IV

 

A noite estava escura.

Era uma d’essas noites de Petropolis, envoltas de nevoeiro e cerração.

Caminhavamos mais pelo tacto do que pela vista, difficilmente distinguiamos os objectos á uma pequena distancia; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas.

Em alguns minutos chegámos em face de um pequeno edificio construido á alguns passos do alinhamento, e cujas janellas estavam esclarecidas por uma luz interior.

— É alli.

— Obrigado.

O criado voltou, e eu fiquei junto d’essa casa, sem saber o que ia fazer.

A idéa de que estava perto d’ella, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que ella pisára, fazia-me feliz.

É cousa singular, minha prima! O amor, que é insaciavel e exigente, e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher póde dar, que deseja o impossivel, ás vezes contenta-se com um simples gozo d’alma, com uma d’essas emoções delicadas, com um d’esses nadas, dos quaes o coração faz um mundo novo e desconhecido.

Não pense, porém, que eu fui á Petropolis só para contemplar com enlevo as janellas de um chalet; não: ao passo que sentia esse prazer, reflectia no meio de vêl-a e de fallar-lhe.

Mas como?...

Si soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha imaginação! Si visse a elaboração tenaz á que se entregava o meu espirito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava alli e a esperava!

Por fim achei um; si não era o melhor, era o mais prompto.

Desde que chegára, tinha ouvido uns preludios de piano, mas tão debeis que pareciam antes tirados por uma mão distrahida que roçava o teclado do que por uma pessoa que tocasse.

Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma bella musica de Verdi; e foi quanto bastou.

Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquella linda romanza; os que me ouvissem tomar-me-hiam por algum furioso; mas ella me comprehenderia.

E de facto, quando eu acabei de estropeiar esse trecho magnifico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emmudecido, soltou um trilho brilhante e sonoro, que acordou os echos adormecidos no silencio da noite.

Depois d’aquella cascata de sons magestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia, do seio d’aquelle turbilhão de notas, que se cruzavam, deslisou plangente, suave e melancolica, uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de Verdi.

Era ella quem cantava!

Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente triste, a angustia de que ella repassou aquella phrase de despedida:


Non ti scordar di me
Addio!...

Partia-me a alma.

Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janellas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permittiram ver o que se passava na sala.

Sentei-me sobre uma pedra e esperei.

Não se ria, D***; estava resolvido á passar alli a noite ao relento, olhando para aquella casa, e alimentando a esperança de que ella viria ao menos com uma palavra compensar o meu sacrificio.

Não me enganei.

Havia meia hora que a luz da sala tinha desapparecido e que toda a casa parecia dormir, quando abrio-se uma das portas do jardim, e eu vi ou antes presenti a sua sombra na sala.

Recebeu-me sem sorpresa, sem temor; naturalmente e como si eu fosse seu irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção de que ás vezes costumam cercal-o.

— Eu sabia que sempre havia de vir, disse-me ella.

— Oh! não me culpe! si soubesse!

— Eu culpal-o? Quando mesmo não viesse, não tinha direito de queixar-me.

— Porque não me ama!

— Pensa isto? disse-me com uma voz cheia de lagrimas.

— Não! não!... Perdôe!

— Perdôo-lhe, meu amigo, como já lhe perdoei uma vez; julga que lhe fujo, que me occulto, porque não o amo, e entretanto não sabe que a maior felicidade para mim seria poder dar-lhe a minha vida.

— Mas então porque esse mysterio?

— Esse mysterio, bem sabe, não é uma cousa creada por mim, e sim pelo acaso; si o conservo é porque, meu amigo... não deve amar.

— Não a devo amar! Mas eu amo-a!...

Recostou a cabeça no meu hombro, e eu senti uma lagrima cahir sobre meu seio.

Estava tão perturbado, tão commovido d’essa situação incomprehensivel, que senti-me vacilar, e deixei-me cahir sobre o sofá.

Ella sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um pouco mais calma:

— Diz que me ama!

— Juro-lhe!

— Não se illude talvez?

— Si a vida não é uma illusão, respondi, penso que não, porque a minha vida agora é você, ou antes a sua sombra.

— Muitas vezes toma-se um capricho por amor; não conhece de mim, como diz, sinão a minha sombra!...

— Que me importa?...

— E si eu fosse feia? disse ella rindo.

— É bella como um anjo! Tenho toda a certeza.

— Quem sabe?

— Pois bem; convença-me, disse eu passando-lhe o braço pela cintura e procurando leval-a para uma sala vizinha, d’onde filtravam os raios de uma luz.

Desprehendeu-se do meu braço.

A sua voz tornou-se grave e triste.

— Escute, meu amigo; fallemos seriamente. Diz que me ama; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me dissesse. As almas como as nossas quando se encontram se reconhecem e se comprehendem. Mas ainda é tempo; não julga que mais vale conservar uma recordação do que entregar-se á um amor sem esperança e sem futuro?...

— Não, mil vezes não! Não entendo o que quer dizer; o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá sempre!...

— Eis o que eu temia; e entretanto eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem a sua alma ama-se de uma só vez.

— Então porque exige de mim um sacrificio que sabe ser impossivel?

— Porque, disse ella com exaltação, porque, si ha uma felicidade indefinivel em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existencia, que só têm um passado e um futuro para ambas, que desde a flôr da idade até a velhice caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas magoas, revendo-se uma na outra até o momento em que batem as azas e vão abrigar-se no seio de Deos; deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma d’essas duas almas irmãs fugir d’este mundo, e a outra, viuva e triste, fôr condemnada á levar sempre no seu seio uma idéa de morte; á trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá a sua bella mocidade; á fazer do seu coração, cheio de vida e de amor, um tumulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrivel!...

A exaltação com que fallava tinha-se tornado uma especie de delirio; sua voz, sempre tão doce e avelludada, parecia alquebrada pelo cansaço da respiração.

Ella cahio sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um accesso de tosse.