A recepção que tivera Cassi, na sua segunda visita, seca, hostil, quase sendo despedido à soleira da porta, ao contrário da primeira vez que fora à casa de Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e açulara-lhe o desejo de remover todos os obstáculos que se opunham à sua aproximação de Clara. Por exclusão, ele só viu duas pessoas capazes de lhe estarem atrasando seu "trabalho", começado com tanta rapidez e sem esforço. Quem eram? Só podiam ser Dona Margarida, por causa do "negócio" do Timbó; e o tal aleijado, que lhe lançara a indireta, em verso, de chamá-lo de burro.
Se na sedução, propriamente, ele não empregava absolutamente força, no que era o contrário dos conquistadores suburbanos, a ponto dos jornais noticiarem, de quando em quando, o desespero das vítimas que se fazem assassinas, para se defenderem de tão torpes sujeitos; Cassi, entretanto, quando no decorrer de suas conquistas, encontrava obstáculos, fosse mesmo da parte do próprio irmão da vítima em alvo, logo procurava empregar violência, para arredá-lo.
É bem de ver que ele sabia com quem se metia; mas, no caso, tratando-se de um quase inválido, a força a empregar seria mínima; e, no que toca a Dona Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la.
A sua força de valente e navalhista era mais fama do que realidade; mas tinha fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso um ascendente sobre os que, de boa-fé e honestamente, podiam prevenir as moças que ele cobiçava, não as prevenindo, não as avisando, não o desmascarando totalmente. Cheios de temor, deixavam o caminho franco ao modinheiro.
A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de quinta ordem, tinha uma oportuna teoria, condensada numa sentença: "Não se pode contrariar dois corações que se amam com sincera paixão."
Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a consideração de que não empregava violência nem ato de força de qualquer natureza, ele, na sua singular moral de amoroso-modinheiro, não se sentia absolutamente criminoso, por ter até ali seduzido cerca de dez donzelas e muito maior número de senhoras casadas. Os suicídios, os assassínios, o povoamento de bordéis de todo o gênero, que os seus torpes atos provocaram, no seu parecer, eram acontecimentos estranhos à sua ação e se haviam de dar de qualquer forma. Disso, ele não tinha culpa.
Para certificar-se quem era que, na casa do "carteiro", fermentava o seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar Lafões, em sua casa.
Lafões morava bem próximo do reservatório do Engenho de Dentro. Uma tarde, Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a essa estação, logo após o Méier, se interna para os lados da serra, toma ruas despovoadas e, por fim, a do Engenho de Dentro. O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de "tropa", talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso interior, pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos.
Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de carvoeiros de Jacarepaguá, da Serra do Mateus e outras localidades ainda com florestas aproveitáveis; e tínhamos uma imagem mais viva. Os tropeiros eram gente de sangue muito mesclado, ossudos, jarretes nervosos e finos, pés espalmados, às vezes de feições regulares, mas sempre cobertos de barbas maltratadas e de uma insondável tristeza. Não eram só homens feitos; havia crianças também, a guiar os burros em fila.
Quando o bonde apontava a sacolejar as suas ferragens, estourando que nem um besouro, avisando-os da sua presença próxima com o zunido contínuo do tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito de locomotiva, aqueles homens, vivendo tão perto da terra e da natureza espontânea, não deixavam de se assustar e tomar precauções, para sua segurança e dos seus pacientes animalejos. Encostavam bem a tropa a uma ribanceira lateral da rua, quando na encosta; ou afastavam-se para o lado, se havia terreno baldio e sem cerca, quando ela era planície; e ficavam pasmos, diante daquele monstro zunidor que se movia por intermédio de um grosso fio de arame. Os burros, quer num, quer noutro caso, permaneciam indiferentes e punham-se a roer a erva escassa do campo ou a pastar a folhagem que lhes dava sombra e crescia no alto da chanfradura do corte.
Chegou Cassi Jones à casa de Lafões quase à noite. Era uma pequena casa, mas bem tratada e limpa. O pequeno jardim na frente merecia cuidados e, no quintal, aos fundos, cresciam couves e repolhos, a dar saudades de um bom caldo à portuguesa.
Lafões, por aquelas horas, após o jantar, tinha por hábito pôr-se em camisa de meia, tamancos e calça, e completar a leitura do jornal que iniciara pela manhã. Sentava-se a uma cadeira de balanço, austríaca, que a punha bem junto à janela, tendo, à esquerda, uma cadeira, em que repousavam o isqueiro (não usava fósforos) e os cigarros "Fuzileiros".
Estava assim, naquela postura, e enrolava melhor um cigarro pacientemente, quando lhe bateram no portão de ripas de madeira. Ergueu um tanto o busto e, pondo um pouco a cabeça à mostra, quase rente ao peitoril da janela, perguntou:
— Quem é?
Reconheceu logo:
— É o Senhor Cassi.
Ergueu-se e foi ao encontro dele, abrindo a porta de entrada. Tomou- lhe o chapéu pelintra, a bengala ultra-aperfeiçoada e foi dizendo prazenteiramente:
— Por aqui? Sente-se, ora esta! Seja bem-vindo!
O rapaz sentou-se, respondendo:
— Muito obrigado, meu caro "Seu" Lafões.
— Por que não aparece mais vezes, Senhor Cassi? - continuou Lafões com amizade.
— Não tenho tido tempo. Nos dias da semana, são os negócios; nos domingos, não dou para os convites. Eu vinha aqui...
— Para quê, Senhor Cassi?
— Pedir-lhe uma informação.
— Qual é, Senhor Cassi?
— Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor está admitindo escreventes, para não sei que serviço extraordinário. O senhor não podia saber se isto é verdade?
— Pois não. Indago ao Braga, que é contínuo, vivo que nem azougue, e sabe de tudo que lá se passa - explicou Lafões.
— Quando posso vir buscar a resposta?
— Olhe, Senhor Cassi: amanhã, à tarde, não, porque tenho que ir à sessão da minha sociedade; mas, se tem pressa, pode vir depois de amanhã, logo pelas sete ou oito horas.
— Bem - fez Cassi, simulando contentamento. - Desde já agradecido. Como vão sua senhora e seus filhos?
— Bem. A mulher saiu mais o mais moço; foram a não sei que ladainha por aí. É um inferno! Estes padres têm invadido estes subúrbios com mais rapidez que os "turcos" de prestações. É dinheiro para esse santo, é dinheiro para as obras da igreja... Não posso mais! Edméia, porém, está lá no fundo do quintal. Quer tomar café, Senhor Cassi?
— É incômodo... Se a sua senhora estivesse, sim; mas...
— Não há incômodo algum. Edméia o aquece no espírito... Só se o Senhor Cassi não gosta aquecido?
— Gosto.
— Pois bem, vamos a ele - e gritou pela filha, com possante voz de homem são - Edméia! Edméia!
Não tardou em aparecer a filha. Era uma gentil menina de doze anos, risonha, com uma fisionomia redonda de traços firmes e finos, cabelos tirando para o louro, cortados à inglesa. Entrando, exclamou logo:
— Oh! Estava aqui "Seu" Cassi. Que surpresa! Não sabia...
Falou ao rapaz e este lhe disse a esmo:
— Há muito que não a via.
— É verdade, desde o dia de anos de Clarinha... Tem ido lá?
— Não tenho podido.
— Por quê? Parece que lá não gostam do senhor... Principalmente aquele "pé-pé"...
— Menina - ralhou-lhe o pai. - Não te metas a intrigar os outros... Vá aquecer o café e traze-nos duas xícaras. Vá.
Saindo a menina, Cassi julgou de bom alvitre, para preencher o fim verdadeiro de sua visita, dizer:
— Podem não gostar de mim. Mas a implicância é sem motivo. Nunca...
— Ora, Senhor Cassi, o senhor vai dar ouvido a crianças. Elas não sabem o que dizem.
— Agora, meu caro "Seu" Lafões, eu notei no dia da festa que o compadre do Senhor Joaquim dos Anjos não me tragava - disse Cassi.
— Isto se explica. Ele foi ou é poeta e tem em conta de coisa nenhuma os cantadores de modinhas. Lá na minha terra, os poetas dos fidalgos e das fidalgas não tragam os fadistas do campo, aos quais chamam de rústicos e outras coisas piores. Em cada ofício, há sempre disso. O senhor não vê como os cocheiros desprezam os barbeiros? Cocheiro que não presta é barbeiro. Marramaque, velho, doente, não sabe disfarçar o seu mau juízo pelos que apreciam o violão e o tocam, cantando modinhas.
— Mas... o "Seu" Joaquim?
— É que eles são compadres e amigos, meu caro Senhor Cassi. Está explicado.
Vieram as xícaras de café e a conversa tomou outro rumo. Falaram sobre as festas próximas do centenário da Independência, sobre a crise financeira, mas Cassi em nada disso pensava. Pensava em Marramaque, o audacioso aleijado, que queria se intrometer no seu amor por Clara. Pagaria bem caro. Despediu-se em breve e, lentamente, deixou-se ir a pé subúrbios abaixo. Eram estranhos aquele ódio e aquela obstinação. Cassi não era absolutamente, nem mesmo de forma elementar, um amoroso. A atração por uma qualquer mulher não lhe desdobrava em sentimentos outros, às vezes contraditórios, em sonhos, em anseios e depressões desta ou daquela natureza. O seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor - a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia ter mais nenhuma ligação especial; e procurava outra.
A sua instrução era mais que rudimentar; mas, assim mesmo, talvez devido a uma necessidade íntima de desculpar-se, gostava de ler versos líricos, principalmente os de amor. Não lia jornais, nem coisa alguma; mas, num retalho apanhado aqui, num almanaque acolá, num livro que lhe ia ter às mãos, sem saber como, conseguia ler alguns e os entender pela metade. Deles, desses sonetos e mais poesias que, por acaso, iam parar em seu poder, ele concluía, com a sua estupidez congênita, com a sua perversidade inata, que tinha o direito de fazer o que fazia, porque os poetas proclamam o dever de amar e dão ao Amor todos os direitos, e estava acima de tudo a Paixão. Vê-se bem que ele não sentia nada do que, poetas medíocres que o guiavam nas suas torpezas, falavam; e, sem querer apelar para grandes ou pequenos poetas, percebia-se perfeitamente que nele não havia Amor de nenhuma natureza e em nenhum grau. Era concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna de um criminoso nato - o que havia nele.
O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.
Em Cassi, nunca se dava disso. Escolhida a vítima de sua concupiscência, se, de antemão, já não as sabia, procurava inteirar-se da situação dos pais, das suas posses e das suas relações. Em seguida, tratava de encontrar-se com ela num baile ou uma sala de festas e impressioná-la com os seus dengues no violão. Se percebia que tinha obtido algum sucesso, esforçava-se em reiterar os encontros nos cinemas, nos bondes, nas estações, e, na ocasião propícia, pespegava-lhe a carta fatal. Isto tudo era feito com muita calma e discernimento, pacientemente, sem ser perturbado em nenhum movimento de impaciência ou arrebatamento. Se a moça ou a senhora aceitava-lhe os galanteios e as cartas, ele tinha o final como certo; se não, ele não perdia tempo, abandonava os esforços preliminares e esperava que outra mais suasória aparecesse.
No caso de Clara, ele não estava disposto a acreditar que se houvesse dado a primeira hipótese, porquanto lhe davam certeza disso o embevecimento com que o ouvira cantar, na noite da festa dos anos dela, e a insistência que mostrara em vir falar com ele, quando lhe foi à casa do pai pela segunda e última vez. O que lhe parecia, por indícios aqui e ali, é que alguém se havia interposto entre ele e ela, "entre dois corações que se amam", denunciando aos pais dela os seus maus precedentes de conquistador contumaz, de forma a trancarem-lhe aqueles as portas de sua casa, a ele, Cassi.
Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque, padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenir-se contra as "intrigas" do aleijado e arredá-lo de vez. Cassi sabia que, quase sempre, Marramaque parava na venda do "Seu" Nascimento, quando vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com outros, até que o negócio se fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por todos os motivos; Timbó não podia também, por ser muito conhecido na localidade, devido à surra que levara; Zezé Mateus era um idiota. Quem iria, então, sondar aquele terreno? O Arnaldo, que não era conhecido no local, nem sabidas eram as suas relações com ele. Muito a contragosto, dirigiu-se para a casa dos pais. Não tinha dinheiro que prestasse, para "escorvar" o jogo.
O seu "socavão" doméstico ficava bem debaixo da sala de jantar da casa, que aí acabava o seu corpo principal. As dependências restantes ocupavam um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu que na sala de jantar, além do pai, mãe e irmãs, havia alguém que não era de hábito e dissera, ouvindo-lhe os passos:
— Há alguém aí?
— É Cassi - dissera a mãe.
— Ele não sobe aqui? - perguntou a visita.
Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o velho Manuel de Azevedo explicava o fato em quatro palavras:
— Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo a honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse semelhante miserável sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua, foi devido à mãe.
— Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz dele, pode ser calúnia.
— É também o meu pensamento, Augusto - falou Dona Salustiana.
As moças se haviam calado por pudor, mas o velho Azevedo cortou de vez o argumento da mulher e do irmão:
— Você não leu esses papéis escritos à máquina, que mandaram a você, dois dias após você chegar, para o hotel?
— Li.
— Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas?
— Li, também, mas o tempo...
— Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu, infelizmente, pode assegurar isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho fez tudo isso. Não o posso negar em sã consciência. Se não posso...
Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa ia versar sobre ele, colocou-se de ouvido atento, embaixo da janela, nada perdendo e conseguindo ouvir esse trecho em que tomava parte o seu tio Augusto, irmão de seu pai, que, havia muito tempo, andava destacado numa alfândega do Norte. Quando o velho Manuel de Azevedo falou em papéis escritos à máquina, trazendo indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça, Cassi assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho surdo? Não era a primeira vez que tivera notícia da existência desse caderno misterioso e misteriosamente distribuído pelo correio. Dissera-lhe um investigador de uma delegacia suburbana que, logo que havia mudança de delegado ou de comissário, numa delas, o novo delegado ou o novo comissário recebia o tal caderno. Apavorava-lhe essa perseguição nas trevas, talvez segura, que, aos poucos, o ia minando. Tão indiferente era ele pela sorte de suas vítimas e tão estúpido se mostrara sempre em não compreendê-las, que não podia encadear raciocínios seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável, da remessa de tais cadernos.
Precisava fugir - era o que concluía; e ele se sentia ameaçado, não por duendes, mas por alçapões, homens mascarados, cárceres privados, suplícios, etc. - todo o arsenal do maravilhoso das fitas de cinema.
Entretanto, queria antes resolver o caso de Clara, que, apesar de tudo, considerava em meio.
Deitou-se e dormiu regaladamente, até ao alvorecer do dia. Logo que a luz do sol ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista nas suas gaiolas de galos de briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando milho tirado de uma lata que tinha em uma das mãos, e olhando todos aqueles bichos hediondos, com a ternura de um honesto criador, que revê o seu trabalho nas travessas pesquisas ou na doçura de olhar de seus cordeiros. Aos pintos, deu milho moído, triguilho, e só não deu ovo picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas horrendas aves era sincero: elas lhe faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e perguntou de si para si:
— Quanto valeriam ao todo?
Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos mil-réis e ele estava disposto a vendê-las, por esse preço, depois que a "coisa" estivesse acabada...
Veio tomar café no "socavão", onde a velha Romualda lhe trazia todas as manhãs. Era velha, e a sua velhice a defendia perfeitamente contra qualquer assalto de Cassi. Perguntou-lhe este:
— Meu tio ainda está aí?
— Quem é seu tio, nhonhô?
— Aquele moço que esteve ontem, à noite.
— Ah! Foi embora logo depois do chá.
Não trocaram mais palavras. Depois de servido o café e comido o pão com manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a xícara, e Cassi tratou de vestir-se e sair.
Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se com o pai, que, por isto ou por aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também por não poder suportar o desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa do que os xadrezes, por onde passara dezenas de vezes.
Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada Real, vinha no bonde de Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não deixava de um só dia ir "lá embaixo". Esperava sempre fazer um biscate e, quando não o fizesse, arranjar algum "magote" no trem.
Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o seu nariz de tromba de tapir, os seus olhos arredios e catadores, chegara; Cassi disse-lhe que dele precisava, às cinco horas, ali; e pagou-lhe o café.
— Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem os amigos. Cá estarei.
Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de colheita, Arnaldo chegou na hora marcada, ao ponto ajustado.
Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por "Seu" Meneses, que ele conhecia.
— Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.
— Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar, entre outros, o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele.
Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a caminho, mas a pé, para poupar o tostão do bonde. Chegou à venda de "Seu" Nascimento, teve duas decepções. Encontrara dois sujeitos, que o conheciam perfeitamente: um era um engenheiro inglês, Mr. Persons, de quem "abafara" uma capa de borracha, e o outro era o Alípio, que até o sabia da roda de Cassi.
Não se deu por vencido e, atravessando por entre Alípio e o velho Marramaque, que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou naturalmente:
— O senhor não conhece um velho dentista, por nome Meneses?
E acrescentou:
— Ele tem vindo aqui?
O taverneiro respondeu:
— Há dias que não - e, dirigindo-se aos circunstantes, por sua vez indagou: - vocês têm visto o doutor Meneses?
Todos, porém, responderam: não.
Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se, quando Mr. Persons perguntou-lhe:
— Sinhôr, vem cá!
Arnaldo fez-se jovial.
— Oh! "Seu" mister como vai?
— Não diga "Seu" mister, é "error". Bem... Onde está mia capa?
— Trago por esses dias, tenho me esquecido.
— Já é duas vezes que "sinhôr" diz isso. Eu precisa da capa.
— Não me esquecerei.
E saiu apressado. O negócio da capa fora simples. Persons não viera da cidade são de seu juízo e deixara a capa descansando no banco, ao lado, recostando-se na parede do carro. Pouco antes de certa estação, Arnaldo sentou-se a seu lado, no intento de carregar-lhe a capa. Ao pôr em prática o seu propósito, Persons despertou, mas só pôde dar com o furto, quando Arnaldo ia saindo do carro. Gritou: "minha capa". Um condutor ainda agarrou Arnaldo com a carga, mas, quando o Persons deu com o lugar em que estavam ambos, já o auxiliar o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por essa peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado por engano.
Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que ninguém vinha até às portas da venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam.
O mister já acabara de contar a história da capa, quando Alípio, em tom de comentário, dissera:
— Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa história de furtos nos trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi, para não prestar.
Marramaque acudiu:
— Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao compadre. O tal Trembó ou Tipó, como é?
— Timbó, fez Alípio.
— O tal de Timbó já conheço e já o apontei ao compadre. Por falar nisto, o senhor sabe, "Seu" Nascimento e meus senhores, o que recebi, há dias, pelo correio, na secretaria?
— Não - responderam todos, por sinais ou por palavras.
— A vida desse Cassi.
— Impressa?
— Não. Copiada à máquina de escrever, com fotografias dele, cópias de notícias dos jornais do tempo, indicação das datas dos processos e dos juízes e delegados - tudo!
— Quem lhe mandou? - perguntou Alípio.
— Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li e dei-a ao compadre, para se prevenir.
— Com uma boa garrucha - observou Nascimento.
— Ou revólver - obtemperou Marramaque.
Ouvindo tudo isto e percebendo que alguém se dirigia à venda, cuja hora de fechar não tardaria, Arnaldo deixou o lugar em que estava e correu ao encontro de Cassi, que devia estar no Engenho Novo.
Encontraram-se, e ele, no que não tinha o menor hábito, contou-lhe toda a verdade vista e ouvida.
Cassi nem Arnaldo não eram dados à bebida; mas o momento a pedia. Aquele convidou o seu dedicado companheiro a tomar uma garrafa de cerveja, o que fizeram quase sem conversar.
Acabada, pagaram e levantaram-se. Arnaldo procurou o seu rumo e Cassi meteu-se pela sombria Rua do Barão de Bom Retiro.
Embora não fosse tarde, já se ouviam os tiros que os suburbanos dão, de quando em quando, para afugentar os ladrões dos seus galinheiros.
Um estourou bem perto dele, e Cassi, fingindo-se calmo e sem apreensões, disse à meia voz:
— Ainda não foi desta vez.