Três meses depois, a Escola Politécnica e a Escola de Medicina apresentavam o quente aspecto de uma sedição. — Amâncio fora absolvido.
Os estudantes formigavam assanhados como se acabassem de ganhar uma vitória. O nome do nortista era repetido com transporte; um grupo enorme de rapazes, capitaneado pelo Paiva Rocha e pelo Simões, aguardava o colega à saída do júri, para o conduzir em triunfo ao Hotel Paris, onde havia à sua espera um almoço e a banda de músicas alemãs.
Fora muito extenso o último júri, quarenta horas seguidas; a defesa de Amâncio principiou à meia-noite e acabou às seis da manhã. O advogado, que "estava feliz como nunca", ainda aproveitou engenhosamente essa circunstância para afestoar o remate de seu pomposo discurso: "Não queria que o rei dos astros se envergonhasse com aquele nojento espetáculo de pequenas misérias! Não queria que o Sol tivesse de corar defronte de semelhante tolina! Pedia que se varressem de pronto as consciências; que se descarregassem os espíritos, para que limpamente recebessem a esplêndida visita da aurora! — Aí chegava o dia! aí chegava a luz, enxotando os fantasmas tenebrosos da noite e precipitando-os em debandada pelo espaço!
"Pois bem! Pois bem, meus senhores! Se ainda permanece nos vossos espíritos alguma sombra, alguma dúvida, alguma opinião vacilante sobre a inocência daquele pobre mancebo... (e mostrava Amâncio com um gesto supremo) — que essa dúvida se apague! que essa opinião vacilante se resolva na luz que nos assalta! que essa última sombra da noite se retire espavorida de envolta com as últimas sombras da noite que foge!"
— Bravo! Bravo! Apoiado! Muito bem!
E, no conflito da luz fresca, que entrava pelas janelas do edifício, com a luz vermelha do gás que amortecia, as palavras retumbantes do orador tomavam uma expressão de trágica solenidade. E os rostos lívidos e tresnoitados iam se esbatendo nas sombras da sala, como pálidas manchas brancas que se dissolvem.
Ninguém saíra antes de terminar a defesa; um empenho nervoso os prendia ali; as palavras do advogado eram aplaudidas com febre — todos queriam a absolvição de Amâncio.
Às nove horas da manhã a cidade parecia ter enlouquecido. Interrompeu-se o trabalho; os empregados públicos demoravam-se na rua; os cafés enchiam-se com a gente que vinha do júri. À porta das redações dos jornais não se podia passar com o povo que se aglomerava para ler as derradeiras notícias do processo, pregadas na parede à última hora.
Por toda a parte discutia-se a brilhante defesa de Amâncio de Vasconcelos: "Estivera magnífica! — Surpreendente! — Uma verdadeira obra-prima! uma glória para o advogado Fulano!" Repetiam-se frases inteiras do imenso discurso; faziam-se comparações: "Maître Lachaud não se sairia melhor!"
A Rua dos Ourives estava quase intransitável com a multidão que se precipitava freneticamente para ver sair o absolvido. À porta do júri, o tal grupo de estudantes capitaneado pelo Paiva, esperava-o formando alas ruidosas. Tudo era impaciência e sofreguidão.
Afinal, apareceu o homem. Vinha muito pálido e um pouco mais magro.
Ouviu-se então um rugido formidável que se prolongava por toda a rua. Os chapéus agitaram-se no ar.
— Viva Amâncio de Vasconcelos!
— Vivô! repetiram os colegas.
— Morram os locandeiros!
— Morram os piratas.
Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher formosa.
Mas Paiva e Simões apoderaram-se dele, e, seguidos pelo enorme grupo de estudantes, puseram-se a caminho para o hotel, entre as contínuas exclamações de entusiasmo, que rompiam de todos os pontos.
Entraram na Rua do Ouvidor. Por onde passava o bando alegre dos rapazes, um rumor ardente, ancho de vida, enchia a rua num delírio de vozes confundidas. As portas das casas comerciais atulhavam-se de gente; pelas janelas dos dentistas, das costureiras e dos hotéis, surgiam com o mesmo alvoroço, cabeças femininas de todas as graduações: — senhoras que andavam em compras; raparigas que estavam no trabalho, professoras de piano, atrizes, cocotes; e, em todas igual sorriso de pasmo, olhares incendiados, bocas entreabertas a balbuciar o nome de Amâncio. Braços de carne branca apontavam para ele num tilintar nervoso de braceletes.
— É aquele! diziam. — Aquele, moreno, de cabelo crespo, que ali vai!
— Mamãe! mamãe! gritavam doutro lado — venha ver o moço rico que saiu hoje da prisão!
E flores desfolhadas choviam-lhe sobre a cabeça, e os lenços de renda borboleteavam e iam cair-lhe aos pés, como uma provocação, e olhares de amor entornavam-se das janelas entre o ruidoso e pitoresco cata-sol das mulheres em grupo.
E Amâncio, tonto de prazer caminhava no meio dos amigos, abraçado a um grande ramo de flores naturais, que um preto lhe acabava de entregar e em cuja larga fita pendente via-se o nome dele em letras de ouro. Era uma lembrança de Hortênsia.
E o bando crescia sempre. O Largo de São Francisco já estava cheio e ainda a Rua do Ouvidor não se tinha esvaziado.
Ao passar pela Escola Politécnica, ouviram-se estalar foguetes e os vivas a Amâncio e à Liberdade reproduziram-se com mais veemência. Os músicos alemães responderam da porta do hotel com a Marselhesa. — A vertigem chegou então ao seu cúmulo, inflamada pela vibração corajosa dos instrumentos de metal. A Rua do Teatro, o Rocio e todos os becos e travessas circunvizinhas já se achavam tolhidas de povo; as janelas do Hotel Paris destacavam-se embandeiradas e cheias de gente, como nos dias de carnaval. E aquela festa, ali, no coração da cidade, tomava um largo caráter de manifestação pública.
Já ninguém se entendia com o estardalhaço das vozes, da música e dos foguetes. Amâncio, carregado em triunfo nos ombros dos colegas, entrou no hotel ao som do grande hino, chorando de comoção e agitando freneticamente o seu velho chapéu de feltro desabado e boêmio.
Francesas de cabelo amarelo desciam com espalhafato ao primeiro andar de Paris, para ver de perto o "tipo da ordem do dia", o belo moço de que todo o Rio de Janeiro se ocupava naquele momento — o herói daquele romance de amor que havia meses apressava tantos espíritos e sobressaltava tantos corações.
Ele, que até aí parecia sufocado e não dera palavra, como que despertou as primeiras notas da Marselhesa e recobrou de súbito a sua equatorial verbosidade de brasileiro nortista; acederam-se repentinamente as faces: os olhos luziram-lhe como duas jóias, e a sua voz era já segura e vibrante quando ao teto voaram as primeiras rolhas de champanha.
E, de pé, dominando a extensa mesa coberta de iguarias, a taça erguida ao alto, o corpo torcido em uma posição teatral, desencadeou o seu verbo apaixonado e brilhante.
Entretanto, a essas horas, Coqueiro se dirigia tristemente para casa. As mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, as sobrancelhas franzidas, como o ar trágico de um herói vencido.
Vira e ouvira tudo!
Oculto num botequim, vira passar o bando fogoso dos colegas que festejavam o amante de sua irmã; ouvira os "morras ao locandeiro! ao pirata!" ouvira as galhofas, os risos de escárnio, que lhe atiravam como a um inimigo de guerra. E uma raiva negra, um desespero surdo e profundo entraram-lhe no corpo que, nem um bando de corvos, para lhe comer a carniça do coração. Um duro desgosto pela vida o levava a pensar na morte, revoltado contra o mundo, contra a sociedade, contra sua família, contra a hora em que nascera.
— Maldito fosse tudo isso! Malditos seus pais! sua pátria! suas convicções! Malditas as leis todas que regiam aquela miserável existência!
Chegou lívido, sombrio, com os lábios a tremer na sua comoção mortífera. Um silêncio fúnebre enchia a casa; dir-se-ia que acabava de sair dali um enterro. Amélia chorava fechada no quarto e Mme. Brizard, estendida na preguiçosa, tinha a cabeça entre as mãos e meditava soturnamente. Sobre a mesa o almoço há horas esfriava, esquecido e às moscas.
É que já sabiam do terrível desfecho do júri: — Amâncio estava livre, senhor de si por uma vez, podendo ir para a província quando bem quisesse, porque, além de tudo, nem o dinheiro lhe faltava!...
— E eles que ali ficassem, a roer um chifre! — sem recursos, e obrigados a ocupar aquela casa, que era o preço de sua desonra comum.
— Mas, o culpado foste tu e tu! berrou de supetão Mme. Brizard, erguendo-se da cadeira com um movimento de cólera. — Se me tivesse ouvido, não ficarias agora com essa cara de asno. "Quem tudo quer, tudo perde!" Foi bem-feito, para que, de hoje em diante, preste mais atenção ao que te digo! — Agora — pega-lhe com trapos quentes!
O marido deixou cair a cabeça sobre o peito e quedou-se a fitar o chão. Mme. Brizard, depois de voltear agitada pela sala, acrescentou:
— Se fosse o único a sofrer as consequências de tuas cabeçadas — vá! Mas é que nós todos temos de as aguentar! Agora só quero ver como te arranjar! onde vais tu descobrir dinheiro para sustentar a casa! É preciso ser muito cavalo, para ter a fortuna nas mãos e atirá-la pela janela fora! Agora é que eu quero ver! Anda! Vai arrajnar hóspedes! Vê se descobres um novo Amâncio! ou quem sabe se contas viver do que der o cortiço da Rua do Resende?! Fizeste-a bonita; os outros que amarguem!...
Calou-se por um instante, arquejando, mas repinchou logo:
— Olha! Por estes três meses já podes avaliar o que não será o resto! — Não há mais um punhado de farinha em casa; a companhia já ontem nos cortou o gás, porque não lhe pagamos o trimestre vencido; o último criado que nos restava foi-se há mais de quatro semanas, dizendo aí o diabo; só nos resta a mucama, que é aquele estafermo que sabemos; o Eiras reclama todos os dias do tratamento de Nini! — E tu!.. tu! — sem um emprego, sem um rendimento, sem nada! — Então?! E pôs as mãos nas cadeiras, com um riso abominável de ironia. Então?! Estamos ou não estamos arranjadinhos?!... O que te afianço é que não me sinto nada disposta a tornar ao inferno da existência que curti na Rua do Resende! Vê lá como te arranjas!
Coqueiro fugiu para o quarto, sem responder à mulher. "Tinha medo de fazer um despropósito!"
— Que miséria de vida, a sua! refletia ele. — Nem ao menos a própria família o consolava! Por toda a parte a mesma perseguição, o mesmo ódio, a mesma luta! — Que seria de si?! que fim poderia ter tudo aquilo?! Onde iria cavar dinheiro para manter os seus?! — E as custas do processo, e as despesas que fizera?! — O alferes e o homem da venda exigiam o pagamento do que depuseram contra Amâncio a quem mal conheciam de vista; aquele o ameaçava com um escândalo, se Coqueiro não lhe "cuspisse ali os cobres"; o outro o abocanhava pela vizinhança, fazendo acreditar que o devedor era, nem só um caloteiro como um bêbado!
E não havia dinheiro para nenhuma dessas coisas!
— Um inferno! um verdadeiro inferno! — Os moradores da Rua do Resende há que tempos que não pingavam vintém; — Damião estava já pelos cabelos para arriar a carga: "Não podia mais aturar semelhante corja!" dizia e contava até que um dos inquilinos lhe tentara chegar a roupa ao pelo por questões de aluguéis.
E Coqueiro viu arrastar-se todo aquele mau dia na mesma inferneira.
À noite, foi preciso acender velas em substituição do gás suprimido. Amélia não comera desde a véspera e queixava-se agora de muitas dores na cabeça, náuseas, tonturas de febre e um fastio mortal; apareciam-lhe por todo o corpo pequenas manchas roxas. Mme. Brizard só abria a boca para fazer novas recriminações e praguejar; na sua cólera chegara a dar alguns tabefes no filho, e este rabujava a um canto, embesourado e casmurro.
— Antes morresse! antes, mil vezes antes! repisava Coqueiro, sentindo-se esmagar debaixo daquele desmoronamento. — Que faria agora de uma irmã prostituída, e de uma mulher desesperada?!...
E as horas arrastavam-se pesadas como cadeias de ferro. A casa mal esclarecida tinha uma tristeza lúgubre de igreja deserta.
Afinal, Mme. Brizard foi para a cama com o filho, Amélia parecia mais tranquila; só Coqueiro velava, só ele, com o seu desespero a triturá-lo por dentro.
Não podia sossegar um minuto — era deixar-se ir consumindo pelo sofrimento, até que a dor cansasse de doer e os tais bichos negros do coração lhe comessem o último bocado de carniça. Sentia, porém, uma espécie de volúpia pungente em reler as cartas anônimas que lhe enviaram durante o dia; encolerizava-se com isso, mas não podia deixar de as ler, como quem não resiste a tocar numa parte dolorida do corpo.
Três, nada menos do que três cartas anônimas, e cada qual a mais insultuosa e mais perversa; não lhe poupavam coisa alguma: — a vergonha real da situação, o ridículo que havia de o acompanhar para sempre, a ojeriza que o público lhe votava espontaneamente; tudo lá estava; tudo vinha descrito, com uma minuciosidade cruel, e com pequeninas considerações ultrajantes, com o terrível cuidado de quem se vinga.
E, para o efeito ser mais completo, falavam intencionalmente, com entusiasmo, nas conquistas e nas simpatias do outro, do querido, do "feliz"! Não se esqueciam da menor circunstância lisonjeira para Amâncio: — o modo pelo qual o receberam ao sair da prisão — os vivas — as flores desfolhadas sobre ele — os oferecimentos — as declarações de amor — os ramilhetes que lhe deram — os brindes; tudo, tudo fora metido ali, para ferir, para danar, para moer.
Reconheceu logo que uma das cartas era de Lúcia; as outras deviam ser de seus próprios colegas ou, quem sabe?... de algum velho inimigo já esquecido por ele! — Tanta gente saíra despeitada da sua casa de pensão!... Ser credor é ser algoz!... exigir pagamento de uma conta a quem não tem dinheiro é exigir a sua inimizade eterna! Além disso, com os seus modos secos e retraídos ele sempre fora tão pouco estimado na academia!... não tinha, como o "prosa" do Amâncio, gênio para agradar a todo o mundo; não tinha as lábias do outro: não sabia fazer "discursatas e falações" a propósito de tudo!... Era um infeliz, que todos evitavam — um leproso! um lazeiro!
E a dor, sem se resolver nas lágrimas que lhe faltavam, encaroçava-se-lhe por dentro, numa grande aflição.
— Agora, como se apresentar nas aulas?!... Com que cara suportar o riso sarcástico dos colegas?!... Como resistir à curiosidade brutal do público que o esperava impaciente por cuspir-lhe no rosto?!... Como passar debaixo daquelas mesmas janelas que despejaram flores sobre a cabeça de Amâncio?!... — Amâncio! o homem que dormiu meio ano com sua irmã!...
E maquinalmente foi à secretária e tirou o velho revólver que fora do pai.
Que estranhas recordações à vista daquela arma! daquela arma que na sua infância o fizera chorar tantas e tantas vezes!... Belos tempos que não voltam!...
E contemplava distraído os bonitos do revólver — os arabescos de prata e madrepérola com o brasão do velho Lourenço Coqueiro em ouro.
Rica peça! Artística, bem trabalhada; não se lhe enxergava sinal de ferrugem, nem desarranjo nas molas. — Também, que havia nisso para admirar se o dono tinha por ela uma espécie de fetichismo e andava sempre a bruni-la e a azeitá-la? Era o único objeto que lhe falava ainda das extintas grandezas do pai: Quantas vezes não ouvira ele cavaquear o pobre velho sobre as alegorias daquele rico brasão!... E quantas vezes, a tremer de medo, não o vira descarregar aquela mesma arma contra uma laranja que um escravo segurava com a mão erguida!
— Ah! bem que se recordava de tudo isso!... Parecia-lhe ouvir ainda gritar o pai, quando lhe metia à força o revólver entre os dedos. "Não! Isso agora hás de ter paciência! tu, ao menos, ficarás sabendo dar um tiro!
E, todavia, não fiquei sabendo... balbuciou o filho de Lourenço, a experimentar nos lábios o contato frio do cano de aço. — Não fiquei sabendo dar um tiro, que, se o soubesse, acabaria aqui mesmo com esta vida estúpida e miserável!...
Se eu tivesse ânimo... pensou ele, estremecido com a idéia da morte — amanhã encontrariam o meu cadáver e não ficariam naturalmente fazendo de mim um juízo tão triste e tão ridículo! — Talvez até chegassem a amaldiçoar o outro e erguessem em volta de meu nome uma legenda respeitosa e compassiva...
Foi à gaveta, havia lá algumas balas, carregou a arma.
— Não há dúvida, é a melhor coisa que eu poderia fazer... reconsiderava Coqueiro, imóvel, a olhar indeciso para o revólver que tinha na mão.
Mas era bastante chegá-lo contra a boca ou contra um dos ouvidos, para que os seus dedos logo se paralisassem e para que um arrepio muito agudo lhe corresse pela espinha dorsal.
Faltava-lhe a coragem.
Duas vezes ergueu-o à altura da cabeça, duas vezes o desviou, com as mãos trêmulas e o corpo entalado numa agonia insuportável.
— É horrível! resmungava ele. — É horrível!
Ia principiar de novo as tentativas, quando da rua uma forte matinada lhe prendeu a atenção. Um grupo se aproximava, entre cantarolas e algazarras de risos.
Eram dez ou doze dos últimos convivas de Amâncio; haviam passado todo o dia e grande parte da noite a folgazar no Paris; muitos, como o autor da pândega, lá ficaram prostrados pela bebida, mas aqueles tiveram a fantasia de um passeio matinal ao Jardim Botânico e meteram-se barulhosamente no bonde.
Já no Largo do Machado, um deles, um, que de há muito trazia Coqueiro atravessado na garganta, lembrou que seria mais divertido apearem-se ali e seguirem a Rua das Laranjeiras. "A casa do velhaco era a alguns passos — bem lhe podiam cantar uma serenata debaixo das janelas!"
A idéia foi bem acolhida, e a ruidosa farândola despejou-se pelo caminho das Laranjeiras num hilaridade pletórica de bêbados.
Só pararam defronte da porta de João Coqueiro. Através das vidraças e das cortinas de uma das janelas, viram transparecer dubiamente a trêmula morte-cor de uma luz avermelhada.
— Estás dormindo, ó Joãozinho dos camarões?! berrou cambaleando o que tivera a idéia daquela romaria. — Dorme, dorme! é assim que fazem os sem-vergonhas de tua espécie! — Vendem a irmã e põem-se a descansar no colchão que lhe deixou o amante!
Seguiu-se um estrupido de gritos e risos:
— Fora! fora!
— Fiau, fiau!
— Larga essa casa que não é tua, gritou aquele. — É da outra! Ganhou-a com o suor de seu rosto! — Sai, parasita!
— Sai! Sai!
E espoucavam gargalhadas no grupo, e os guinchos sibilantes iam até o fim da rua: — Fora.
— Fora!
— Fiau!
— Sai, cão!
— Deixa a casa, que não é tua! — Fora!
— Fora o cáften!
— Fiau!
Os vizinhos chegavam às janelas, vozeando furiosos contra semelhante berraria.
— É que o sucede a quem mora perto de um João Coqueiro! bradou um da turma.
— Quem mora junto ao chiqueiro sente o fedor da lama! gritou um segundo.
— Queixe-se à Câmara Municipal! acudiu outro.
E formidável matação foi de encontro à vidraça iluminada do chalé de Amélia.
Um dos vizinhos apitou e outro despediu um jarro de água sobre os desordeiros.
Ouviu-se logo o estardalhaço impetuoso dos gritos, das descomposturas e do crepitar dos vidros que se partiam sob um chuveiro de pedras.
— Morra o infame! bramia a malta, já de carreira para o Largo do Machado. — Morra o cáften!
João Coqueiro presenciara tudo aquilo, grudado a um canto da janela, mordendo os nós da mão, os olhos injetados, o sangue a saltar-lhe nas veias.
— Oh! Era demais, pensava ele desesperado. — Era demais tanta injúria! — Se Amâncio estivesse ali, naquela ocasião, por Deus, que o estrangulava!
Abriu a janela. O dia repontava já, mas enevoado e triste. Não havia azul; céu e horizontes de neblinas, formavam uma só pasta cor de pérola, onde vultos cinzentos se esfumavam.
O homem da venda abria também as suas portas. Coqueiro cumprimentou-o, ele respondeu com um risinho insolente, acompanhado de pigarro.
Uma caleça rodejava lentamente ao largo da rua, o cocheiro vergado sobre as rédeas, o seu casquete sumido na gola do capotão. Coqueiro fez-lhe sinal que esperasse, embrulhou-se no sobretudo, enterrou o chapéu na cabeça, meteu o revólver no bolso e saiu.
— Hotel Paris! disse ao da boléia, atirando-se no fundo da carruagem. O cocheiro endireitou-se sobre a almofada, espichou o pescoço, sacudiu as rédeas e os animais dispararam, assoprando grossamente contra o ar frio da manhã.
Coqueiro enfiou pela escadaria do hotel.
Estava tudo deserto e silencioso; apenas, no salão principal, viam-se um preto velho e um caixeiro desdormido que, entre bocejos, se dispunha a principiar a limpeza da casa.
Dir-se-ia que ali passara um exército de bêbados. Por toda a parte vinho derramado, copos partidos, cacos de garrafa e destroços do vasilhame que servira à mesa; o oleado do chão escorregava com uma crusta gordurosa de restos de comida e vômito pesinhado; um espelho ficara em fanicos e um aquário desabara, fazendo-se pedaços e alagando o pavimento, onde peixinhos dourados e vermelhos jaziam, uns mortos e outros ainda estrebuchando.
O preto, de gatinhas, em manga de camisa e calças arregambiadas, procurava desencardir o sobrado com um esfregão de coco, que ia embeber ao canto da sala numa tina cheia d'água; enquanto o caixeiro, a jogar o corpo, muito esbodegado, erguia o que estava pelo chão e empilhava as cadeiras sobre as mesinhas de mármore, ao comprido das paredes.
— Onde é o quarto do Amâncio? perguntou-lhe João Coqueiro.
— Amâncio?... repetiu aquele, emperrando mo meio da sala para fitar o interlocutor com um olhar morto de sono! — Ah! bocejou. — O tal moço do pagode de ontem?...
Coqueiro sacudiu a cabeça perpendicularmente.
— É cá, no número dois, mas escusa bater, que ele aí não está. Ficou lá em cima, no onze, com a Jeanete.
E, voltando ao serviço:
— Se ele não é coisa de pressa, o melhor seria procurá-lo mais logo... Deve estar agora ferrado no sono, que levou na pândega até as quatro e meia!...
Coqueiro voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o segundo andar. Bateu à porta do n.º 11.
Ninguém respondeu.
Tornou a bater.
Bateu de novo.
— Qui est lá!... perguntou na rouquidão do estremunhamento uma voz de mulher.
— Preciso falar a esse rapaz que aí está, o Amâncio!...
Ouviu-se um farfalhar de panos, chinelas arrastaram, e em seguida a porta abriu-se cautelosamente, mostrando pela fisga um rosto gordo, de olhos azuis.
— Qui est lá!...
Mas Coqueiro, em vez de responder, afastou a porta com um murro e atirou-se para dentro do quarto; ao passo que Jeanete, esfandogada de medo, desgalgava em fralda o escadão que ia ter ao primeiro andar.
Amâncio, em uma cama muito cortinada e muito larga, dormia profundamente, de barriga para o ar, pernas abertas e braços atirados sobre a desordem das colchas e dos lençóis. No chão, ao lado do escarrador, um travesseiro caído, e em torno, por todo o desarranjo da alcova, roupas espalhadas.
Coqueiro olhou um instante para ele, sem pestanejar; depois, sacou tranquilamente o revólver da algibeira e deu-lhe um tiro à queima-roupa.
Amâncio soltou um ai.
A segunda bala já não o pilhou, mas o irmão de Amélia, abstrado, pateta, continuava a disparar os outros tiros até que a arma lhe caiu das mãos.
Nisto, como se acordasse de uma vertigem, saiu a correr tropeçando em tudo. No primeiro andar uma polícia lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi conduzindo a sua frente, sem lhe dizer palavra.
Entretanto, Amâncio despertou com um novo gemido e levou ao peito as mãos que se ensoparam no sangue da ferida. Olhou em torno, à procura de alguém; mas o quarto estava abandonado.
Então, fechou novamente os olhos estremecendo, esticou o corpo — e uma palavra doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, como um fraco e lamentoso apelo de criança: — Mamãe!...
E morreu.