IX

 

Eram seis horas da tarde.

O sol declinava rapidamente, e a noite, descendo do céo, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanham o occaso.

Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutavamos contra o mar e o vento.

O velho pescador, morto de fadiga e de somno, estava exhausto de forças; a sua pá, que á principio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o fragil barquinho, apenas feria agora a flôr da agua.

Eu, recostado na pôpa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando á cada momento ver desenhar-se o perfil do meu bello Rio de Janeiro, começava seriamente á inquietar-me da minha extravagancia e loucura.

Á proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céo, esse vago inexprimivel da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face d’essa solidão immensa de agua e de céo, se apoderavam do meu espirito.

Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte, para fazer uma viagem breve e rapida, do que sujeitar-me á mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.

Com effeito, já tinha anoitecido; e, ainda que conseguissemos chegar á cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e fallar-lhe.

De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciencia? Tinha morto um animal, tinha incommodado um pobre velho, tinha atirado ás mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar soccorrendo algum infortunio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança d’ella.

Concebia uma triste idéa de mim; do meu modo de ver então as cousas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estupida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um acto de dedicação.

Tinha-me tornado philosopho, minha prima, e de certo comprehenderá a razão.

No meio da bahia, mettido em uma canôa, á mercê do vento e do mar, não podendo dar largas á minha impaciencia de chegar, não havia sinão um modo de sahir d’esta situação, e este era arrepender-me do que tinha feito.

Si eu podesse fazer alguma nova loucura creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde: porém era impossivel.

Tive um momento a idéa de atirar-me á agua, e procurar vencer á nado a distancia que me separava d’ella; mas era noite, não tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia n’esse novo Hellesponto.

Foi de certo uma inspiração do céo ou o meo anjo da guarda que me veio advertir que n’aquella occasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.

Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.

Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tinha trazido; e fizemos uma verdadeira collação de contrabandistas ou piratas.

Cahi na asneira de obrigal-o á beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhal-o e fazer-lhe as honras da hospitalidade. Julgava que d’este modo elle restabeleceria as forças e chegariamos mais depressa.

Tinha-me esquecido que a sabedoria das nações, ou a sciencia dos proverbios, consagra o principio de que de vagar se vai ao longe.

Acabada a nossa magra collação, o pescador começou á remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.

Assim, docemente embalado pela idéa de vêl-a e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrella da tarde, que ia sumir-se no horizonte e me sorria como para consolar-me, senti á pouco e pouco fecharem-se-me as palpebras, e dormi.

Quando accordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro.

Não sei onde estavamos; via ao longe algumas ilhas: o pescador dormia na prôa, e resonava como um boto.

A canôa tinha vogado á mercê da corrente: e o remo, que cahira naturalmente das mãos do velho, no momento em que elle cedêra á força invencivel do somno, tinha desapparecido.

Estavamos no meio da bahia, sem poder dar um passo, sem poder mover-nos.

Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na comica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dôr profunda, de uma angustia cruel como a que soffri então.

Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passáram perto, apezar dos nossos gritos, seguiram seu caminho, não podendo suppôr que com o tempo calmo e sereno que fazia houvesse sombra de perigo para uma canôa que boiava tão levemente sobre as ondas.

O velho, que tinha accordado, nem se desculpava; mas a sua aflicção era tão grande que quasi me commoveu; o pobre homem arrancava os cabellos e mordia os beiços de raiva.

As horas corrêram assim n’essa atonia do desespero. Sentados em face um do outro, talvez culpando-nos mutuamente do que succedia, não proferiamos uma palavra, não faziamos um gesto.

Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco lembrando-me que estavamos á 13, e que o paquete devia partir no dia seguinte.

Não era unicamente a idéa de uma ausencia que me afligia: era tambem a lembrança do mal que ia causar-lhe, á ella, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoista, supporia que a havia abandonado, e que ficára em Petropolis divertindo-me.

Aterrava-me com as consequencias que poderia ter esse facto sobre a sua saude tão fragil, sobre a sua vida; e me condemnava já como assassino.

Lancei um olhar hallucinado sobre o pescador, e tive impetos de abraçal-o e atirar-me com elle ao mar.

Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!

De que me serviam a intelligencia, a vontade, e essa força invencivel do amor, que me impellia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?

Algumas braças d’agua e uma pequena distancia me retinham e me encadeavam n’aquelle lugar como á um poste; a falta de um remo, isto é, de tres palmos de madeira, creava para mim o impossivel; um circulo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.

A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas azas brancas; o peixe, que fazia scintillar um momento seu dorso de escamas á luz das estrellas; o insecto, que vivia no seio das aguas e plantas marinhas, eram reis d’essa solidão, na qual o homem não podia siquer dar um passo.

Assim, blasphemando contra Deos e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entreguei-me á Providencia; embrulhei-me no meu capote, deitei-me e fechei os olhos, para não ver a noite adiantar-se, as estrellas empallidecerem e o dia raiar.

Tudo estava sereno e tranquillo; as aguas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava uma aragem tenue; que dir-se-hia o halito das ondas adormecidas.

De repente pareceu-me sentir que a canôa deixára de boiar á discrição e singrava lentamente; julgando que fosse illusão minha, não me importei, até que um movimento continuo e regular convenceu-me.

Afastei a aba do capote e olhei, receiando ainda illudir-me; não vi o pescador, mas á alguns passos da prôa percebi os rolos de espuma que formava um corpo agitando-se nas ondas.

Approximei-me, e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canôa por meio de uma corda que amarrára á cintura, para deixar-lhe os movimentos livres.

Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrificio que eu supunha inutil: não era possivel que um homem nadasse assim por muito tempo.

Com effeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na canôa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma especie de borborinho no seu peito largo e forte.

Bebeu um trago de vinho, e com o mesmo cuidado deixou-se cahir n’agua e continuou á puxar a canôa.

Era alta noite quando n’esta marcha chegámos á uma especie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desappareceu.

Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir si era fogo, si luz, sinão quando uma porta abrindo-se deixou-me ver o interior de uma cabana.

O velho voltou com um outro homem, sentáram-se sobre uma pedra e começáram á fallar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma historia de ladrões.

A minha suspeita, porém, era injusta; os dous pescadores estavam á espera de dous remos que lhes trouxe uma mulher, e immediatamente embarcáram e começaram a remar com uma força espantosa.

A canôa resvalou sobre as ondas, agil e veloz como um d’esses peixes de que ha pouco invejava a rapidez.

Ergui-me para agradecer á Deos, ao céo, ás estrellas, ás aguas, á toda a natureza emfim, o raio de esperança que me enviavam.

Uma facha escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.

A cidade começou á erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzella que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente limpida de um rio.

Á cada movimento de impaciencia que eu fazia, os dous pescadores dobravam-se sobre os remos e a canôa voava. Assim nos approximámos da cidade, passámos entre os navios, e nos dirigimos á Gloria, onde pretendia desembarcar, para ficar mais proximo de sua casa.

Em um segundo tinha tomado á minha resolução; chegar, vêl-a, dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me n’esse mesmo paquete em que ella ia partir.

Não sabia que horas eram; mas ha pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um credito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhal-a ao fim do mundo.

Já via tudo côr de rosa, sorria á minha ventura e gozava da alegre sorpresa que ia causar-lhe, á ella que já não me esperava.

A sorpresa, porém, foi minha.

Quando passava diante de Villegaignon descobri de repente o paquete inglez: as pás se moviam indolentemente, e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar suas forças, para precipitar-se á toda a carreira.

Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao hombro de sua mãi, e com os olhos engolfados no horizonte, que occultava o lugar onde tinhamos passado a primeira e ultima hora de felicidade.

Quando me vio, fez um movimento, como si quizesse lançar-se para mim; mas conteve-se, sorrio-se para sua mãi, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céo, como para agradecer á Deos, ou para dirigir-lhe uma prece.

Trocámos um longo olhar, um d’esses olhares que levam toda a nossa alma e a trazem ainda palpitante das emoções que sentio n’outro coração; uma d’essas correntes electricas que ligam duas vidas em um só fio.

O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as aguas; e o monstro marinho, rugindo como uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço com os seus flancos negros, lançou-se.

Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitar-se ao longe, como as azas brancas do meu amor, que fugia e voava ao céo.

O paquete sumio-se no horizonte.