A segunda porta das de fora são as orelhas. Esta é assaz perigosa, porque está sempre aberta e homem não a pode cerrar; embora pode ser reteúda, de que o sages diz: "Retém tuas orelhas com espinhos e não escutes as más línguas que empeçonham si e os escutadores". Os espinhos[1] com que homem deve reter as orelhas é o temor de Deus e a lembrança dos espinhos de que Jesus Cristo foi coroado na Paixão. Assim não haverá homem vontade de ouvir maldizentes nem enganadores nem outras desonestas palavras.

Pelas espinhas que são agudas se entendem as palavras ásperas, por que homem pode repreender os maldizentes e fazê-los calar e mostrar-lhe incontinenti[2] que os não ouve de boa mente. São Bernardo diz: "Os maus escutadores dão favor aos maldizentes.

Mas esta porta deve ser aberta a toda palavra de edificação e a bons e devotos sermões e obediências e repreensões e corrigimentos. E por isto nos deu natureza duas orelhas e uma só boca em significança que devemos ser mais aparelhados a escutar que a falar. E isto diz são Tiago: "Sê prestes a ouvir o bem e fala tarde". Por isto ordenaram os religiosos muitos tempos e lugares de silêncio e poucos para falar.

E não deve a devota pessoa ser muito desejosa de saber o que dizem dele, seja bem ou mal, por não ser ocasião de o mover à vã glória ou a impaciência, que assim não teria o coração em paz. O porteiro desta porta deve ser fortaleza, que é uma das quatro virtudes cardeais, que dá ao homem esforço de sofrer todas adversidades e começar grandes coisas por amor de Deus e ardidamente e sem vergonha afastar de si os maldizentes com palavras ásperas e feio semblante.

Notas editar

  1. "As espinhas", no original.
  2. "Continença", no original.