, toda a côrte seguiu á sala de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com uma graça solemne, a linda rainha Guinevra. Depois, mas não sem alguma confusão, em que necessariamente as mamãs tiveram de ser energicas com os cavalleiros, ficou completa a Tavola Redonda, ornada de baixellas e flôres. E nada faltava do que mandam as poeticas chronicas.
Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Genios, lá se achava o velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para elle comer com limpeza a sua sopa, tirára as barbas propheticas. Não havia um javali assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto roast-beef. Mas o rei Arthur levantava o seu copo d’agua, misturada de uma gota de Bordeus, com a nobreza com que o outro, ha tantos centos de annos e n’aquella mesma collina, erguia a taça de hydromel em dias de victoria. De resto a sala, com o seu tecto de carvalho lavrado, tinha o severo apparato d’outras éras e através da janella lá estavam, como nos versos da Morte d’Arthur, as ruinas do Castello de Tintagil, negro e triste junto do mar de Cornwall.
A Côrte mostrava tanto apetite como á volta de uma batida aos lobos nos bosques, que avisinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad, esse que possuia a força de mil, porque o seu coração era virgem, já por duas vezes reclamára pudding de batatas, batendo furiosamente com o garfo sobre o seu murrião de prata, posto ao lado da mesa entre os crystaes.
Fôra preciso, por causa da sua magnifica tunica de setim verde, atar um guardanapo ao pescoço do cavalleiro Bors, essa radiante flôr de bravura christã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incommodado com a sua armadura, permanecia manso e corado com o ar de estar pensando (como o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois, de repente e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando todo o molho nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavalleiro da Tavola.
Modred despropositou e arrepelou os cabellos d’ouro de Percival. A tia do heróe acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do Lago se estava tornando turbulento, foi arrancado da Tavola Redonda ignominiosamente, nos braços d’um escudeiro, aos berros.
Depois do lunch, a côrte de el-rei Arthur voltou ao saráu a regozijar-se com danças. Saráu delicioso! Havia dois monges extraordinarios, de bureis brancos, tão pequenos e tão tropegos que as senhoras tinham de os segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente dançar, mais joviaes que os cavalleiros, promptos a atirar-se sempre aos bracinhos das camponezas toucadas de flôres.
O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente com uma ligeira fada, chegada n’essa manhã da Bretanha, das florestas de Broceliande. Um bardo, com a corôa de folhas de carvalho enterrada até aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia tambem um principe do Mar do Norte, um castellão de Erin e o bravo cavalleiro Bors, que se tinham refugiado a um canto, por detraz d’um sophá, onde sentados no chão continuavam na sua divertida merenda com bolos, dando gritos, quando as senhoras queriam pôr cobro áquella gula tão impropria de paladinos christãos.
No corredor o pae Bird teve de suster um rechonchudo abbade, que arregaçava as vestes sacerdotaes e ia, furioso, sovar o intrigante cavalleiro Modred. E não foi possivel realizar a parte mais picante da lenda, fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo Lancelote (bem differente do outro) parecia de coração duro e sem gosto pelo sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e cahiu nos joelhos da mamã, com duas grossas lagrimas nas pestanas e a sua bella penna escarlate cahida no chão, como n’uma tarde de derrota.
Cedo os bébés começaram a estar cançados. Eu mesmo, no meio da festa, tive de levar ao collo o veneravel bispo de Blackburn com a sua mitra e com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azues fechavam-se de somno. Deitei-o no sophá, junto da mais pequenina das rainhas do Walhalla, que já alli dormia sob o véo negro, com os cabellos d’ouro soltos e o lyrio do Paraiso entre as mãosinhas cruzadas...
E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mystica rainha.