— Pois quê! vais casar-te?

— É verdade.

— Com o Mendonça?

— Com o Mendonça.

— Isso é impossível! Tu, Carolina, tu formosa e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor? Ama-o acaso?

— Hei de estimá-lo.

— Não o amas, já vejo.

— É meu dever. Que queres, Lúcia? Meu pai assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai! ele cuida fazer a minha felicidade. A fortuna de Mendonça parece-lhe uma garantia de paz e de ventura da minha vida. Como se engana!

— Mas não deves consentir nisso... Vou falar-lhe.

— É inútil, nem eu quero.

— Mas então...

— Olha, há talvez outra razão: creio que meu pai deve favores ao Mendonça; este apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não teve ânimo de recusar-me.

— Pobre amiga!

Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte da futura mulher de Mendonça. É mais uma vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à necessidade. Assim é. Carolina devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e era isso o que lamentava a amiga Lúcia.

— Pobre Carolina!

— Boa Lúcia!

Carolina é uma moça de vinte anos, alta, formosa, refeita. Era uma dessas belezas que seduzem os olhos lascivos, e já por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça é um desses, com a circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os seus caprichos.

Bem vejo como me poderia levar longe este último ponto da minha história; mas eu desisto de fazer agora uma sátira contra o vil metal (por que metal?); e bem assim não me dou ao trabalho de descrever a figura da amiga de Carolina.

Direi somente que as duas amigas conversavam no quarto de dormir da prometida noiva de Mendonça.

Depois das lamentações feitas por Lúcia à sorte de Carolina, houve um momento de silêncio. Carolina empregou algumas lágrimas; Lúcia continuou:

— E ele?

— Quem?

— Fernando.

— Ah! esse que me perdoe e me esqueça; é tudo quanto posso fazer por ele. Não quis Deus que fôssemos felizes; paciência!

— Por isso o vi triste lá na sala!

— Triste? ele não sabe nada. Há de ser por outra coisa.

— O Mendonça virá?

— Deve vir.

As duas moças saíram para a sala. Lá se achava Mendonça em conversa com o pai de Carolina, Fernando a uma janela de costas para a rua, uma tia de Carolina conversando com o pai de Lúcia. Ninguém mais havia. Esperava-se a hora do chá.

Quando as duas moças apareceram todos voltaram-se para elas. O pai de Carolina foi buscá-las e levou-as a um sofá.

Depois, no meio do silêncio geral, o velho anunciou o casamento próximo de Carolina e Mendonça.

Ouviu-se um grito sufocado do lado da janela. Ouviu-se, digo mal — não se ouviu; Carolina foi a única que ouviu ou antes adivinhou. Quando voltou os olhos para a janela, Fernando estava de costas para a sala e tinha a cabeça entre mãos.

O chá foi tomado no meio de geral acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai de Carolina, aprovava semelhante consórcio.

Mas, quer aprovasse, quer não, ele devia efetuar-se daí a vinte dias.

Entro no teto conjugal como num túmulo, escrevia Carolina na manhã do casamento à amiga Lúcia; deixo as minhas ilusões à porta, e peço a Deus que não perca só isso.

Quanto a Fernando, a quem ela não pôde ver mais depois da noite da declaração do casamento, eis a carta que ele mandou a Carolina, na véspera de realizar-se o consórcio:

Quis acreditar até hoje que fosse uma ilusão, ou um sonho mau semelhante casamento; agora sei que não é possível duvidar da verdade. Pois quê! tudo te esqueceu, o amor, as promessas, os castelos de felicidade, tudo, por amor de um velho ridículo, mas opulento, isto é, dono desse vil metal, etc., etc...

O leitor sagaz suprirá o resto da carta, acrescentando qualquer período tirado de qualquer romance da moda.

Isto que aí fica escrito não muda em nada a situação da pobre Carolina; condenada a receber recriminações quando ia dar a mão de esposa com o luto no coração.

A única resposta dada por ela à carta de Fernando foi esta:

Esqueça-se de mim.

Fernando não assistiu ao casamento. Lúcia assistiu triste como se fora um enterro. Em geral perguntava-se que amor estranho era aquele que levava Carolina a desfolhar a sua mocidade tão viçosa nos braços de semelhante homem. Ninguém atinava com a resposta.

Como eu não quero entreter os leitores com episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou levá-los à casa do Mendonça, numa manhã de inverno.

Lúcia, solteira ainda, está com Carolina, onde costuma ir passar alguns dias. Não se fala na pessoa de Mendonça; Carolina é a primeira a respeitá-lo; a amiga respeita esses sentimentos.

É verdade que os seis primeiros meses de casamento foram para Carolina seis séculos de lágrimas, de angústia, de desespero. De longe a desgraça parecia-lhe menor; mas desde que ela pôde tocar com o dedo o deserto árido e seco em que entrou, então não pôde resistir e chorou amargamente.

Era o único recurso que lhe restava: chorar. Uma porta de bronze separava-a para sempre da felicidade que sonhara nas suas ambições de donzela. Ninguém sabia dessa odisséia íntima, menos Lúcia, que ainda assim sabia mais por adivinhar e por surpreender as torturas menores da companheira dos primeiros anos.

Estavam, pois, as duas em conversa, quando às mãos de Carolina chegou uma carta assinada por Fernando.

Pintava-lhe o antigo namorado o estado em que tinha o coração, as dores que sofrera, as mortes de que escapara. Nessa série de padecimentos, dizia ele, nunca perdera a coragem de viver para amá-la, embora de longe.

A carta era abundante em comentários, mas eu julgo melhor conservar somente a substância dela.

Leu-a Carolina, trêmula e confusa; esteve alguns minutos calada; depois rasgando a carta em tiras muito miúdas:

— Pobre rapaz!

— Que é? perguntou Lúcia.

— É uma carta de Fernando.

Lúcia não insistiu. Carolina indagou do escravo que lhe trouxera a carta o modo por que lhe havia chegado às mãos. O escravo respondeu que um moleque lha entregara à porta. Lúcia deu ordem para que não recebesse cartas que viessem pelo mesmo portador.

Mas no dia seguinte uma nova carta de Fernando chegou às mãos de Carolina. Outro portador a entregara.

Nessa carta Fernando pintava com cores negras a situação em que se achava e pedia dois minutos de entrevista com Carolina.

Carolina hesitou, mas releu a carta; ela parecia tão desesperada e dolorosa, que a pobre moça, em quem falava um resto de amor por Fernando, respondeu afirmativamente.

Ia mandar a resposta, mas de novo hesitou e rasgou o bilhete, protestando fazer o mesmo a quantas cartas chegassem.

Durante os cinco dias seguintes vieram cinco cartas, uma por dia, mas todas ficaram sem resposta, como as anteriores.

Enfim, na noite do quarto dia, Carolina achava-se no gabinete de trabalho, quando assomou à janela que dava para o jardim a figura de Fernando.

A moça deu um grito e recuou.

— Não grite! disse o moço em voz baixa, podem ouvir...

— Mas, fuja! fuja!

— Não! quis vir de propósito, a fim de saber se deveras não me amas, se esqueceste aqueles juramentos...

— Não devo amá-lo!...

— Não deve! Que tem o dever conosco?

— Vou chamar alguém! Fuja! Fuja!

Fernando saltou para o quarto.

— Não, não hás de chamar!

A moça correu para a porta. Fernando travou-lhe do braço.

— Que é isso? disse ele; amo-te tanto, e tu foges de mim? Quem impede a nossa felicidade?

— Quem? Meu marido!

— Seu marido! Que temos nós com ele? Ele...

Carolina pareceu adivinhar um pensamento sinistro em Fernando e tapou os ouvidos. Nesse momento abriu-se a porta e apareceu Lúcia.

Fernando não pôde afrontar a presença da moça. Correu para a janela e saltou para o jardim.

Lúcia, que ouvira as últimas palavras dos dois, correu a abraçar a amiga, exclamando:

— Muito bem! muito bem!

Dias depois Mendonça e Carolina saíram para uma viagem de um ano. Carolina escrevia o seguinte a Lúcia:

Deixo-te, minha Lúcia, mas assim é preciso. Amei Fernando, e não sei se o amo agora, apesar do ato covarde [1] que praticou. Mas eu não quero expor-me a um crime. Se o meu casamento é um túmulo, nem por isso posso deixar de respeitá-lo. Reza por mim e pede a Deus que te faça feliz.

Foi para estas almas corajosas e honradas que se fez a bem-aventurança.