Um crime, revestido das circunstâncias misteriosas e da atrocidade de que se revestiu o assassinato de Marramaque, faz sempre trabalhar todas as imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que se conheceu a causa, o autor, capturado ou não, e outros pormenores, deixa de oferecer interesse, para ser um acontecimento banal da vida urbana, fatal a ela, como os nascimentos, os desastres e os enterros; mas o assassinato de um pobre velho, aleijado, inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a toda a gente que há, soltos e esbarrando conosco nas ruas, nas praças, nos bondes, nas lojas, nos trens, matadores, que só o são por prazer de matar, sem nenhum interesse e sem nenhuma causa. Então, todos acrescentam, aos inúmeros e insidiosos inimigos que tem a nossa vida, mais este do assassínio por divertimento, por passatempo, por esporte.
Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre uma ameaça que paira sobre cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza e não tendo em consideração a pacatez mais pusilânime.
Marramaque não era rico nem andava com jóias, sendo certo que não podia trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime, portanto, não seria o roubo. Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos das vestes, com que fora encontrado o seu cadáver, não denunciou nenhuma tentativa de saque. O pouco dinheiro que tinha - três mil e tanto - estava intacto; uma carteira, encontrada numa das algibeiras interiores do dólmã, continha unicamente papéis. Quando foi assassinado, vestia a farda de contínuo: dólmã azul-marinho e calças da mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete preto, onde trazia um relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro, feita de diversos trancelins de ouro, reunidos por argolas também desse metal, com um remate, em forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra. Pois bem: nem mesmo esta peça, de algum valor, foi-lhe roubada. Posta de lado a hipótese de roubo, qual poderia ter sido o móvel do crime? Amores, conquistas? O estado de saúde, a sua semi-invalidez logo afastavam tal hipótese. Política, questões de família - nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de matar, por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue, encontrar-se-ia a causa. Seria isso? - perguntavam todos.
A notícia do crime logo se espalhou pelo subúrbio inteiro, apesar de ser domingo o dia em que foi descoberto. A deformidade de Marramaque fazia-o notado e conhecido, de forma que, por toda a parte, se comentava o assassínio. A polícia tomou as providências de hábito; mas só iniciou as pesquisas no dia seguinte. Todos que estiveram na venda foram ouvidos; mas pouco, nada adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá chegando, a chuva tinha cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém do "Seu" Nascimento lá estavam, inclusive Meneses, que se mostrava palrador e prazenteiro. Discutia-se despreocupadamente, e até Meneses causou grande hilaridade, quando explicou a sua teoria transcendente sobre o "ovo de Colombo". No correr da discussão, alguém dissera:
— Isto é ovo de Colombo.
Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio aproveitou o ensejo, para perguntar:
— Que diabo quer dizer esta história de "ovo de Colombo", na qual todo o mundo fala e não sei o que é?
Entre os circunstantes estava o Senhor Monção, caixeiro-vendedor da grande casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que tinha suas luzes e gostava de palestrar, para descansar da afanosa lida de estar a "tocar realejo" aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz, milho, e por bom preço.
Era um moço português, simpático, de bom porte e bem-educado. Tinha grande liberdade na roda e não houve nenhum espanto quando interveio:
— Pois não sabes, Alípio, o que é o "ovo de Colombo"?
— Não, "Seu" Mindela.
— É simples. No meio dos sábios espanhóis, depois da primeira viagem à América, Colombo, vendo o seu trabalho criticado e tido como fácil pelos sabichões de Castela, desafiou-os a pôr um ovo em pé.
— Eles puseram? - perguntou Alípio.
Meneses apressou-se:
— Não puseram; mas Colombo pôs.
— Como? - indagou Alípio.
Meneses explicou, tomando a palavra de Mindela, com todo o seu açodamento de sábio:
— Colombo, dando um movimento de rotação conveniente e um de translação adequado, dissolveu a gema do centro do ovo, para a base, trazendo, para a parte inferior do ovo, o centro de gravidade, de forma que o pôde pôr em pé.
Todos se entreolharam e viram o absurdo da explicação de Meneses. Ninguém se animava a contestar, mas Marramaque, tomando a dianteira de Mindela, que ia falar, saltou logo, em tom de gracejo:
— Qual, "Seu" Meneses! Esta história de translação, de rotação, de centro de gravidade, é bobagem; o que...
— Bobagem, Marramaque? Isto é mecânica transcendente, como é a questão do gato cair sempre sobre as patas, atirado que seja, do alto para baixo, em qualquer posição.
Marramaque foi-lhe ao encontro, sem pestanejar:
— Nós não temos nada com gato. Ovo se parece tanto com gato como um espeto. Bolas, "Seu" Meneses!
Todos os circunstantes riram-se a mais não poder; Meneses pôs-se a cofiar a longa e abundante barba branca, lamentando-se da sua derrota em mecânica e tudo. De repente, cobrou coragem e desafiou o contínuo:
— Quero ver, Marramaque, como é que você explica ter Colombo posto o ovo de pé?
— Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a história como a li: "Num banquete, procuravam os nobres de Espanha rebaixar o mérito da descoberta de Colombo, e dizia um: `As Índias já lá estavam e, se o senhor não as descobrisse, qualquer um outro as descobriria`. Colombo, sem responder, pediu um ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém o pusesse de pé. 'Impossível!' - bradaram. Então, o navegador tomou o ovo, bateu com ele, quebrando ligeiramente a mais rombuda das extremidades, e fê-lo ficar de pé. 'Ora, isto também eu faria!...' replicaram. 'Sim, depois que me viram fazer. É simples, mas é preciso pensar no caso, e achar o meio'. Está aí como foi a coisa. Não tem nada de gravidade, nem de rotação, nem de translação, nem de constelação, nem de repulsão - nada tem em "ão", Meneses!
De novo a gargalhada foi geral e prolongada; e Meneses, muito encafifado, limitou-se a dizer:
— Isto não é científico; é uma explicação jocosa de anedota de almanaque. Podia demonstrar a minha interpretação com auxílio do cálculo, mas não é conveniente aqui... fica para outra ocasião.
Assim, sem outra preocupação, naquela tarde tempestuosa, conversaram na venda, enquanto Marramaque estivera e mesmo depois da sua saída. É óbvio que nenhuma das pessoas que lá estavam, poderia adivinhar o que lhe ia acontecer pelo caminho. Chuviscava teimosamente, mas não havia o que se chama de chuva torrencial, quando o pobre contínuo se despediu. É verdade que a noite estava pavorosa de escuridão, e ameaçadoras nuvens pairavam baixo, ainda mais carregando de treva a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz oscilava sob o açoite de um vento constante e cortante. Não se via, como é costume dizer-se, um palmo diante do nariz. À polícia, pareceu que aquele misterioso assassínio, sem causa presumível, nascera de um segredo que só ele, Marramaque, podia revelar e, talvez, os seus papéis íntimos o revelassem. Resolveram, então, as autoridades perquiri-los, à cata de uma pista.
Morava Marramaque com uma tia materna, pouco mais moça que ele, tendo dois filhos homens, de doze e dez anos. Após ter enviuvado na roça, com alguma coisa, tomou o alvitre de comprar aquela casa e convidar o sobrinho, para lhe fazer companhia e encaminhar a educação e a instrução dos filhos, e ajudá-la também.
A sua casa era inteiramente o contrário da de Meneses. Estava sempre limpa, móveis em ordem, completamente cercada, o jardinzinho da frente bem tratado. Helena, a tia de Marramaque, era muito metódica e econômica, de forma que a vida doméstica do sobrinho era regular e plácida. Ela costurava para os arsenais do governo e, com o que Marramaque lhe dava dos seus exíguos vencimentos, a vida deles corria sem contratempos. Não eram difíceis as suas comunicações com as estações da Central, quando feitas pelo bonde de Inhaúma, que passava na esquina; e, se o contínuo, na noite fatídica do assassínio, tomava aqueles atalhos e subidas, sempre que passava pela venda do Nascimento ou ia à casa do Joaquim, procurava aquele caminho mais curto. Helena vivia para os filhos; raras vezes, a não ser para regularizar as suas costuras, saia, indo uma ou outra vez à casa do carteiro, onde se aborrecia com o gênio taciturno de Engrácia. Foi ela quem assistiu desenterrar, do fundo de baús e gavetas, as recordações do seu pobre sobrinho.
As autoridades policiais pediram delicadamente autorização; e o delegado em pessoa foi examinar os papéis do infeliz contínuo. Não encontrou coisa de valia. Havia no seu arquivo cartas de família, bilhetes de amigos, rascunhos de versos, entre os quais um de Raul Braga, de quem Marramaque fora amigo, e o célebre caderno sobre Cassi, que o delegado tinha também um exemplar. A não ser esses papéis sem importância, encontraram um caderno de versos, pronto a ir para o prelo, de autoria de Marramaque, intitulado - Boninas e Sensitivas - versos ingênuos de um homem bom e honesto que não é poeta. Deram também com um retrato de mulher feita, numa pose popular, com o braço esquerdo descansando sobre uma coluna e tendo um leque enorme, pendente do direito, caindo ao longo do corpo. Era uma mulher bonita, de trinta anos, sadia e forte. Nas costas havia esta dedicatória: "Ao meu Antônio, a Eponina. 25-12-92." Mais abaixo, com letra de Marramaque, existiam estas observações: "Amor tudo vence; não pode vencer as obrigações de lealdade que devem sempre existir nas amizades perfeitas. Adeus!"
Quem seria? Os policiais indagaram; mas Dona Helena não lhes pôde explicar. Naquela data, ela nem casada era ainda; seu sobrinho já tinha vindo para o Rio. Quem seria?
Enfim, nada encontraram, e o crime foi sendo esquecido. Só duas pessoas podiam pôr as autoridades na pista verdadeira; eram Clara e Meneses.
Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si. Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas cartas que lhe escrevia; lembrou-se também da carta em que ela narrava ao namorado a atitude de Marramaque, quando o pai falou ao compadre na necessidade de ter um franco entendimento com o violeiro. Por aí e por outras pequenas circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que se julgava também sua cúmplice. Veio-lhe um medo daquele cantador meloso, dengoso, apesar de seu mau olhar de folhas-de-flandres; e, num relâmpago, viu bem quanto de fingido e falso podiam conter as suas cartas ternas e cheias de protestos de boas intenções e de amor sincero e honesto.
Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de desvario criminoso como um esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que tinha a ela. Era um obstáculo e... Agradava-lhe a interpretação. Não tardariam, entretanto, a se explicar de viva voz por que ela havia consentido afinal em conversar com ele na grade de casa, depois que seus pais se recolhessem. Então, nessa ocasião, ela avaliaria o grau de certeza de suas suspeitas. Meneses tinha levado uma carta dela nesse sentido; mas, tendo ficado atrapalhada por sentir a aproximação da mãe, não pôde, Clara, fechar a missiva convenientemente. Aberta, a moça, para não ser pilhada, passou-a precipitadamente ao velho, que assim a guardou jubilosamente. Quando se lhe ofereceu momento azado, leu-a.
Como toda a mulher sem instrução, Clara pegou na pena e não tinha vontade de a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia juramentos. Um destes era o de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse isso, romperia as relações com ele. Estava disposta a esperá-lo, às dez horas, na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque "Seu" Meneses tinha dado o serviço dos dentes por terminado.
De fato, Meneses, aborrecido com aquele negócio de cartas e com o desdém com que Cassi o tratava, ademais da ignóbil farsa que se prestava, resolveu dar por findo o trabalho. A leitura da carta não lhe causou nenhuma estranheza; ele já esperava por este fim. Estava forrado de uma indiferença de vencido. Sentiu-se de mãos e pés atados, para ter qualquer movimento de censura ou de conselho. É que ainda não lhe tinha chegado aos ouvidos a notícia do bárbaro assassínio de Marramaque. Quando, porém, veio a saber, teve uma forte vergonha do seu procedimento, da sua covardia. Compreendeu que aquelas meias palavras de Cassi sobre Marramaque, aquele ríctus horrendo que vira certa vez, ao se falar do contínuo, lhe desfigurar a face, eram os pródromos do assassínio do bondoso velho que o violeiro premeditava. O infeliz Meneses passou o dia todo e a noite inteira voltado para dentro de si mesmo. Não sabia mais chorar, mas o seu remorso era intenso. Ele se julgava também cúmplice daquele desalmado. Por que calara o que sabia? Por que se acovardara a ponto de servir de medianeiro? Oh! Ele não era mais homem, não tinha mais dignidade!
Cassi, entretanto, não demonstrou o menor abalo. Leu as notícias dos jornais, as objurgatórias contra os assassinos de que estavam cheios; ouviu as maldições de todos, nos cafés, nos bondes, em todas as conversas e por toda a parte; mas nenhum arrependimento sentia. Só lhe faltava o orgulho íntimo de ter efetuado tão rara proeza, para ser completa a sua inumanidade e o seu abjeto sossego íntimo. Não tinha orgulho, mas havia nele como que alívio de se ver livre daquela espécie de duende, de fantasma, que vivia a persegui-lo.
Com Arnaldo, já não acontecia o mesmo. Passado o fato, com a leitura dos jornais, com as censuras amargas que via em todas as bocas, até nas daqueles afeitos ao crime, o sócio de Cassi, se não viu remorsos, começou a ter susto. Não pôde reprimir o impulso que o levou a ver o cadáver. Estavam os restos de Marramaque quase tal e qual como foram encontrados. Os médicos ainda não haviam praticado a autópsia. A cabeça partida, os olhos fora das órbitas, todo o rosto coberto de uma lama sangrenta, o braço semiparalítico, partido, as roupas, ensopadas de lama e sangue... Era horrível! No necrotério, acotovelava-se uma multidão, e todos, em voz baixa, cobriam de baldões, de injúrias, de pragas, os malvados que tinham levado a efeito tão estranho e inconcebível crime... Um crioulo, muito negro, forte, com grandes "peitorais" salientes, dizia bem alto do lado de fora:
— Eu não sou santo... Já fiz das minhas... Conheço a "chac'ra"; mas Deus me castigue, me ponha um raio em cima, e faça apodrecer em vida, se eu fosse capaz de fazer tão porco "trabalho"... Os que o fizeram, nem esfolados vivos pagariam... Para que mataram esse pobre velho?
Arnaldo voltou do depósito fúnebre apreensivo. Não havia nele, a bem dizer, arrependimento. O que ele sentia era medo de ser descoberto, de pegar cadeia trinta anos a fio, porque não podia ser mais. Chegou aos subúrbios apavorado; e, quando topou com Cassi, disse, com olhar desvairado:
— Chi, Cassi! O "homem" estava horrível...
O violeiro virou-se para ele, olhou-o firme com seu olhar fosco e falou-lhe com energia e fogo nos olhos:
— Cala-te, miserável! Queres pôr tudo a perder...
Conquanto temesse as fúrias do seu companheiro e cúmplice, não lhe passava o terror de ser descoberto pela polícia. Deu em beber; Cassi vigiava-o com medo que ele "desse com a língua nos dentes". Não o deixava só, quando estava em "rodas".
Nos botequins, não entrava um freguês, que Arnaldo não examinasse meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos. Às vezes, não se continha e apontava:
— Cassi, aquele é agente do décimo oitavo...
O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade, repreendia-o:
— Estás doido! Queres nos pôr no "x", pelo resto da vida.
No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o fizesse denunciá-los; mas, bem cedo, percebeu que a sua bebedeira tomava uma feição choramingas, efusiva, dava para abraçar todos e, com voz de mágoa íntima, repetia de onde em onde, sem nada entender do que se dizia ao redor: "Eu não sou mau..." "Eu sou um bom rapaz..." "Nunca fiz mal a ninguém", etc.
Então, Zezé Mateus, também já muito bêbedo, derreado completamente na cadeira, com os olhos divergentes e vidrados, babando-se todo e gaguejando, retrucava: "Meu querido Arn... ar... ar... Arnaldo, você é uma... pomba sem... sem fel." Em seguida, depois de limpar a baba com o lenço: "Quem foi que... que disse que... você é... é mau?" E acrescentava: "Traga... Traga este su... su... sujeito aqui que... que eu parto a cara dele."
Arnaldo, por aí, levantava-se comovido e abraçava Zezé Mateus, que se mantinha na cadeira, e, com dificuldade, erguia os braços, a fim de cingir o camarada.
Repetiam daí a pouco a cena, com pequenas variantes, debaixo dos motejos forçados de Cassi, a quem tais espetáculos não deixavam de fazer mal. Os outros companheiros riam-se a bom rir, sem nada suspeitar.
Entretanto, o violeiro não se fiava muito que Arnaldo sempre procedesse assim. A embriaguez - ele sabia - é caprichosa, ora dá para isto, ora dá para aquilo, podia aparecer qualquer coisa a respeito do crime e era preciso que ele, Cassi, tomasse as suas precauções. A entrevista com Clara estava marcada para o fim da semana. Tinha de ir; tinha que dar fim "naquilo", que tanto trabalho lhe dera e estava dando. Antes de tudo, porém, era preciso estar preparado para o que desse e viesse. Não contava mais com a proteção; Barcelos não valia nada e só prestava pequenos serviços em vésperas de eleição. Quando elas estavam distantes, fiava com má cara um cálice de cachaça... Era preciso ter tudo pronto para fugir do Rio de Janeiro, ao primeiro sinal de alarme, tanto mais que sabia, por indiscrições de Meneses, que as ouvira na venda do "Seu" Nascimento, que o marido de Nair - aquela moça que ele desencaminhara e a mãe, por isso, se suicidara - estava disposto a persegui-lo, como já o perseguia, com os famosos cadernos, mas mais eficazmente, desde que se metesse em "alguma". Considerou bem que as coisas agora seriam mais difíceis; e as pedras que semeara no caminho, começavam a erguer-se para lapidá-lo.
Tomou a extrema resolução de vender os galos de briga. O dinheiro que apurasse, depositaria na Caixa Econômica, para tê-lo sempre à mão, quando fosse necessário fugir. A mãe, vendo carroças chegarem à porta e as gaiolas e capoeiras saírem, a fim de tomarem lugar nos transportes, foi indagar-lhe o que havia:
— Nada, mamãe. Vou para fora, trabalhar...
— Para onde, Cassi?
— Vou para Mato Grosso, empregar-me na construção de uma estrada de ferro.
— Como trabalhador de picareta, meu filho?
— Não, mamãe, vou ser chefe de turma e praticar nos instrumentos, até conseguir ser seccionista.
Dona Salustiana assim mesmo não ficou contente. Ela conhecia a ignorância do filho, a sua inferioridade mental e a sua incapacidade para aplicar-se a alguma coisa que demandasse o menor esforço intelectual; viu bem, portanto, que, numa construção de estrada de ferro, ele só podia ser simples trabalhador braçal, pegar na foice e roçar, no machado e derrubar, na picareta e cavar, mais nada! Voltou chorando para onde estavam as filhas:
— Você não sabe, Catarina? Você não sabe, Irene, de uma coisa? Ai! Meu Deus!
— Que é, mamãe? - perguntou Catarina.
— Que há, mamãe? - indagou Irene.
— Minhas filhas, vocês não sabem que desgraça para a família, Cassi...
— O que houve? - assustou-se Catarina.
— Cassi está doido e quer envergonhar-nos a todos nós, o meu avô que foi cônsul da Inglaterra... Ah! Se ele ressuscitasse - que vexame não passaria!
— Que é que Cassi vai fazer? - fez Irene com calma.
— Vai ser trabalhador de enxada, numa estrada de ferro de Mato Grosso.
Irene, que era severa e nunca perdoaria ao irmão as maliciosas perguntas que as colegas da escola lhe faziam, vexando-a bastante, quando acontecia aparecer o nome dele nos jornais, nas suas habituais cavalarias - observou:
— Que tem isso, mamãe! Ele tem saúde, ao invés de andar por aí a fazer das suas, a nos envergonhar por toda a parte, é melhor que ele trabalhe para ver se toma caminho.
Dona Salustiana olhou espantada para a filha e disse cheia de mágoa:
— É que você não é mãe; mas, em breve, você será, então...
Catarina obtemperou:
— Mamãe, eu não acho motivo para lástima. O que é de todo reprovável, é que ele leve toda a vida a que está levando... O melhor é aventurar...
O pai veio a saber da resolução do filho, sobre quem não punha os olhos, havia dois anos. Não conteve a sua alegria e exclamou:
— Que se vá! Que vá para o diabo! Já é tempo!
Depois acrescentou:
— Vocês vão ver que ele fez uma das suas; vai fugir e deixar-nos vexados, senão atrapalhados. Seja tudo pelo amor de Deus! Que se vá e nos deixe em paz.
Vendidos os galos, galinhas, frangos e pintos, apurou quinhentos mil-réis, que se dispôs a depositar na Caixa Econômica, logo no dia seguinte ao do recebimento.
Nesse dia, despertou cedo, banhou-se cuidadosamente, escolheu bem a roupa branca, viu bem se a meia não estava furada, escovou o terno cintado e, cuidadosamente, meteu mão à obra de vestir-se com apuro, para vir à "cidade". Raramente, vinha ao centro. Quando muito, descia até o Campo de Sant'Ana e daí não passava. Não gostava mesmo do centro. Implicava com aqueles elegantes que se postavam nas esquinas e nas calçadas. Achava-os ridículos, exibindo luxo de bengalas, anéis e pulseiras de relógio. É verdade, pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com modéstia, não se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as tivesse, não se daria a tal ridículo... Essa sua filosofia sobre a elegância, de elegante suburbano, ele aplicava às moças. Quanto dengue! Para que aqueles passos estudados? Aqueles modos de dizer adeus?
Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não sabia bem de que modelo. O que, de fato, sentia não era isso que expunha aos amigos ou às belezas suburbanas que, porventura, requestasse. O que ele sentia diante daquilo tudo, daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas conversas que não entendia, era a sua ignorância, a sua grosseria nativa, a sua falta de educação e de gosto. O seu ódio, então, ia forte para os poetas e jornalistas, sobretudo, para estes. Não perdoava as descalçadeiras, os deboches que lhe passavam, quando tinham de denunciar alguma das suas ignóbeis proezas. Uns sujos! - dizia - ; uns malandros! - continuava - que querem ditar moral. O seu primeiro ímpeto, quando lia notícias a seu respeito, era atirar-se contra um deles, naturalmente o que lhe parecesse mais fraco; e desancá-lo de pancadas. Sustinha, porém, o ímpeto, porque sabia, se tal fizesse, estaria perdido. A guerra seria sem tréguas, e "novos e velhos" da sua interminável conta sairiam à luz. Secretamente, tinha um respeito pela cidade, respeito de suburbano genuíno que ele era, mal-educado, bronco e analfabeto.
Mal tomou o café matinal, concertou ainda a gravata e pôs-se na rua. Era cedo, mas temia pelo dinheiro que tinha na algibeira. Não queria que ninguém soubesse da existência de avultada quantia em seu poder e, muito menos, que premeditava fugir. Embarcou no primeiro trem; e, esgueirando-se pela Central, conseguiu não encontrar conhecido que lhe fizesse perguntas indiscretas.
Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em pleno Campo de Sant'Ana, no meio da multidão que jorrava das portas da Central, cheia da honesta pressa de quem vai trabalhar. A sua sensação era que estava numa cidade estranha. No subúrbio tinha os seus ódios e os seus amores; no subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones de Azevedo; mas, ali, sobretudo do Campo de Sant'Ana para baixo, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu valimento; a sua fanfarronice evaporava-se, e representava-se a si mesmo como esmagado por aqueles "caras" todos, que nem o olhavam. Fosse no Riachuelo, fosse na Piedade, fosse em Rio das Pedras, sempre encontrava um conhecido, pelo menos, simplesmente de vista; mas, no meio da cidade, se topava com uma cara já vista, num grupo da Rua do Ouvidor ou da avenida, era de um suburbano que não lhe merecia nenhuma importância. Como é que ali, naquelas ruas elegantes, tal tipo, tão mal-vestido, era festejado, enquanto ele, Cassi, passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não queria responder a si mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra coisa.
Na "cidade", como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia e a trocar pilhérias; em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, de atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma.
Saltando na Central, não procurou bonde. Engolfou-se num filete de multidão que se alastrava em direitura à Prefeitura e marchou a pé até o "centro". Desde o Largo do Rossio, foi parando diante das montras. Demorava-se a ver jóias através de fortes vidros que as protegiam contra a cobiça alheia. Mirava anéis e relógios, braceletes e brincos, mais àqueles do que a estes, porquanto não lhe brotava no coração nenhuma necessidade de dar presentes às amadas. Tão caros, não valia a pena!... Uma bengala de junco, esquinada, com castão de ouro, tentou-o. Os quinhentos mil-réis que tinha na algibeira murmuraram-lhe alguma coisa ao ouvido. Prontamente repudia a tentação; precisava estar seguro...
Entrou pela Rua Sete de Setembro e, daí em diante, foi admirando as roupas feitas - por toda a longa fachada do Parc Royal, foi parando diante das vitrines, onde havia roupas e outras peças de vestuário, para homens. Viu fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu colarinhos, viu camisas... Que coisas lindas!
Tomou a Rua do Ouvidor e foi descendo, sempre parando em frente das casas que tinham artigos para homens. Por desfastio, desviou-se a olhar as vitrines de uma livraria. Olhou-lhe também o interior. Livros de alto a baixo. Para que tantos livros? Aquilo tudo só seria para fazer doidos. Ele tinha livros, na verdade; mas eram alguns, livros de amor... Que livros, meu Deus! Teve vontade de tomar café; hesitou um pouco! Mas, afinal, animou-se. Estava quase na hora. A Caixa Econômica não tardaria em abrir-se. Lá chegando, teve que aguardar a abertura da porta. Já havia gente à espera. Olhou-a de relance. Fisionomias diferentes de trato e de cor: velhas de mantilha, moças de peito deprimido, barbudos portugueses de duros trabalhos, rostos de caixeiros, de condutores de bonde, de garçons de hotel e de botequim, mãos queimadas de cozinheiras de todas as cores, dedos engelhados de humildes lavadeiras - todo um mundo de gente pobre ia ali depositar as economias que tanto lhes devia ter custado a realizar, ou retirá-las, para acorrer a qualquer drama das suas necessitadas vidas. Aborreceu-se com aquele contacto...
Penetrando no saguão, pôs-se a ler os cartazes onde estavam as disposições legais que interessavam ao público. Diabo! A providência não lhe servia... Para confirmar, dirigiu-se a um empregado num guichet, que tinha ao alto este letreiro: "Informações." Não lhe servia absolutamente. Para retirar mais de duzentos mil-réis, tinha que avisar previamente. Não; não depositaria. O dinheiro devia estar sempre ao alcance da mão... Saiu e, a fim de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o Largo de São Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da Rua da Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e Largo do Moura. Penetrou naquela vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas hospedarias, mas que já passou por sua época de relativo realce e brilho. Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade à parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade. Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas alcovas sem luz daqueles sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas daquele tristonho quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita infelicidade de deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém, ainda havia alguns com ocupação definida; marítimos, carregadores, soldados; mas as mulheres que ali se viam, haviam caído irremissivelmente na última degradação. Sujas, cabelos por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras. Todas metiam mais pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da nossa sociedade, aquele agrupamento de miseráveis era bem um índice dela. Havia negras, brancas, mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo relaxamento e pelo seu triste fado.
Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando, do fundo de uma tasca, lhe gritaram:
— Olá! Olá! "Seu" Cassi! Ó "Seu" Cassi!
Insensivelmente, ele parou para verificar quem o chamava. De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado:
— Que é que você quer?
A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e fez com olhar de desafio:
— Então, você não me conhece mais, "seu canaia"? Então você não "si" lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você...
Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço:
— Não fuja, não, "seu" patife! Você tem que "ouvi" uma "pouca" mas de "sustança".
A esse tempo, já os freqüentadores habituais do lugar tinham acorrido das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia homens e mulheres, que perguntavam:
— O que há, Inês?
— O que te fez esse moço?
Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos afeitos a brigas e assassinatos. Quis falar:
— Eu não conheço essa mulher. Juro...
— "Muié", não! - fez a tal Inês, gingando. - Quando você "mi" fazia "festa", "mi" beijava e "mi" abraçava, eu não era "muié", era outra coisa, seu "cosa" ruim!
Um negro esguio, de olhar afoito, com um ar decidido de capoeira, interveio:
— Mas, Inês, quem é afinal esse moço?
— É o "home qui mi" fez mal; que "mi" desonrou, "mi pois" nesta "disgraça".
— Eu! - exclamou Cassi.
— Sim! Você "memo", "seu" caradura! "Mi alembro" bem... Foi até no quarto de sua mãe... Estava arrumando a casa.
Uma outra mulher, mas esta branca, com uns lindos cabelos castanhos, em que se viam lêndeas, comentou:
— É sempre assim. Esses "nhonhôs gostosos" desgraçam a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente... Malvados!
Cassi ouvia tudo isso sem saber que alvitre tornar. Estava amarelo e olhava, por baixo das pálpebras, todas as faces daquele ajuntamento. Esperava a polícia, um socorro qualquer. A preta continuava:
— Você sabe onde "tá" teu "fio"? "Tá" na detenção, fique você sabendo. "Si" meteu com ladrão, é "pivete" e foi "pra chacra". Eis aí que você fez, "seu marvado", "home mardiçoado". Pior do que você só aquela galinha-d'angola de "tua" mãe, "seu" sem-vergonha!
Cassi fez um movimento de repulsa e que a rapariga não perdeu.
— "Oie" - disse ela, para os circunstantes -; ele diz que não é o tal. Agora "memo se acusou-se", quando chamei a ratazana da mãe dele de galinha-d'angola... É uma "marvada", essa mãe dele - uma "véia" cheia de "imposão" de inglês. Inglês, que inglês...
Soltou uma inconveniência, acompanhada de um gesto despudorado, provocando uma gargalhada geral. Cassi continuava mudo, transido de medo; e a pobre desclassificada emendava:
— "Tu" é "mao", mas tua mãe é pior. Quando ela descobriu "qui" eu "tava" com "fio" na barriga, "mi pois" pela porta afora, sem pena, sem dó "di" eu não "tê pronde í". E o "fio" era neto dela e ela "mi" tinha criado... Vim da roça... Ah! Meu Deus! Se não fosse uma amiga, tinha posto o "fio" fora, na rua, que era serviço... Deus perdoe a "tua" mãe o que "mi" fez "i" a meu "fio", "fio" deste "qui tá i", também, Deus lhe perdoe!
E a pobre negra abaixou-se para apanhar a barra da saia enlameada, a fim de enxugar as lágrimas com que chorava o seu triste destino, talvez mais que o dela, o do seu miserável filho, que, antes dos dez anos, já travara conhecimento com a Casa de Detenção...
Graças à intervenção do dono da tasca, que tinha com o guarda de ronda o compromisso de manter a ordem no "reduto", o ajuntamento se desfez, e Cassi pôde continuar seu caminho. Por despedida, porém, ainda levou uma surriada das mulheres, que o descompunham em baixo calão, enquanto Inês imprecava:
— "Marvado"! Desgraçado! Caradura! Hás de "mi pagá", "seu canaia!"
Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou, compôs a fisionomia, apalpou o dinheiro na algibeira e fez de si para si:
— Acontece cada uma! Para que havia de dar esta negra... Felizmente, foi em lugar que ninguém me conhece; se fosse em outro qualquer - que escândalo! Os jornais noticiariam e... Não passo mais por ali e ela que fosse para o diabo!... Fico com o dinheiro em casa.
Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça, considerando que um seu filho, o primeiro, já conhecia a detenção...