De todos os sinais por onde um regímen pode afirmar a sua aceitabilidade, e um povo demonstrar a sua civilização, o primeiro é a ordem, o segundo a obediência às leis. Sem a paz não há legalidade possível. Sem uma e outra não se concebe a liberdade. Toda forma de governo, que não assegurar ao país ao menos aquelas duas condições elementares de existência policiada, ou é organicamente defeituosa, ou não se acomoda à nação, que a adotou; e, quer num caso, quer no outro, pelo primeiro, ou pelo segundo motivo, está destinada a cair.
Terrível alternativa a da sociedade humana, que não puder alcançar a tranqüilidade, senão perdendo as instituições livres. Mas o certo é que estas serão sempre absolutamente incompatíveis com a violência e a anarquia. Pela desorganização e pelo tumulto triunfa invariavelmente o predomínio da força. E, quando a força reinar, dentre as duas expressões possíveis da sua tirania, a mais intolerável é a da desordem. De sorte que os sistemas políticos inca- pazes de firmar, sequer, a segurança dos direitos essenciais rolam de crise em crise até a solução fatal da ditadura, abençoada como a salvação extrema pelas nacionalidades exaustas.
Não nos levem a esse destino miserável as agitações, que parecem tendentes a renascer agora, quando já tínhamos experiência de sobra, para compreender a esterilidade das reivindicações pelejadas fora do terreno constitucional. Nessa formidável escola, em que vimos os golpes de estado, as insurreições e os crimes conspirarem igualmente para o descrédito de nossa terra e a ruína da nossa fortuna, tantas lições indeléveis nos deviam ter curado radicalmente desse temperamento pugnaz e revolucionário, que assola, corrompe, escraviza e mata as democracias latino-americanas.
Até à última fase desse curso, em que nos devia ter maturado o juízo, o nosso pesadelo era, com razão, o militarismo. Autor do golpe de morte no regímen passado, ele ameaçava temerosamente, pela sua prepotência, o atual. Encarnando no arbítrio de um homem, que das leis mal conhecia a da espada, fizera desta a senhora absoluta da república, e exercera sobre ela, com algumas formas, a rude soberania de um cacique.
Bem natural era que, depois dessas amostras de governo militar, agitado por comoções devastadoras, cuja influência trouxe, com assombro de todo o mundo, à superfície do caráter nacional um fundo de barbaria desconhecido, o país almejasse com ansiedade o advento da ordem constitucional pela inauguração do regímen civil. Aterrava-nos o choque odioso das armas entre irmãos. Com a competência entre os partidos inermes calculávamos que se implantaria a fraternidade, o repoiso e o direito. O perigo militar removera-se momentaneamente; mas não se conjurara. Tudo nos devia levar a crer que, em sua presença, ou diante da sua possibilidade, o elemento civil, sem outro apoio que a autoridade moral da lei, nela assentasse todos os seus títulos, e por ela exclusivamente buscasse consolidar a sua estabilidade.
Infelizmente parece que do exemplo das lutas armadas em vez de aprender a fugi-las, ficamos, pelo contrário, com o gosto de as imitar. Dir-se-ia supormos que, para praticar a força licitamente, basta despir o uniforme, e vestir a casaca. A esta assistiria, talvez, o privilégio de mergulhar a nação na selvajaria, que àquele recusamos. Com uma facilidade própria das tribos autóctones, ou das raças degeneradas, passamos imediatamente da controvérsia ao ultraje, à rixa, às vias de fato, ao sangue. Não toleramos o raciocínio. Não acreditamos na consciência. Rebelamo-nos contra as decisões pela palavra e pela justiça. Não há submissão possível à boa-fé, à evidência, à legitimidade jurídica, à vontade expressa dos textos, à decisão categórica das urnas. — Safa-te, que o lugar me convém, é resumo atual da política brasileira. — E, se te não safas por bem, vai a pau. — Ora o pau, como se sabe, na fraseologia paisana, é a expressão geral da violência em toda a sua escala, desde a contusão simples até à carniça.
Um estado dos menos guerreiros acaba de mostrar-nos a presteza, com que os partidos se transformam em exércitos, a tática da cabala na estratégia marcial e o jogo das opiniões em manobra de campanha. A posse da supremacia oficial justa ou injustamente perdida neste nosso simulacro nacional de eleição, vai-se reaver, em campo raso, a ferro e fogo. O governo, naturalmente vitorioso na prova do escrutínio, dispõe, na sua capital, as trincheiras para a resistência ao embate adverso. A oposição, vencida segundo a sorte normal das oposições entre nós, submete a autoridade a um assédio formal. De parte a parte os instrumentos e munições de guerra executam a sua obra. E, se, afinal, o destino da parada se não resolve em grande efusão de sangue, é que o medo às forças do inimigo aconselha à prudência dos sitiados uma verdadeira capitulação, obtida à custa de uma demonstração militar.
Ora, se estes é que são os processos da democracia civil, não tardará muito que a militança desfeche a rir da sinceridade da paisanagem, e tire daí grave aparência de argumento para as suas pretensões ulteriores. Se, em vez de se apelar das armas para a lei, se continua, sob o governo dos casacas, a recorrer da lei para as armas, o predomínio da farda é racional e indisputável. Nesse terreno, onde as questões jurídicas se dirimem pela baioneta, a primazia é dela. Desde que desaprendamos a língua da razão, para disputar na da força, teremos logicamente entregado o arbítrio dos nossos direitos à classe armada. A fuzil briga o soldado melhor do que nós. É seu ofício. É sua competência. É sua superioridade. Não cabe no senso comum que Marte ensarilhe as armas, para assistir a uma política de batalhas entre recrutas. Ou as facções desarmam perante o país, dando à força o exemplo sério de obediência à legalidade, ou os profissionais no uso regular da força acabam compreendendo que foram logrados pela ambição dos políticos, e enxotam os bandos civis do governo, de onde eles tangeram a nação. Se a época é de ferro e fogo, tem de ceder o casaco à barretina, os amadores aos mestres.