Cenas da vida amazônica, de José Veríssimo

Aqui está um livro que há de ser relido com apreço, com interesse, não raro com admiração. O autor que ocupa lugar eminente na crítica brasileira, também enveredou um dia pela novela, como Sainte-Beuve, que escreveu Volupté, antes de atingir o sumo grau na crítica francesa. Também há aqui um narrador e um observador, e há mais aquilo que não acharemos em Volupté, um paisagista e um miniaturista. Já era tempo de dar às Cenas da vida amazônica outra e melhor edição. Eu, que as reli, achei-lhes o mesmo sabor de outrora. Os que as lerem, pela primeira vez, dirão se o meu falar desmente as suas próprias impressões.


Talvez achem comigo que o titulo é exato, sem dizer tudo. São efetivamente cenas daquela vida e daquele meio; sente-se que não podem ser de outra parte, que foram vistas e recolhidas diretamente. Mas não diz tudo o título. Três, ao menos, das quatro novelas em que se divide o livro, são pequenos dramas completos. Tais o Boto, o Crime do Tapuio e a Sorte de Vicentina. O próprio Voluntário da pátria tem o drama na alma de tia Zeferina, desde a quietação na palhoça até aquele adeus que ela fica acenando na margem, não já ao filho, que a não pode ver, nem ela a ele, mas ao fumo do vapor que se perde ao longe no rio, como uma sombra.


Em todos eles, os costumes locais e a natureza grande e rica, quando não é só áspera e dura, servem de quadro a sentimentos ingênuos, simples e alguma vez fortes. O Sr. José Veríssimo possui o dom da simpatia e da piedade. As suas principais figuras são as vítimas de um meio rude, como Benedita, Rosinha e Vicentina, ou ainda aquele José Tapuio, que confessa um crime não existente, com o único fim de salvar uma menina, ou de “fazê bem p'ra ela”, como diz o texto. Não se irritem os amigos da língua culta com a prosódia e a sintaxe de José Tapuio. Há dessas frases no livro, postas com arte e cabimento, a espaços, onde é preciso caracterizar melhor as pessoas. Há locuções da terra. Há a tecnologia dos usos e costumes. Ninguém esquece que está diante da vida amazônica, não toda, mas aquela que o Sr. José Veríssimo escolheu naturalmente para dar-nos a visão do contraste entre o meio e o homem.

O contraste é grande. A floresta e a água envolvem e acabrunham a alma. A magnificência daquelas regiões chega a ser excessiva. Tudo é inumerável e imensurável. São milhões, milhares e centenas os seres que vão pelos rios e igarapés, que espiam entre a água e a terra, ou bramam e cantam na mata, em meio de um concerto de rumores, cóleras, delícias e mistérios. O Sr. José Veríssimo dá-nos a sensação daquela realidade. A descrição do caminho que leva ao povoado do Ereré, através do “coberto”, do “lavrado” e de um espaço sem nome, é das mais belas e acabadas do livro. Assim também a do Paru, ou antes a história do rio nas duas partes do ano, de verão e de inverno, um só lago intérmino ou muitos lagos grandes, as ilhas que nascem e desaparecem, com os aspectos vários do tempo e da margem.


Não são descrições trazidas de acarreto. As pessoas das narrativas vão para ali continuar a ação começada. No Paru, como o tempo é de “salga”, a água é sulcada de canoas, a margem alastrada de barracas, o sussurro do trabalho humano espalha-se e cresce. Aí assistimos à morte trágica do pelintra de Óbidos, regatão de alguns dias, deixando uma triste moça defunta, amarela e magra. Adiante, por meio do “coberto” e do “lavrado”, vemos correr Vicentina, com a filha de alguns meses “escarranchada nos quadris”, fugindo à casa do marido, depois às onças, depois à solidão, que parece maior ali que em nenhuma parte; e ambas as cenas são das mais vivas do livro.


Ao pé do trágico, o mesquinho, o comum, o quotidiano da existência e dos costumes, que o autor pinta breve ou minuciosamente. Os pequenos quadros sucedem-se, como o da rua Bacuri, na cidade de Óbidos, à hora da sesta, ou no fim dela, quando “a natureza estira os braços num bocejo preguiçoso de quem deixa a rede”. A rede é o móvel principal das casas; ela serve ao sono, ao descanso, à palestra, à indolência. Se a casa é pobre, pouco mais há que ela; mas, pouco ou muito, podemos fiar-nos da veracidade do autor, que não perde o que seja um rasgo de costumes ou possa avivar a cor da realidade. Vimos o regatão; veremos a benzedeira, a pintadeira de cuias, a mameluca, sem exclusão do jurado, do promotor, do presidente de província.


Nem falta aqui a observação fina e aguda. Uma senhora, a quem a tia Zeferina, que a criou, recorre chorando, para que faça soltar o filho, preso para voluntário (como diziam aqui no sul), ouve a mãe tapuia, tem sincera pena dela, promete que sim, fala do presidente da província, que é bom moço, do baile do dia 7 de setembro, em palácio, a que ela foi: “uma festa de estrondo; as senhoras estavam todas vestidas de verde e amarelo; muitas tinham mandado vir o vestido do Pará, mas foi tolice, porque em Manaus arranjava-se um vestido tão bom como no Pará; o dela, por exemplo, foi muito gabado...” Já a tia Zeferina ouvira coisa análoga ao major Rabelo, seu compadre, quando lhe foi contar a prisão do filho, e ele rompeu furioso contra os adversários políticos. Todos os negócios pessoais se vão coçando assim naquela agonia errante. No Boto, é o próprio pai de Rosinha, que não escava muito as razões do abatimento mortal da filha, “por andar atarefado com as eleições”.


Que ele também há eleições no Amazonas; é o tempo da salga política, a quadra das barracas e dos regatões. Não nos dá um capítulo desses o Sr. José Veríssimo, naturalmente por lhe não ser necessário, mas a rivalidade da vila e do porto de Monte Alegre é um quadro vivo do que são raivas locais, os motivos que as acendem, a guerra que fazem e os ódios que ficam. Aqui basta a questão de saber se o correio morará no porto, em baixo, ou na vila em cima. E porque não há vitória sem foguetes, os foguetes vão contar às nuvens o despacho presidencial. A sessão do júri, no Crime do Tapuio, é outro quadro finamente acabado. Tudo sem sombra de caricatura. O embarque dos voluntários é outro, mas aí a emoção discreta acompanha os movimentos mal ordenados dos homens. Nós os vimos desembarcar aqui, esses e outros, trôpegos e obedientes, marchando mal, mas enfim marchando seguros para a guerra que já lá vai.


Em tão várias cenas e lances, o estilo do Sr. José Veríssimo (salvo nos Esbocetos, cuja estrutura é diferente) é já o estilo correntio e vernáculo dos seus escritos posteriores. Já então vemos o homem feito, de mão assentada, dominando a matéria. Há, a mais, uma nota de poesia, a graça e o vigor das imagens que outra sorte de trabalhos nem sempre consentem. Aqui está a frente da casa do sítio em que Rosinha nasceu: “A palha da cobertura, não aparada, dava-lhe o aspeto alvar das crianças que trazem os cabelos caídos na testa”. No tempo da pesca emigram, não só os homens, mas também os cães e os urubus. Os cães são magros e famintos: “Cães magros, com as costelas salientes, como se houvessem engolido arcos de barris...” Os urubus pousam nas árvores, alguma vez baixam ao solo, andando “com o seu passo ritmado de anjos de procissão”. A umas arvores que há na grande charneca do “coberto”, bastava mostrá-las por uma imagem curta e viva, “em posições retorcidas de entrevados”. Mas não se contenta o nosso autor de as dizer assim: em terra tal, tudo há de vibrar ao calor do sol: “Dir-se-ia que o sol, que abrasa aquelas paragens, obriga-as a tais contorções violentas e paralisa-as depois”...


Há muitas dessas imagens originais e expressivas; melhor é lê-las ou relê-las intercaladas na narração e na descrição. Chateaubriand, escrevendo em 1834 a Sainte-Beuve, justamente a propósito de Volupté, que acabava de sair do prelo, pergunta-lhe admirado como é que ele, René, não achara tantas outras. Coment n'ai-je pas trouvé ces deux vieillards et ces deux enfants entre lesquels une révolution a passé...” etc. Desculpe a pontinha de vaidade, é de Chateaubriand, e alguma coisa se há de perdoar ao gênio. Mas, em verdade, mais de um de nós outros poderíamos dizer com sinceridade e modéstia como é que nos não acudiram tais e tais imagens do nosso autor, pois que elas trazem a feição de coisas antes saídas do tinteiro que compostas no papel.


Também é dado perguntar por que é que o Sr. José Veríssimo deixou logo um terreno que soube arrotear com fruto. Ele dirá, em uma nota, falando dos Esbocetos, que o fruto era da primeira mocidade. Vá que sim; mas as Cenas trazem outra experiência, e a boa terra não é esquecida, se se lhe encomenda alguma coisa com amor.


Até lá, fiquem-nos estas Cenas da vida amazônica. Mais tarde, algum crítico da escola do autor compulsará as suas páginas para restituir costumes extintos. Muito estará mudado. Onde José Tapuio lutou com a sicurijú até matá-la, outro homem estudará alguma nova força da natureza até reduzi-la ao doméstico. Coberto e lavrado darão melhor caminho às pessoas. Já agora, como disse nhá Miloca à mãe tapuia, os vestidos fazem-se tão bons em Manaus como em Belém. A política irá pelas tesouras da costureira, e a natureza agasalhará todas as artes suas hóspedas. Tal crítico, se tiver o mesmo dom de análise do Sr. José Veríssimo, achará que um testemunho esclarecido é mais cabal que outro, e regulará os seus leitores, dando-lhes este depoimento feito com emoção, com exação e com estilo.