Seriam onze horas da manhã.
O Campos, segundo o costume, acabava de descer do almoço e, a pena atrás da orelha, o lenço por dentro do colarinho, dispunha-se a prosseguir no trabalho interrompido pouco antes. Entrou no seu escritório e foi sentar-se à secretária.
Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par.
Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e grande, quando foi interrompido por um rapaz, que da porta do escritório lhe perguntou se podia falar com o Sr. Luís Batista de Campos.
— Tenha bondade de entrar, disse este.
O rapaz aproximou-se das grades de cedro polido que o separavam do comerciante.
Era de vinte anos, tipo do Norte, franzino, amorenado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes se bem que alterados por um leve estrabismo.
Vestia casimira clara, tinha um alfinete de esmeralda na camisa, um brilhante na mão esquerda e uma grossa cadeia de ouro sobre o ventre. Os pés, coagidos em apertados sapatinhos de verniz, desapareciam-lhe casquilhamente nas amplas bainhas da calça.
— Que deseja o senhor? perguntou Campos, metendo de novo a pena atrás da orelha e pousando um pedaço de papel mata-borrão sobre o trabalho.
O moço avançou dois passos, com ar muito acanhado, o chapéu de pelo seguro por ambas as mãos, a bengala debaixo do braço.
— Desejo entregar esta carta, disse, cada vez mais atrapalhado com o seu chapéu e a sua bengala, sem conseguir tirar da algibeira um grosso maço de papéis que levava.
Não havia onde pôr o maldito chapéu, e a bengala tinha-lhe já caído no chão, quando Campos foi em seu socorro.
— Cheguei hoje do Maranhão, acrescentou o provinciano, sacando as cartas finalmente.
As últimas palavras do moço pareciam interessar deveras o negociante, porque este, logo que as ouviu, passou a considerá-lo da cabeça aos pés, e exclamou depois:
— Ora espere... O senhor é o Amâncio!
O outro sorriu, e, entregando-lhe a carta, pediu-lhe com um gesto que a lesse.
Não foi preciso romper o sobrescrito, porque vinha aberta.
— É de meu pai... disse Amâncio.
— Ah! é do velho Vasconcelos?... Como vai ele?
— Assim, assim... O que o atrapalha mais é o reumatismo. Agora está em uso da Salça-ecaroba, do Holanda.
— Coitado! lamentou Campos com um suspiro — Ele sofre há tanto tempo!...
E passou a ler a carta depois de dar uma cadeira a Amâncio, que já estava para dentro das grades.
— Pois, sim, senhor! disse ao terminar a leitura. — Está o meu amigo na Corte, e homem! Como corre o tempo!...
Amâncio tornou a sorrir.
— Parece que ainda foi outro dia que o vi, deste tamanho, a brincar no armazém de seu pai.
E mostrou com a mão aberta o tamanho de Amâncio naquela época.
— Foi há seis anos, observou o moço, limpando o suor que lhe corria abundante pelo rosto.
Fez-se uma pequena pausa e em seguida Campos falou do muito que devia ao falecido irmão e sócio do velho Vasconcelos; citou os obséquios que lhe merecera; disse que encontrara nele "um segundo pai" e terminou perguntando quais eram as intenções de Amâncio na Corte. — Se vinha estudar ou empregar-se.
— Estudar! acudiu o provinciano.
Queria ver se era possível matricular-se ainda esse ano na Escola de Medicina. Não negava que se havia demorado um pouquinho nos preparatórios... mas seria dele a culpa?... Só com umas sezões que apanhara na fazenda da avó, perdera três anos...
Campos escutava-o com atenção. Depois perguntou-lhe se já havia almoçado.
Amâncio disse que sim, por cerimônia.
— Venha então jantar conosco; precisamos conversar mais à vontade. Quero apresentá-lo à minha gente.
O rapaz concordou, mas ainda tinha que entregar várias cartas e várias encomendas que trouxera. Campos talvez conhecesse os destinatários.
Mostrou-lhe as cartas; eram quase todas de recomendação.
— O melhor é tomar um carro, aconselhou o negociante. — Olhe, vou dar-lhe um moço aí de casa, para o guiar.
E, pelo acústico, que havia a um canto do escritório, chamou um caixeiro.
Dali a pouco Amâncio saía, acompanhado por este, prometendo voltar para o jantar.
A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo o ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português.
Compunha-se do vasto armazém ao rés-do-chão, e mais dois andares; no primeiro dos quais estava o escritório e à noite aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com a mulher — D. Maria Hortênsia, e uma cunhada — D. Carlotinha.
A mesa era no andar de cima. Faziam-se duas: uma para o dono da casa, a família, o guarda-livros e hóspedes, se os havia, o que era frequente; e a outra só para os caixeiros, que subiam ao número de cinco ou seis.
Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva; não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa; o guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e só se determinava a isso tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente.
Campos não apertava a bolsa em questões de comida; queria mesa farta: quatro pratos ao almoço, café e leite à discrição; ao jantar seis, sopa e vinho. Os caixeiros falavam com orgulho dessa generosidade e faziam em geral boa ausência do patrão, que, entretanto, fora sempre de uma sobriedade rara: comia pouco, bebia ainda menos e não conhecia os vícios senão de nome.
Aos domingos, às vezes mesmo em dia de semana, aparecia para o jantar um ou outro estudante comprovinciano dos Campos ou algum freguês do interior, que estivesse de passagem na Corte e a quem lhe convinha agradar.
Luís Campos era homem ativo, caprichoso no serviço de que se encarregava e extremamente suscetível em pontos de honra; quer se tratasse de sua individualidade privada, quer de sua responsabilidade comercial.
Não descia nunca ao armazém, ou simplesmente ao escritório, sem estar bem limpo e preparado. Caprichava no asseio do corpo: as unhas, os cabelos e dentes mereciam-lhe bons desvelos e atenções.
Entre os companheiros, passava por homem de vistas largas e espírito adiantado; nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier, ao Flammarion e ao Júlio Verne; outras vezes, poucas, atirava-se à literatura; mas os verdadeiros mestres aborreciam-no e entreturbavam-no com os rigorismos da forma.
— É um bom tipo! diziam os estudantes à volta do jantar, e no seguinte domingo lá estavam de novo. O "bom tipo" tratava-os muito bem, levava-os com a família para a sala, oferecia-lhes charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe restituíssem os livros que lhes emprestava.
Quanto à sua vida comercial, pouco se tem a dizer. Até aos dezoito anos, Campos estivera no Maranhão, para onde fora em pequeno de sua província natal, o Ceará. No Maranhão fez os primeiros estudos e deu os primeiros passos no comércio, pela mão de um velho negociante, amigo de seu pai.
Esse velho foi o seu protetor e seu guia; só com a morte dele se passou Campos para o Rio de Janeiro, onde, graças ainda a certas relações da família de seu benfeitor, conseguiu arranjar-se logo como ajudante de guarda-livros, em uma casa de comissões. Desta saiu para outra, melhorando sempre de fortuna, até que afinal o admitiram, como gerente, no armazém de uns tais Garcia, Costa & Cia.
O tal Garcia morreu, Campos passou a ser interessado na casa; morreu depois o Costa, e Campos chamou um sócio de fora, um capitalista, e ficou sendo a principal figura da firma.
Por esse tempo encontrou D. Maria Hortênsia, menina de boa família, sofrivelmente ajuizada e com dote. Pouco levou a pedi-la e a casar-se.
Nunca se arrependera de semelhante passo. Hortênsia saíra uma excelente dona de casa, muito arranjadinha, muito amiga de poupar, muito presa aos interesses de seu marido, e limpa, "limpa, que fazia gosto"!
O segundo andar vivia, pois, num brinco; nem um escarro seco no chão. Os móveis luziam, como se tivessem chegado na véspera da casa do marceneiro; as roupas da cama eram de uma brancura fresca e cheirosa; não havia teias de aranha nos tetos ou nos candeeiros e os globos de vidro não apresentavam sequer a nódoa de uma mosca.
E Campos sentiu-se bem no meio dessa ordem, desse método. Procurava todos os dias enriquecer os trens de sua casa, já comprando umas jardineiras, que lhe chamaram a atenção em tal rua; já trazendo uma estatueta, um quadro, uma nova máquina de fazer sorvetes, ou um sistema aperfeiçoado para esta ou aquela utilidade doméstica.
Gostava que em sua casa houvesse um pouco de tudo. Não aparecia por aí qualquer novidade, qualquer novo aparelho de bater ovos, gelar vinhos, regar plantas, que Campos não fosse um dos primeiros a experimentar.
A mulher, às vezes, já se ria quando ele entrava da rua abraçado a um embrulho.
— Que foi que se inventou?... perguntava com uma pontinha de mofa.
O marido não fazia esperar a justificação do seu novo aparelho, e, tal interesse punha em jogo, que parecia tratar de uma obra própria, de cujo sucesso dependesse a sua felicidade. E, logo que encontrasse algum amigo, não deixava de falar nisso; gabava-se da compra que fizera, encarecia a utilidade do objeto e aconselhava a todos que comprassem um igual.
Campos, depois do casamento, principiou a prosperar de um modo assombroso; dentro de três anos era o que vimos: — rico, muito acreditado e seguro na praça.
E, contudo, não tinha mais do que trinta e seis anos de idade.
— É um felizardo! resmungavam os colegas com o olhar fito. — É um felizardo! Quem o viu, como eu, há tão pouco tempo!...
— Mas sempre teve boa cabeça!...
— São fortunas, homem! Outros há por aí que fazem o dobro e não conseguem a metade!
— Não! ele merece, coitado! É muito bom moço, muito expedito e trabalhador!
— Homem! todos nós somos bons!... O que lhe afianço é que nunca em minha vida consegui pôr de parte um bocado de dinheiro!
E o caso era que Campos, ou devido à fortuna ou ao bom tino para os negócios, prosperava sempre.
Às quatro horas da tarde apareceu de novo Amâncio.
Vinha esbaforido. O dia estava horrível de calor. Campos foi recebê-lo com muito agrado.
— Então? disse-lhe. Está livre das cartas?
— Qual! respondeu o moço — tenho ainda cinco para entregar. Uma estafa! No Maranhão nunca senti tanto calor!...
— Falta de hábito! observou o outro. Daqui a dias verá que isto é muito mais fresco!
— Estou desta forma!... queixava-se Amâncio, quase sem fôlego, a mostrar o colarinho desfeito e os punhos encardidos.
— Suba, volveu Campos, empurrando-o brandamente. — Tome qualquer coisa. Vá entrando sem-cerimônia.
E, já na escada do segundo andar, perguntou de súbito:
— É verdade! e a sua bagagem?...
— Está tudo no Coroa de Ouro. Hospedei-me lá.
— Bem.
E subiram.
Amâncio deixou-se ficar na sala de visitas; o outro correu a prevenir a mulher.
— Neném! disse ele. Sabes? hoje temos ao jantar um moço que chegou do Norte, um estudante. É preciso oferecer-lhe a casa.
Hortênsia respondeu com um gesto de má vontade.
— Não! replicou o negociante. É uma questão de gratidão!... Devo muitos obséquios à família deste rapaz! Lembras-te daquele velho, de que te falei, aquele que foi quem me deu a mão lá no Norte?... Pois este é o sobrinho, é filho do Vasconcelos. Não nos ficaria bem recebê-lo assim, sem mais nem menos!...
— Mas, Lulu, isto de meter estudantes em casa é o diabo! Dizem que é uma gente tão esbodegada!
— Ora, coitado! ele até me parece meio tolo! Além disso, não seria o primeiro hóspede!...
— Queres agora comparar um estudante com aqueles tipos de Minas que se hospedam aqui!...
— Mas se estou dizendo que o rapaz até parece tolo...
— Manhas, homem! Todos eles parecem muito inocentes, e depois... Enfim, tu farás o que entenderes!... Só te previno de que esta gente é muito reparadeira!
— Não há de ser tanto assim!...
E Campos voltou à sala.
Amâncio soprava, estendido em uma cadeira de balanço a abanar-se com o lenço.
— Muito calor, hein? perguntou Campos, entrando.
— Está horroroso, disse aquele.
E resfolegou-se com mais força.
— Venha antes para este lado. Aqui para a sala de jantar é mais fresco. Venha! Eu vou dar-lhe um paletó de brim.
Amâncio esquivava-se, fazendo cerimônia; mas o outro, com o segredo da hospitalidade que em geral possui o cearense, obrigou-o a entrar para um quarto e mudar de roupa.
O jantar, como sempre, correu frio e contrafeito. Amâncio não tinha apetite, porque pouco antes comera mães-bentas em um café; Campos, porém, desfazia-se em obséquios e empregava todos os meios de lhe ser agradável.
— Vá, mais uma fatia de pudim, insistia ele a tentá-lo.
— Não, não é possível, respondia o hóspede, limpando sempre o rosto com o lenço.
À sobremesa falou-se no velho Vasconcelos e mais no irmão. O negociante lembrou ainda as obrigações que devia à família de Amâncio, citou pormenores de sua vida no Maranhão; elogiou muito a província; disse que havia lá mais sociabilidade que no Rio de Janeiro, e acabou brindando a memória de seu benfeitor, de seu segundo pai.
Maria Hortênsia parecia tomar parte no reconhecimento do marido e, sempre que se dirigia ao estudante, tinha nos lábios um sorriso de amabilidade.
Carlotinha não dera uma palavra durante o jantar. Comia vergada sobre o seu prato e só ergueu a cabeça na ocasião de deixar a mesa.
Amâncio, todavia, não a perdera de vista.
Às sete horas da tarde, quando se despediu, estava já combinado que no dia seguinte ele voltaria com as malas, para hospedar-se em casa do Campos.
— É melhor... disse este — é muito melhor! Ali o senhor não pode estar bem; sempre é vida de hotel! venha para cá; faça de conta que minha família é a sua!
Amâncio prometeu, e saiu, reconsiderando pelo caminho todas as impressões desse dia.
Mais tarde, deitado na cama do Coroa de Ouro, com o corpo moído, o espírito saturado de sensações, procurava recapitular o que tinha a fazer no dia seguinte; e, bocejando, via, de olhos fechados, o vulto amoroso de Hortênsia a sorrir para ele, estendendo-lhe no ar os belos braços, palpitantes e carnudos.