Ora, é nosso castelo cercado das cavas do coração, que são profundas por humildade e largas por caridade e de muros, isso mesmo que são altos por discrição, e fortes por paciência. Ora, é tempo de falar nas portas. E é de saber que no castelo, onde o coração é cerrado, há uma porta principal, que é a boca, e há aí cinco portas de fora, por que o coração vai muitas vezes vagar às coisas deste mundo.

Estes são os cinco sentidos: os olhos, as orelhas, os narizes, o gosto, e o tocamento, que são muito perigosas, se não são bem guardadas. Pouco vale cercar de fossas nem de muro, ca se elas são abertas, a hoste dos pecados entra ligeiramente e por tal entrada muitas vezes vem a morte à alma, segundo diz Joel.

E diz são Jerônimo: "A torre do coração não pode ser filhada se as portas não são abertas à hoste do diabo. Mas a boca e a língua, que é a principal, é a mais perigosa, ca tão mal como se podem nomear as gotas do mar, tão mal se contarão os pecados que saem da língua".

E diz são Tiago que da língua sai toda maldade. Por isto é a má língua comparada ao corisco e ao trovão e à seta e à lança e à espada e a fogo ardente e à serpente, que morde com peçonha. Ca estes todos não fazem tão mal como vêm das más línguas. Por isto deve homem meter boa guarda em esta perigosa porta.

Isto é o que Davi pede no Salteiro: "Senhor põe guarda na minha boca". O porteiro e guarda desta porta deve ser o temor de Deus, que por ela nenhuma coisa deve deixar entrar nem sair senão por licença de razão e discrição, que são senhores do castelo.

Vinho e vianda entram por esta porta, de que homem não deve usar além de temperança. E isso mesmo saem palavras que temor de Deus não deve deixar sair sem licença dos sobre-ditos, ca embalde se combate com os outros vícios quem não retém sua língua; e quem a bem guarda há o senhorio do seu corpo.

E são Jerônimo diz: "Pelas palavras se conhecem os homens". Por isto disse Salomão nos Provérbios: "Quem deixa ir a água a todo seu curso, scilicet, a palavra à sua vontade sem a reter com (prema?) de discrição amiúde se lhe causam demandas e tenções". E diz são Bernardo que a palavra deve primeiro vir duas vezes à lingua, scilicet, de discrição e razão, que uma vez à língua.

Desde aí, deve homem pesar as palavras na balança destes mesmos, e esta balança deve ser justa que não pese mais a uma parte que à outra, ca por amor nem ódio de algum não deve homem deixar de dizer verdade em tempo e lugar. Se esta porta é assim guardada o castelo será seguro daquela parte.