Por esse tempo chegou á Santa Rita do Paranahyba, vindo de S. Paulo, pela cidade de Uberaba, o D’Anselmo de Sá.

Entre nós, quanto tem progredido a tal Uberaba, no antigo sertão da Farinha Podre! De bem poucos annos, só havia a poeira vermelha que era um inferno , continuas trovoadas roncando grosso, uns casarões sombrios de cumieira muito alta e aspecto sinistro, o bom capuchinho frei Germano com as suas eternas observações meteorologicas, o velho tenente-coronel da guarda nacional Sampaio, advogado provisionado e membro do Instituto Historico, além do João Caetano, o homem mais pacato do mundo, mas que, de cada vez que abre a bocca e, muito de mansinho, começa á falar, provoca por toda a parte um barulho dos seiscentos, protestos, gritos, violentos apartes, retaliações e até tiros de garrucha!

Mas hoje, sim senhor! A tal Uberaba já faz figura de grande cidade... no interior. Possue bazares quasi de luxo e mais isto, aquillo, aquill’outro, cousa de encher o olho. Dáqui a um nadinha, terá linha de bonds, confeitarias e gaz de illuminação, se não for luz electrica, á imitação e moda de Juiz de Fóra que, só por isto, quer por força ser a primeira cidade de Minas Geraes e só fala das outras com desdem. Asseverou-me, pelo menos, bem proximos todos aquelles valiosos melhoramentos o Borges Sampaio, o tal membro do Instituto, quando por lá passei. Acho, comtudo, que o homem, aliás com excellentes intenções, tem patriotismo demasiado uberabense e inflammavel.

Voltemos, porém, á nossa historia.

Atravessa o Dr Anselmo de Sá já tarde o grande rio e com muita bagagem , pois viajava como um lord. Viu-se, pois, levado a pousar em Santa Rita de Cassia.

Era esse moço parente chegados dos Confucios e Socrates da familia dos Craveiros, ligados por laços de affinidade com os Moraes , Abreus, Fleurys, Rodrigues, Jardins e Bulhões, gente toda de alto cothurno no meu Goyaz, descendentes até do celebre conde, depois marquez de São João da Palma, antepenultimo capitão-general e governador da Capitania (apresentar armas!) e que lá fez maravilhas nos seus 5 annos de mando absoluto e violento.

Demais, todos na minha terra, quasi sem excepção, pretendem provir d’aquelle grande papão; e isto tem alguns inconvenientes.

Querem uma prova?

Em certo dia, um versejador de occasião, candidato a não sei que logarzinho, foi procurar, aqui, no Rio de Janeiro, um dos filhos do marquez – esse bem averiguado. Toca a esperal-o e nada do protector dignar-se apparecer.

Esgotada a paciencia a contemplar um retrato, tamanho natural, do venerabundo e temivel fidalgo, todo coberto de dourados e fitões, prégou-lhe afinal o tal pretendente embaixo da moldura com um alfinete uma quadrinha altamente crespa e pornographica, relativamente á honra materna e ao esquecimento em que essa mãe era tida. Que desaforo!

E safou-se, deixando o mote, sem esperar pela glosa. Que desaforo!

O tal marquez (cumpre-me, entretanto, dizel-o a bem da verdade historica) deixou em todas as capitanias onde esteve e governou um mundo de filhos naturaes... O excellentissimo Sr. Capitão-general era povoador por excellencia. Comprehendia – e tinha razão – que o Brasil, antes de tudo, precisava e ainda precisa de gente. Ia, pois, no desenvolvimento do seu programma administrativo, applicando com enthusiasmo o multiplicamini de Jehovah, nem melhores serviços podia prestar á corôa de Portugal, deixando ás forças da natureza fecundada o cumprimento do outro preceito, crescitce! E das mais obrigações, pagar impostos, ser soldado d’El-Rey, etc... etc.

Estou porém, sahindo de mais da nossa estrada.

Ah! se eu tivesse ensejo, desfiava muita cousa interessante sobre Goyaz, lembrando tambem os muitos homens notaveis que elle tem dado á patria, pois me peza, devéras, o menospreço com que por ahi costumam falar do meu cantinho natal.

Conhecessem, por ventura, o padre Manuel José Fogaça, que foi prior da igreja de Lourinhã, em Portugal, e bispo resignatario da Malaca? Pois bem, era filho de Goyaz. Conheceram Alvaro José Xavier, commendador de Christo e brigadeiro reformado, presidente da junta do governo provisorio? E Luiz Antonio da Silva e Souza, eleito para as côrtes de Lisboa, mas onde não esteve, professor publico de grammatica latina?

E o general Curado? Joaquim Xavier Curado? Quem se recorda mais d’elle? Grã- cruz do Cruzeiro, commandou em chefe exercitos e ganhou batalhas campaes. Veio á luz do dia em Jaraguá. Como é que um cidadão goyano nascido tão longe, no miudinho arraial do Conego, foi fazer o diabo e pintar a manta no Rio da Pratas, malhando sem tregoas nos castelhanos, dando-lhes bordoeira de crear bicho e trazendo-os de canto chorado, é o que custa crêr. Tenham, porém, paciencia; ahi está a historia, que não me deixa mentir.

E tantos outros!

Uns conegos, padres, outros professores seculares; emfim, renque de gente do mais subido valor e posição e que deixou numerosa e estimavel prole.

O certo é, que, em Goyaz, predomina muito o sentimento aristocratico e separação de castas.” Não sou filho das hervas”, diz lá todo cheio de si um d’aquelles mortaes e, firme n’isso, ninguem o faz arredar pé.

Pois o nosso D’Anselmo de Sá era d’esses que não tinham sido achados debaixo de um pé de couve e de tudo tirava não pouco orgulho, olhando aos mais bem do alto da sua importancia e com ares de sincero pouco caso por meio mundo.

De que lhe serviu, porém?

Foi botar os luzios na ciganinha, e záz! Ficou pelo beiço, logo, no dia da chegada, pela tardinha, tal qual um lambarysinho do Paranahyba, fisgado na bocca por apontado e despiedoso anzol.

Isso não no rio, mas na novena que se estava rezando no igrejinha, por signal que o sacristão, o Quincas Malhado, já de miolo molle, fazia vezes de padre e puxava as rezas e ladainhas n’um latinorio levado da bréca e que o Padre Eterno, apezar do seu polyglottismo, custaria bem a entender.

Lá estava a nossa Gêgéca a encher a carunchosa matrizionha com as irradiações e o esplendor da sua belleza.

Tambem foi o doutor pregar-lhe o olho em cima e ficou tonto, abestalhado, bestificado, historica palavra do Sr. Silveira Lobo – Aristides, o justo.

Nem me lembro bem como os franceses chamam esse repentino estado d’alma, a tal fulminação – meu professor de francez foi tão fraco! – Por isto não me arrisco; podia escrever alguma asneira.

— Mas quem é aquella moça? Perguntava o Anselmo assarapantado, sofrego, a quantos o rodeavam.

Aquelles olhos, aquelles ohos, santo Deus! Que relampagos desferiam! Por isto, quando pousaram bem em cheio no doutoréco, sentiou-se este desfallecer, todo derretido de gosto, julgando-se na obrigação de sorrir aparvalhadamente, mas a suar frio, quasi a tiritar!