O tísico do n.º 7 há dias esperava o seu momento de morrer, estendido na cama, os olhos cravados no ar, a boca muito aberta, porque já lhe ia faltando o fôlego.

Não tossia; apenas, de quando em quando, o esforço convulsivo para arrevessar os pulmões desfeitos sacudia-lhe todo o corpo e arrancava-lhe da garganta uma ronqueira lúgubre, que lembrava o arrulhar ominoso dos pombos.

Contavam que expirasse a todo o instante. Amâncio cedera o seu moleque para lhe fazer companhia, e dos braços de casa era o único que lhe aparecia lá uma vez por outra.

Não é que espetáculo daquele aniquilamento lhe tocasse o coração, mas porque lhe mordiscava a curiosidade com esse frívolo interesse de pavor, que nos espíritos românticos provocam os loucos e os defuntos.

Uma noite, seriam duas horas da madrugada, o tísico gemeu com tal insistência que acordou o estudante. Amâncio levantou-se, tomou uma vela e foi até ao quarto dele.

Ficou impressionado. O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia. A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curva, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentia-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-se-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvasamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas da dentadura.

Não podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético, virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementícias, a porejar um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele, cor de osso velho, um brilho repugnante.

Faltava-lhe o ar e, todavia, pela janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite entravam impregnados da música de um baile distante, e punham no triste abandono daquele quarto uma melancolia dura, um áspero sentimento de egoísmo; alguma coisa da indiferença dos que vivem pelos que se vão meter silenciosamente dentro da terra.

O médico recomendara que lhe dessem todo o ar possível e lhe fizessem beber de espaço a espaço uma porção do calmante que receitara. Uma lamparina de azeite fazia tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente. Havia um cheiro enjoativo de moléstia e desasseio.

Sabino dormia a sono solto no corredor. Amâncio acordou-o com o pé.

— É dessa forma que velas pelo homem? perguntou.

O moleque ergueu-se estremunhado e deu alguns passos, esbarrando pelas paredes, sem cair em si.

— Vamos! Desperta por uma vez e dá-lhe o remédio! Ele parece que tem sede!

O tísico, ao ouvir a voz de Amâncio, principiou a agitar os braços, como se o chamasse, grugulejando sons roucos e ininteligíveis.

O estudante não quis atender, mas o doente insistia com tamanho desespero, que ele, afinal, vencendo a repugnância, se aproximou, a conchear a mão contra a língua trêmula da vela.

Apesar de seus fracos estudos de medicina, fazia-lhe mal aos nervos aquela figura descarnada, que se exinania na impudência aterradora da morte; fazia-lhe mal aqueles membros despojados em vida, aquele esqueleto animado, que, na sua distanásia, parecia convidá-lo para um passeio ao cemitério.

E o tísico rouquejava sempre, agitando os braços.

O moleque, ao lado, derramava-lhe colheradas de remédio na boca; mas o líquido voltava em fios pelo canto dos lábios do moribundo e escorria-lhe ao comprido do pescoço e pela aridez escalavrada do peito.

Amâncio tomou-lhe um dos pulsos. O contato pegajoso e úmido fez-lhe retirar-lhe logo a mão com um arrepio.

— Qual, nhô, ele está assim a um ror de dias! Leva nisto e não decide!...

— Não! Creio que agora está morrendo...

E olhou para o doente.

Este espichou a cabeça e respondeu que não, com um movimento demorado.

— Ele ouviu?... perguntou Amâncio, impressionado com a intervenção inesperada do moribundo.

A caveira tornou a agitar-se nos travesseiros para dizer que sim.

— Olha!... fez o estudante arregalando os olhos. E aproximou-se da porta, recomendando ao Sabino que se não descuidasse da pobre criatura; que se não pusesse a dormir como ainda há pouco!

O tísico, que havia serenado alguma coisa com a presença do rapaz, principiou de novo a espolinhar-se, rilhando os dentes e agitando os braços e as pernas.

Amâncio, porém, não atendeu desta vez e saiu. O tísico rosnou com mais ânsia, procurando lançar-se fora do leito, numa aflição crescente.

— Fica quieto! gritou Sabino, obrigando-o a deitar-se.



Logo que o estudante se afastou com a vela, o quarto recaiu na sua dúbia claridade modorrenta. Os ventos frios da madrugada continuavam a soprar. O moleque foi até a janela, olhou a rua em silêncio, acendeu um cigarro e, quando viu que o seu homem parecia serenado, tratou de reassumir o sono.

O senhor é que não podia sossegar, com a idéia naquele pobre rapaz, que ali morria aos poucos, sem família, nem carinhos de espécie alguma; sem ter ao menos quem o tratasse, nem dispor de um amigo que se compadecesse dele.

— Infeliz criatura! pensava. — Além do mais, longe da Pátria, longe de tudo que lhe podia ser caro!

E, sacudido de estranhas condolências, imaginava o pobre desterrado saindo de sua aldeia em Portugal, atravessando os mares, atirado no convés de um navio, afinal no Brasil, neste país-sonho, a trabalhar dia a dia durante uma mocidade, e economizar, e sofrer privações; depois — falir, perder tudo de repente, achar-se em plena miséria e com a ladra da tísica a comer-lhe os pulmões! Oh! cortava a alma!

Não se podia esquecer do desespero com que o desgraçado o chamava, como se lhe quisesse pedir alguma coisa, fazer alguma revelação: — Talvez, quem sabe? até o tomasse, no seu delírio, por algum amigo; porque Amâncio se não enganava, chegara a distinguir-lhe balbuciar o nome de alguém — Não podia ser outra coisa, o mísero chamava por um amigo!

— Mas, também, que idéia, a sua, de andar por aquelas horas a visitar moribundos! Que diabo tinha ele, no fim de contas, com o tal tísico?... Ora essa!

O vulto esquelético não lhe saía, porém, de defronte dos olhos, com a sua ronqueira lúgubre, sempre a lhe estender os longos braços sem músculos e a rolar nas órbitas, convulsivamente, aqueles dois bugalhos luminosos.

Fechou a porta do quarto, despiu o sobretudo que havia enfiado, apagou a vela e assentou-se à mesinha diante de um livro.

O tísico gemia.

— Que maçada! resmungou Amâncio, sem se safar da impressão que trouxera do quarto "daquele diabo"! E cansava os olhos contra as páginas do livro, lendo sem compreender.

Vinham-lhe bocejos repetidos, ardiam-lhe os olhos. — Agora talvez dormisse. O importuno parecia sossegado, pelo menos não se lhe ouvia gemer.

Amâncio voltou à cama, sem ânimo de apagar a vela.

Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o despertaram em sobressalto e uma pancada em cheio na porta fê-lo erguer-se de pulo e precipitar-se para ela.

Sabino, o tísico, vieram-lhe à memória. Ouriçaram-se-lhe os cabelos, enlixou-se-lhe a pele, e o coração bateu-lhe com mais força. — Que teria sucedido? A mão tremia-lhe ao forçar o trinco.

A porta afinal cedeu, e Amâncio sentiu cair desamparadamente no chão o corpo comprido e nu do tísico.

Estava horrível. Queria erguer-se, e em vão agitava as pernas e os braços. Amâncio tentou ajudá-lo, gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tísico pareciam quebrar-se-lhe nas mãos, que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas de umidade desenhavam-lhe já o feitio do corpo.

O estudante desejava chamar por alguém. — Sabino dormia com certeza! — Peste! Fez um movimento para sair; mas o esqueleto agarrou-lhe violentamente os pulsos e pediu-lhe com uns vagidos dolorosos que ficasse.

De seus olhos corriam duas lágrimas compridas.

Depois de um esforço terrível, conseguiu falar. Eram sons apenas murmurados, fracos, quase imperceptíveis.

Amâncio tinha razão: o desgraçado, no delírio de sua fraqueza, o tomara por algum bom amigo. Suas palavras vinham-lhe aos lábios roxos impregnadas de confiança e de amor. Falava de coisas estranhas ao outro; perguntava-lhe por indivíduos desconhecidos para Amâncio e reprovava-lhe a culpa de não ter vindo mais cedo.

Depois referiu-se dolentemente a sua terra; tratou da infância, rindo, com os olhos cheios d'água. Pediu que Amâncio, logo que lá voltasse, fosse à procura do senhor padre, e encomendasse-lhe três missas.

Em seguida, fez um esforço para chegar ao ouvido do rapaz e começou, em ar de mistério, a ensinar-lhe um caminho longo, muito longo... Ensinava-lhe ruas, as voltas que era necessário fazer para chegar lá; afinal, dava-se com uma choupana. Uma velhinha entrevada fazia meia a um canto da casa. Amâncio que se aproximasse dela e lhe dissesse em segredo que o seu João, o seu querido filho...

Uma agonia violenta tolheu-lhe a fala. Ele ainda tentou dizer alguma coisa, mas o sangue purulento já lhe golfejava da boca e caía-lhe em jorro pelo corpo. Estirou-se todo, dobrou a cabeça para trás e, depois de entesar num estremecimento os membros rechupados, foi pouco a pouco cerrando os lábios e empenando o corpo com um gemido longo e sentidíssimo.

Lá fora, a música duvidosa continuava, ao longe, entristecendo.

Amâncio teve um assomo de cólera; seu temperamento nervoso e egoísta, revolucionava-se com o choque daquele incidente desagradável, que lhe dizia respeito e vinha-lhe todavia roubar despoticamente o sossego.

Logo que o tísico expirou, correu a acordar Sabino com um murro. O moleque levantou-se, como da primeira vez, e correu à cama do tísico. A lamparina bruxuleava sobre o velador, projetando em volta, pelas paredes, sombras que se iam dobrar no teto.

Sabino abismou-se ao dar com o leito vazio, olhou em torno, muito pasmo, chegou a levantar a colcha e a espiar para baixo da cama; depois correu à janela e interrogou a solidão fria da rua.

— Ué! Disse.

— És uma peste! gritou-lhe Amâncio. — Por tua causa o tísico foi morrer no meu quarto! Ande! Vá chamar Dr. Coqueiro ou alguém que trate do corpo! Aqui em cima, creio que não há ninguém, nem sequer o Paula Mendes.

O rabequista, com efeito, havia ficado essa noite em companhia da mulher em Niterói.

A notícia levantou embaixo um rebuliço. À exceção de Campelo e do guarda-livros, ninguém mais se conservou na cama.

Mme. Brizard arrepela-se, praguejando contra o maldito caiporismo que a perseguia ultimamente. — Até já lhe vinham os tísicos morrer em casa! Era demais!

Causou grande impressão a narrativa de Amâncio sobre os últimos momentos do homem. Dr. Tavares desfez-se em altas considerações a esse respeito. Coqueiro proibiu à irmã que subisse ao segundo andar, enquanto o cadáver não estivesse convenientemente amortalhado e deposto no sofá que às pressas se carregou para cima. Por toda a casa distribuíram-se fogareiros de incenso e alfazema. Sabino fora, de um pulo, buscar à botica uma garrafa de labarraque, e o copeiro saíra para lançar à primeira praia o colchão, os lençóis e os travesseiros que serviram ao defunto.

Descarregou-se o quarto. A francesa quis abrir um velho baú de folha, que jazia a um canto e que era o único objeto deixado pelo morto; mas Dr. Tavares opôs-se-lhe energicamente, citando artigos do código criminal e dizendo em tom de autoridade que o falecido era um súdito português e, por conseguinte, só ao cônsul de sua nação competia fazer-lhe o espólio dos bens!

— E o que nos ficou ele a dever?! E mais a despesa dos lençóis, do colchão e do diabo?! perguntou Mme. Brizard.

— Recebe-se do consulado português ou não se recebe de pessoa alguma, apressou-se a explicar Coqueiro, que já sabia perfeitamente não haver dentro do tal baú coisa alguma de valor.

O corpo saiu no dia seguinte, em um carro da misericórdia. E Amâncio declarou positivamente que não estava disposto a ficar na casa de pensão nem mais um dia.

— Pois então vamos todos para um arrabalde! — deliberou Mme. Brizard, em consequência dos repetidos conchavos que fizera com o marido.

Diabo era o estado de Nini, a pobrezita achava-se agora completamente desarranjada. Comia encostando a boca no prato, como um bicho; não trocava palavra com pessoa alguma e nem mais podia ficar em liberdade, porque de vez em quando lhe acometiam frenesis, que lhe davam para morder os outros e espatifar as roupas até ficar nua.

O médico entendia, porém, que com um bom regime hidroterápico, ela ainda podia restabelecer-se. Citou exemplos animadores, "bonitos casos", disse os belos resultados que ultimamente se obtinham por meio das duchas de água fria no tratamento das enfermidades nervosas, e terminou declarando que, só por esse meio, havia esperança de uma cura radical.

E o doutor, logo que esteve a sós com Amâncio, confidenciou-lhe, rindo:

— Já toquei à velha sobre aquilo que falamos; creio que desta vez fica o senhor livre da histérica!

Venceram-se, com efeito, os escrúpulos de Mme. Brizard e Nini foi para a Casa de Saúde do Dr. Eiras. A mãe teria notícias dela todos os dias e havia de lhe aparecer em pessoa duas vezes por semana.

— Aquela rapariga era o tormento de sua vida! Antes Deus a tivesse chamado para si! Agora, o que não seria necessário gastar com a tal casa de saúde?... talvez uns vinte mil-réis diários, se não fosse mais! Onde iria tudo aquilo parar? Era caiporismo, definitivamente!

Como desejavam, descobriu-se uma casa em Santa Teresa. Dr. Tavares e o guarda-livros acompanhariam a família; Campelo, o esquisitão, é o que não estava pela mudança. Logo que lhe falaram nisso, pediu secamente a nota de suas despesas, pagou-a, e retirou-se muito calmo, assoviando, de mão no bolso, cabeça erguida, na mesma fleuma inalterável com que costumava sair todas as manhãs para o trabalho.

Todo ele ia como a dizer no seu silêncio indiferente e egoísta: "A mim tanto se me dá seis como meia dúzia... morar com Pedro ou morar com Paulo, tudo para mim é a mesma coisa, desde que, em troca do — meu dinheiro — me apresentem um quarto limpo e a comida a horas certas. Se dez anos continuasse aqui Mme. Brizard, dez anos ficaria eu na Rua do Resende; mas, uma vez que se muda para Santa Teresa — adeus! vou bater à outra freguesia... o que por aí não faltam são casas de pensão."

Paula Mendes, ao entrar pouco depois, recebeu um cheio a notícia de que a família Coqueiro ia deixar a casa e que, por conseguinte, era preciso que ele saldasse as suas contas.

Mas o rabequista não tinha dinheiro na ocasião. — Logo que o tivesse havia de pagar integralmente.

Os locandeiros não estavam por isso, já lhes bastavam os calos do gentleman e do Melinho! E, depois de uma troca agitada de palavras, Mendes propôs deixar o piano, ficando-lhe o direito de resgatá-lo mais tarde com a devida importância.

Mme. Brizard queria dinheiro e não instrumentos de música! O Sr. Paula Mendes que vendesse o piano e liquidasse depois as suas contas!

Assim foi. O rabequista saiu, e, quando à tarde voltou à casa de pensão, trazia consigo um homenzinho de barbas compridas, que fechou o negócio por quatrocentos mil-réis. Mendes pagou o que devia, fez tristemente as suas malas, e afinal se retirou de cabeça baixa e mãos cruzadas para trás.

César, que o fora espreitar no corredor, voltou à varanda, dizendo espantado que ele chorava ao descer as escadas.

— Deixa-o lá, menino! resmungou a locandeira, e tocou a sineta, chamando para a mesa.

O jantar já não tinha o caráter de uma refeição de hotel, em mesa-redonda. Agora compareciam apenas cinco pessoas: Amâncio, Amelinha, Mme. Brizard, Coqueiro, Cezar e Dr. Tavares. O guarda-livros, esse continuava a não comer em casa.

Mme. Brizard suspirava à vista dos lugares vazios. — Oh! Que aperto de coração lhe fazia aquilo! Não podia resistir a tanta contrariedade ao mesmo tempo!...

Pelo correr do jantar, falou a respeito de Nini, queixou-se de saudades. Já à sobremesa, recrudesceram-lhe as ternuras maternais, vieram-lhe nostalgias, uma lágrima saltou-lhe do olho esquerdo. Chamou César para junto de si, abraçou-o e beijou-o repetidas vezes e ficou a passar-lhe a mão pela cabeça. Um silencioso constrangimento se apoderou das pessoas presentes; depois, ainda com a voz quebrada de comoção, ela pediu ao Coqueiro que se não descuidasse de cobrar o que Lambertosa e Melinho ficaram a dever. — Agora precisavam muito e muito de dinheiro!...

Mudaram-se no dia seguinte. Amâncio ia muito incomodado, amanhecera pior, quase que não podia mexer com as pernas; todos lhe profetizavam, entretanto, rápidas melhoras em Santa Teresa. O cômodo que lhe destinaram era da casa o mais espaçoso e arejado.

Amelinha não o desemparava, já não escondia até os seus carinhos, chegava-se abertamente para o rapaz, como se fora casada com ele. Às vezes dizia-lhe segredos na presença do irmão ou da francesa; prestava-lhe pequeninos serviços amorosos: levantar-lhe, por exemplo, a gola do fraque, se fazia frio; abotoar-lhe o colarinho, se estava desabotoado; atar-lhe a gravata, se o laço se desmanchava; chegar-lhe para junto a escarradeira se Amâncio queria fumar.

Em Santa Teresa esses desvelos multiplicaram-se. Aí já era a menina quem lhe metia os botões na camisa e as fivelas no colete, quem lhe escovava a roupa e o chapéu, quem lhe punha o perfume no lenço e lhe dava corda no relógio, e, quando fazia bom tempo e o rapaz tentava um passeio pelo morro, era ela quem corria a lhe trazer a bengala ou o chapéu de sol, perguntando muito solícita se ele não se esquecera dos charutos e dos fósforos, se já tinha lenço, se levava dinheiro.

Mas, às vezes, resignava, quase que ralhava com o estudante. Fazia-lhe censuras, tomava-lhe contas de umas muitas coisas: Se Amâncio passara por tal rua, se estivera durante a ausência a passear sempre ou se encontrara alguém porventura em alguma parte; quando lhe sentia cheiro de álcool queria saber o que o rapaz bebera.

Amélia, enfim, se derramava por todo ele, sem Amâncio dar por isso; invadia-o sutilmente, como um bicho que entra na carne.

A nova residência punha-os muito mais juntos, muito mais unidos do que a da rua do Resende. Os quartos eram pequenos, chegados uns dos outros; havia um sótão com escadaria para a sala de jantar. Amâncio morava aí, sozinho.

Tinha de seu uma alcova e um pequeno gabinete de trabalho; janelas para o nascente e para o ocaso, despejando sobre o jardim.

Embaixo, então, era a sala de visitas, a de jantar e mais quatro cômodos, sem meter os quartos da criadagem, a cozinha, a despensa e o banheiro. Num daqueles cômodos ficou João Coqueiro com a mulher; no outro Amelinha; no outro o guarda-livros, e Dr. Tavares no último.

A respeito da mobília, só se carregou da Rua do Resende a que era de todo indispensável. Não se vendeu sequer um objeto; o casarão renderia muito mais com os trastes e, além disso. Mme. Brizard contava, mais dia, menos dia, reabilitar a sua antiga e afamada casa de pensão. — Porque, dizia ela — era impossível que as coisas não voltassem ao estado primitivo!...

Coqueiro é que parecia, como nunca, satisfeito de sua vida. Cuidava da nova casa com muito interesse; falava em melhoramentos e aconselhava a Amâncio a que comprasse uma mobiliazinha catita para ver como "ficava então naquele sótão melhor que um príncipe no seu castelo".

A casa, de fato, convidava às fantasias do gosto, porque era perfeitamente nova e bem-feita; o papel das paredes estava imaculado, o chão limpo e os tetos virgens ainda de moscaria.

Amâncio experimentou rápidas melhoras; quis logo descer à cidade, mas Coqueiro não lhe permitiu ir só.

Aproveitaram o passeio para comprar a mobília. O provinciano recebera nesse mês dinheiro do Norte e retirara mais algum da casa de Campos; João Coqueiro levou-o a uma loja de trastes e escolheu ele próprio o que podia convir ao outro; isto é, uma cômoda, um lavatório, uma boa cama de casados, uma secretária, duas estantes, um velador e seis cadeiras; tudo de mogno e trabalhado a gosto moderno.

Estes arranjos pediam outras coisas; escolheram-se também dois quadros para o intervalo das portas, um belo espelho de parede, um relógio de pêndulo, tapetes, capachos e escarradeiras.



Coqueiro, muito empenhado na condução dos trastes, havia-se afastado alguns passos de Amâncio, quando este sentiu baterem-lhe no ombro.

Era Paiva Rocha.

— Oh! exclamou, satisfeito com o encontro. — Como vais tu? Há quanto tempo não nos vemos!... Que é feito de ti?

— Ai, filho, apoquentado! respondeu Paiva. Ultimamente tem sido uma enfiada de coisas más!... Há dois meses que não recebo dinheiro do correspondente; tinha aí um lugar de revisor numa folha e os ladrões passaram-me a perna em mais de duzentos mil-réis; além de que, a besta do diretor lá da escola lembrou-se agora de exigir uma infinidade de maçadas e obrigar-nos a despesas impossíveis! O diabo!

E, mudando de tom, perguntou como ia Amâncio; onde se metera, que ninguém o via?

O outro prestou contas de sua vida, expôs os pormenores de sua moléstia, falou nos incômodos que dera à família de Coqueiro, principalmente D. Amélia, que, por sinal, era uma excelente menina.

— Maganão!... disse o comprovinciano, esbarrando-lhe intencionalmente no braço.

Amâncio repeliu com febre aquela insinuação. O colega fazia uma tremenda injustiça, tanto a ele, Amâncio, como à pobre rapariga!

— Ora, filho! Queres tu agora dizer a mim o que é a gente do Coqueiro!...

Amâncio abriu grandes olhos.

— Morde aqui! acrescentou o outro, apresentando-lhe o dedo.

E em troca de um gesto negativo do amigo:

— Não queres falar por ora, e fazes tu muito bem! Mas é impossível que a tua ingenuidade chegue ao ponto de tomares a sério a irmã de Coqueiro — a Amélia dos camarões!...

— Juro-te que, até aqui, só a tenho tratado com todo o respeito!

O outro soltou uma risada.

— É fato! insistiu Amâncio, aborrecido já com aquela troça do companheiro, mas ao mesmo tempo feliz por imaginar que as suas esperanças sobre a rapariga eram perfeitamente justificáveis.

— Pois, se é fato, acredita que tens representado um papel de tolo! Fazem-te a barba, filho!

Amâncio, então, para provar a pureza de sua conduta, pintou o estado em que se achara ultimamente — entrevecido de reumatismo, sem préstimo para nada. E contou o que sofrera com as bexigas.

— Ora, dize-me cá... volveu o outro em tom de segredo. — Coqueiro já te não tem dado algumas facadinhas... Confessa...

Amâncio, nem só confessou, como disse até o dinheiro que por várias vezes emprestara ao senhorio.

— Hein?! bradou Paiva, fazendo-se muito fino. — Queres mais caro?... E ainda tens escrúpulos, criança! Pois olha que te não fazem nenhum favor — tu pagas, filho, e pagas bem!

E lembrou que não seria mau tomarem alguma coisa num botequim próximo.

O outro declarou que estava ali à espera de Coqueiro.

— Deixa lá o Coqueiro, homem! Tens medo de ir só para casa?...

— Mas é que não sei se me fará mal beber alguma coisa. Ainda estou em uso de remédios.

— Não sejas idiota! exclamou Paiva, puxando-o pelo braço.

Amâncio deixou-se levar, não tanto pelo prazer da companhia, como pela circunstância de se livrar de Coqueiro, o que lhe dava esperanças de ver Lúcia ainda essa tarde.

No café, defronte dos copos, a conversa voltou de novo à gente de Mme. Brizard.

— Gentinha! qualificou Paiva, atirando a palavra com o desprezo de quem lança fora o sobejo de um copo.

E, depois, entortando os lábios, numa obstinação torpe:

— A questão está no pagamento!

Amâncio riu. Sentia-se feliz; aquele dia de liberdade, depois de tamanho recolhimento, os cálices de xerez, as palavras degotadas de Rocha; tudo isso lhe picava o espírito com uma pontinha de alegria devassa. Seus gostos, suas tendências luxuriosas, volviam-lhe em revoada, como pássaro de arribação. Ficou expansivo, disposto aos desabafamentos da vaidade. Em breve, contava tudo o que se passara com ele na casa de Mme. Brizard, descrevia as maneiras de Amelinha com sua pessoa, os pequenos cuidados amorosos, as pequeninas frases significativas; narrou minuciosamente as cenas com Lúcia e disse que, ao sair do café, iria visitá-la à Tijuca.

— Está claro! trejeitou o outro, cuspilhando a areia branca do chão de pedra e batendo com a ponta da bengala sobre os pés cruzados. — Eu, no teu caso, já teria desforrado melhor os cobres!

— Achas então que eu devo...

— Ora, filho, é o que se leva deste mundo! A respeito de virtudes temos conversado! Eu cá só acredito numa castidade — a da velhice!... tirando daí...

E concluiu a sua idéia com um gesto feio.

Amâncio já recorria à moléstia para justificar aos olhos do amigo a atitude respeitosa que ocupara ao lado de Amélia — o colega que não o julgasse um tolo!... Mas que diabo havia ele de fazer, tolhido de dores, como estava, numa cama?...

Quando se despediram, Paiva deu a entender que precisava de dinheiro; mas Amâncio negou-o, apesar de bem provido, dizendo com a voz triste que "sentia muito não poder servir naquela ocasião".

O outro, sem mais querer ouvir coisa alguma, retirou-se logo.



Amâncio, assim que se viu livre, correu a tomar um tílburi e bateu para a casa de pensão, onde estava Lúcia.

Era um palacete, com magnífica aparência. Janelas de sacada, grande corredor ladrilhado de mármore e velhas escadarias encentradas de tapete de oleado, preso a cada degrau por um fio de metal amarelo.

Foi recebido cerimoniosamente no salão por uma mulheraça muito gorda, de lunetas, extremamente decotada, mostrando entre as almofadas do peito ramificações de veiazinhas escarlates, que pareciam miniaturas de árvores secas desenhadas a bico de pena. Em um dos braços luzia-lhe uma jóia e, por debaixo do vestido de cambraia, aparecia-lhe o pé quase redondo e empantufado de veludo azul.

Tinha a voz grossa, cheia de uu, e o lóbulo do queixo coberto de penugem negra.

Ao saber que Amâncio não ia com a intenção de tomar algum cômodo, mas sim para falar à Lúcia, retirou-se sacudindo os rins; e da sala o estudante lhe ouviu gritar ao criado "que fosse prevenir à senhora do Sr. Pereira de que aí estava um cavalheiro que lhe desejava falar!".

Lúcia mostrou-se no fim de meia hora, a pedir mil perdões por se haver demorado mais um pouco. Fizera toilette especial para recebê-lo e parecia muito lisonjeada com a visita.

Declarou, logo, que o achava mais gordo, de melhor fisionomia. — Abençoada moléstia, a dele!

E, em resposta ao que o rapaz lhe perguntava sobre aquela nova residência, elogiou muito a casa, o serviço. "Sempre era outra coisa! Nem havia termo de comparação entre esta e a de Mme. Brizard!"

Amâncio voltou-se todo na cadeira, considerando a sala. Uma rica sala, apesar de velha — grande, espelhada, cortinas de ramagem, consolos cobertos de jarras com flores artificiais de pena. A um dos cantos um piano antigo e no centro do teto de estuque, no lugar donde espipava o lustre, um grande escudo de cores, rebentando em cabecinhas de anjos.

Falaram logo sobre as novidades da casa de pensão de Coqueiro: a saída dos hóspedes, a morte do tísico, a mudança para Santa Teresa.

— Você ali está seguro!... disse Lúcia.

O estudante protestou com um gesto, em que já havia alguma coisa das revelações que pouco antes lhe fizera Paiva Rocha.

E, discutindo os amores de Amelinha, foram pouco a pouco empurrando a conversa para o verdadeiro motivo da visita, até que Amâncio conseguiu tratar de si, das suas saudades, do quanto desejava Lúcia, do quanto sofria por causa daquela ingrata que ali estava!

— Mais baixo! Olha que te podem ouvir!...

Ele então chegou-se mais para a ilustrada senhora, tomando-lhe as mãos que cobria de beijos, e, no seu ardor, com a voz abafada, os olhos acendidos, procurava arrancar-lhe uma resposta definitiva, uma palavra qualquer que o restituísse por uma vez à tranquilidade.

— Está quieto! respondeu a tirana. — Está quieto!

E, vendo que o demônio não a escutava, em risco de comprometê-la aos olhos de quem por acaso entrasse na sala, propôs mostrar-lhe a chácara enquanto esperavam pelo jantar. — Que ela já o não deixava sair sem ter jantado!...

Havia duas descidas; uma pelo corredor e outra pela varanda. Tomaram por esta.

Lúcia, muito disfarçada, ia-lhe apontando os cômodos e as benfeitorias da casa, com tanto empenho e gosto como se fora mesma proprietária; mostrou-lhe o banheiro, os tanques para a lavagem de roupas, o coradouro, o cercado das galinhas e por último o jardim.

Colheu logo uma rosa e, por suas próprias mãos, enfiou-a na gola do fraque de Amâncio.

Em seguida atravessaram a horta.

Canteiros grandes cobertos de verdura, saturavam o ar de um cheiro fresco de hortaliças. As alfaces brilhavam ao sol dourado de julho. Mais adiante havia um sombrejar melancólico e delicioso de árvores grandes; era a chácara; viam-se no ar as folhas largas e recortadas da fruta-pão faiscarem, como lâminas de metal brunido; ao passo que as bojudas mangueiras se debruçavam sobre a terra numa concentração pesada de sono.

Os dois prosseguiram de braço dado por entre o murmurejar tristonho daquelas sombras. E lentamente, e sem trocarem uma palavra, se deixaram ir até a espalda de um muro que servia de limite à chácara.

Havia um grosseiro banco de pau meio escondido entre bambus e trepadeiras. Assentaram-se. Um fio d'água corria da montanha e os passarinhos remigiavam trilando na mole embalsamada das estevas.

Amâncio passou um braço na cintura de Lúcia e chamou-lhe o corpo para junto do seu. Ela deixou-se arrebatar, bambeando a cabeça, num encontro apaixonado de lábios.

O rapaz parecia louco no seu desejo.

— Não! Isso não! dizia a outra. — Mostre que é um homem de espírito! Não se queira confundir com esses materialões que há por aí!

Ele opunha as razões que lhe vinham à cabeça para justificar os seus rogos: "Lúcia que não quisesse desvirtuar o amor, o verdadeiro amor, fazendo de um sentimento real e fecundo uma pieguice romântica e desenxabida." Lembrou-lhe o que ela própria dissera, quando pela primeira vez estiveram juntos.

E, num esfolegar febril e ruidoso, suplicava-lhe um pouco de compaixão, ao menos; que não o torturasse daquele modo; que não o obrigasse a sucumbir ao desespero de sua paixão!

Lúcia não atendeu. — Ele que deixasse a casa de Mme. Brizard e viesse tomar um cômodo ali na Tijuca. Assim... bem! Mas, naquele momento e naquelas circunstâncias... Não! não! e não!

Apesar da enérgica recusa, Amâncio insistia sempre.

— Não seja teimoso, repreendeu ela, arrancando-lhe as saias da mão. — Oh!

Ele, porém, não se desenganava e até já recorria à violência.

— Pior! disse a mulher, notando que o estudante lhe desgrenhava os cabelos e machucava-lhe as roupas. — Já não vou gostando muito da brincadeira!

E, a um movimento desabrido do rapaz:

— Ora pílulas! Isso agora também já é estupidez!

Amâncio ao seu lado bufava, imóvel, emitindo sobre ela olhares de cólera.

— O senhor faz-se desentendido! exclamou Lúcia, afinal, endireitando o penteado e armando as lunetas. — Há muito devia compreender que nada alcançará de mim, enquanto eu estiver com meu marido!

— Marido o quê! desmentiu o provinciano, com a voz sufocada. — Tão marido como eu!

Lúcia olhou para ele, apertando os olhos.

É isso! sustentou aquele. — Sei de tudo! A senhora quer fazer de mim um tolo, pois fique sabendo que não faz! Trate de arranjar outro, porque comigo perde o seu tempo!

Ela o mediu de alto a baixo, levantou desdenhosamente o lábio superior, e afastou-se com um grande ar emproado e senhoril, murmurando entredentes:

— Ordinário!

Amâncio calcou o chapéu sobre os olhos, e, de cabeça baixa e passos lentos, retomou pelo caminho andando, a fustigar com a bengala as ervículas da estrada. Saiu pelo portão da chácara.

Já na rua, sacudia os ombros e disse a meia voz:

— Que a leve o diabo!