A terceira besta é a memória da morte. E, cada vez que nós olharmos a terra, nos deve lembrar de nosso sepulcro e do mau espantoso apartamento[1] que pode ser em ela; este é da alma e do corpo, entre os quais houve tão grande amor. Então será a alma ferida de um tão grande medo que se não poderia dizer nem pensar. Então verá ela os espantosos diabos que de todas partes a cercarão e levarão consigo aos tormentos perduráveis.

E não haverá quem a livre de suas mãos. E então, segundo diz são Bernardo, dirão suas obras: "Nós somos tuas e não te deixaremos, mas iremos com tigo ao juízo". E todos seus pecados a acusarão. E então demandará trégua de uma só hora, e não a haverá, e mais a amaria se a haver pudesse, que tamanho ouro como todo o mundo.

Em aquela espantosa tribulação, não valerão gabanças nem riquezas, força, nomeada, formosura de corpo nem amigos, senão boa consciência. E pois todos estes falecem a tal tempo, são conselho é, em quanto homem vive em este mundo, buscar amigos que o possam ajudar em tal necessidade.

Estes são os santos e santas, especialmente a Virgem Maria, que nunca em tal mister falece àqueles que devotamente a servem em sua vida, mas incorre os inimigos. Por isto se canta dela na igreja uma gloriosa cantiga e breve, que não devia de sair do coração nem cessar da boca da devota pessoa: "Maria, Mater gratie, Mater misericordie, tu nos ab oste protege et ora mortis sucipe". Quer dizer: "Maria, Madre de graça, Madre de misericórdia, defende-nos do inimigo e recebe-nos na hora da morte".

Haa, Deus! quantos aí há que de boca o dizem, mas o coração pensa alhures! Por Deus vos rogo e conjuro todas devotas pessoas que haveis cuidado de vossa salvação, honrai e amai e servi de coração e de boca e de feito esta gloriosa senhora; que quem o assim fizer, não haverá mau fim. E ainda que louvor de pecador não seja formoso, segundo diz são Jerônimo, não deve algum cessar de amar esta senhora, que muitas vezes chama o pecador que a serve e o mete a salvo porto e lhe dá nova vida, segundo vos direi brevemente de um clérigo que da angelical saudação acostumadamente a saudava. Embora sua vida fosse suja, ela o chamou graciosamente.

Uma vez sonhava aquele clérigo que era assentado a uma mesa, e aquela maviosa senhora o servia de muito boas e deleitosas viandas, mas a escudela era feia e chea de sujidade. Quando o clérigo a viu, antes se deixara morrer que comer em ela.

Então lhe disse a gloriosa Virgem: "Se tu de tão formosa vianda como te eu apresento não queres comer porque a escudela é suja, como poderia prazer a mim, que são tão graciosa e assim gentil, o que tua boca me apresenta? Se tu queres que tuas saudações cheguem às minhas orelhas, emenda e aparelha tua vida".

Então se foi a Virgem e o clérigo acordou e foi muito maravilhado do que viu e emendou sua vida. Assim devemos nós fazer se queremos prazer a Deus.

Senhora, que este milagre fizeste, ajuda-nos a viver de guisa que, depois de nossa morte, hajamos o gracioso Deus. Amém.

Notas editar

  1. "Separação".