Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa-fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua simplicidade, a maldade, a má-fé, a perversidade, a duplicidade dos homens lhe pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar numa criatura de Deus, que só topariam com elas os que lhes andassem à procura, para estudos e coleções.
A sua vida se havia desenvolvido até ali na maior boa-fé e, como houvesse sido feliz, no seu ponto de vista, os seus cinqüenta anos julgavam o mundo como um reino de paz, de concórdia, de honestidade e lealdade, apesar das notícias de jornais.
Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um e tentava ler qualquer coisa, logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse ferir-lhe o ouvido, não suportava e não lhe ia à inteligência. Não compreendia um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para que pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o "som", o "ouvido".
Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe; canto, mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados, apreciava muito; e um grande discurso, cujos primeiros períodos ele não seria capaz de lê-los até ao fim, entusiasmava-o, fosse qual fosse o assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de visão e o funcionamento do seu aparelho visual era limitado às necessidades rudimentares da vida.
Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não tocava em bandas nem em orquestras; mas tirava partes, instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum dinheiro com isso. Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos militantes, bebericavam, conversavam, falavam sobre a "Arte", as orquestras de cinemas, a música de tal peça ou daquela outra, relembravam colegas mortos; e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa, sempre com um rolo de papel de música.
Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó velho, nos frios, e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria piano. Flauta não era próprio, para uma moça; violino era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado no vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc.
Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem de repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que, adquirida uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria seus pais e seu marido, quando casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo de Dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em progresso, fazendo tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida.
A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira em ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o que ia ganhando algum dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.
Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida. Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a Cassi, era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo; mas - interrogava ela - quem diria que ele fizesse o mesmo em casa de seu pai?
Seu pai - pensava ela - estava bem empregado, relacionado, respeitado; ele, portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma família honesta, que tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não são culpados do que fazem; as moças são muito oferecidas...
Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara, na ingenuidade de sua idade e com as pretensões que a sua falta de contacto com o mundo e capacidade mental de observar e comparar justificavam, concluía que Cassi era um rapaz digno e podia bem amá-la sinceramente.
O padrinho, Marramaque, parecia-lhe seu inimigo. Sempre que podia, contava mais uma proeza, mais uma falcatrua de Cassi. Não lhe cansava o assunto.
Clara até tinha, às vezes, vontade de dizer a seu padrinho: "Padrinho, esse Cassi deve ser muito rico, porque compra a polícia, a justiça, para não ser preso. Olhe: se ele fosse condenado pela metade dos crimes que o senhor lhe atribui, estaria já na cadeia, por mais de trinta anos."
Ela se enganava, porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante cínico e ousado.
Vivia assim ansiosa e ofegante, querendo e não querendo ver o modinheiro; ora, convencendo-se de tudo que diziam dele; ora, não acreditando e apresentando ao seu próprio espírito dúvidas e objeções, quando Meneses veio tratar dos seus dentes, após umas fortes dores que a prostraram de cama.
Um certo dia, o pai lhe havia dado, ao sair, pela manhã, um trabalho de música, para copiar, de forma que, à tarde, estivesse pronto. Não era longo, mas exigia atenção. Depois do almoço, aí pelas onze horas, pôs-se a copiar, mas, subitamente, deu-lhe uma dor de dentes que a fez gemer e até chorar.
Engrácia, sua mãe, correu a acudi-la. Como sempre, porém, ficou estonteada, sem saber o que fazer, que paliativo dar; Clara, mal falando, disse-lhe que mandasse chamar Dona Margarida.
Em vindo esta, aplicou remédios caseiros, mandou buscar malva, pela criada que tinha em sua casa; fez Clara bochechar e foi-se para a casa tratar dos seus bordados e costuras.
Engrácia, porém, não se acomodava, andava de um lado para outro, impaciente que o marido chegasse. Todas as moléstias existentes, que a natureza cria, e os médicos, por desfastio, inventam, ela supunha poder ter sua filha.
Não havia nenhuma lucidez nos seus raciocínios, quando um acontecimento de aparência grave lhe tocava, e pior ficava, quando se tratava da filha.
O seu amor à Clara era um sentimento doentio, absorvente e mudo. Queria a filha sempre junto a si, mas quase não conversava com ela, não a elucidava sobre as coisas da vida, sobre os seus deveres de mulher e de moça. A não ser no caso de Cassi, que o seu instinto de mãe falara mais alto do que a sua inércia natural, nunca punha em prática uma medida eficaz que traduzisse amparo e direção de mãe na conduta da filha. Pensava, mas não chegava ao ato.
O dia inteiro, quase, passavam as duas mulheres metidas cada uma consigo mesma.
A mãe lavava a roupa no tanque, ao lado da casa; e a filha se encarregava dos arranjos domésticos. A cozinha era feita por ambas ou só por Clara, quando não tinha músicas do pai a copiar ou sua mãe tinha muita roupa na lavagem.
Joaquim, o Quincas, como o chamava a mulher, saía, nas primeiras horas da manhã, passava pela venda, fazia as encomendas, tomava um "calisto" e conversava um pouco com o "Seu" Nascimento.
— Não acredito que "ele" venha, nem também que o outro se repimpe no Catete.
— Seria bom para o senhor... - dizia Nascimento.
— O quê? Nem o conheço... Qual! Nada tenho com um nem com outro...
— Mas é seu patrício...
— Como o senhor é, como o outro é também. Somos todos brasileiros... Eu, "Seu" Nascimento, só cuido da mulher e da filha e, um pouco, da música.
— Por falar em música: que tal aquele Cassi?
— Quer que lhe diga uma coisa? Como músico, não vale nada. Dá cada cincada...
— Mas tem fama...
— A fama dele vem do dengoso, do meloso que ele põe no cantar, chegando a ser até uma indecência. Ele canta que parece estar num café-concerto, no meio de mulheres de vida airada...
— Por aí, apreciam-no muito.
— São essas meninas bobas, que não têm quem lhes abra os olhos... Olhe, "Seu" Nascimento, na minha casa ele não me põe mais os pés.
— Marramaque, seu compadre, já me tinha dito isto e...
— O compadre exagera muito. O compadre tem o seu ponto de honra de poeta... O senhor sabe; ele já figurou, escreveu em jornais e revistas, teve roda e convivência de certa ordem, não pode admitir que um quase analfabeto, como Cassi, tenha fama de artista... A culpa não é deste; é do nosso meio, que não tem instrução nem preparo.
— "Seu" Joaquim, o senhor já viu o caderno que mandaram a seu compadre sobre o tal Cassi?
— Já.
— Que pensa daquilo tudo?
— Se é verdade, ele merece a forca.
— Pois dizem que é. O senhor não sabe quem é a tia Vicência, que mora por aqui, na Rua da Redenção?
— Não.
— Conheço-a eu. Ela é pessoa da casa de Cassi e diz que tudo aquilo é verdade. Conta até mais detalhes.
— E quem é que espalha o tal caderno?
— É um oficial do Exército, homem preparado, parece que engenheiro, cuja mulher atual é aquela moça que Cassi desonrou, e a mãe matou-se por isso, há cinco anos.
— Quem lhe disse isso?
— Vicência. Ela conhece não só a família do violeiro, como muitas das vítimas. Diz que o marido dessa moça só lhe não dá cabo do canastro, para não fazer escândalo; mas, na primeira em que se meter, toma a peito a causa da vítima, seja quem for.
Joaquim dos Anjos ouviu isso, calou-se um pouco e, sem nada responder, recomendou:
— Não se esqueça de mandar, principalmente a lenha, que é precisa para o almoço. Estou na hora... Até logo!
Saiu, pensando nesse tal Cassi, que, por mais que quisesse esquecê-lo, sempre estava presente à sua memória, sempre estavam a relembrá-lo, como se fosse uma grande coisa, um homem notável e de posição. Que é que queriam dizer com isso? Preveni-lo? O carteiro sorriu intimamente: "Ele não ousará"! E pensou na sua garrucha de dois canos, com as quais se viaja em Minas, presente ainda do inglês, seu primeiro patrão.
Homem forte, leal, direito, Joaquim tanto tinha nos outros como em si uma confiança ilimitada. Não desconfiava, nem admitia que se desconfiasse; mas esse tal Cassi...
Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que tinha razão; mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras". Joaquim dos Anjos não tinha capacidade intelectual para tanto...
Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no trabalho, nas gratificações e nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o ponto, cumprimentou os colegas e chefes; e, à hora certa, tomou a correspondência a distribuir e lá correu para escritórios, casas de comércio, entregando cartas e pacotes.
Vinha tudo isto com nomes arrevesados: franceses, ingleses, alemães, italianos, etc.; mas, como eram sempre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-os mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes. Almoçava frugalmente e até às cinco executava o serviço, isto é, as várias distribuições de correspondência.
Terminado o trabalho, procurava os seus colegas de arte e, aí pelas cinco, cinco e meia, metia-se no trem para a casa.
Naquele dia, conforme o seu costume, preencheu-o todo assim, sem nenhuma discrepância ou variante, como se obedecesse a um programa. Quando chegou em casa, já se fazia escuro, e os lampiões da iluminação pública estavam acesos e prontos a suceder, consoante o seu poder, à soberba luz do sol, que ia morrendo, num crepúsculo cambiante e lento, por detrás das montanhas, que se destacavam num fundo de prata, de ouro e de púrpura, na parte do horizonte em que ele se escondia.
Veio-lhe abrir a porta a mulher, que, antes de mais nada, lhe foi dizendo:
— Ah! Quincas! Você não sabe como me vi atrapalhada, hoje, aqui... Se não fosse Dona Margarida...
— Mas o que houve, Engrácia?
— Clara ficou doente de repente, pôs-se a gemer, e eu, sem ninguém, não sabia o que fazer. Felizmente, gritei por Dona Margarida, que acudiu.
— Que é que ela teve, mulher?
— Dentes, Quincas; mas uma dor muito forte.
— Ora, você mesmo! Você é uma pamonha. Então dor de dentes é moléstia que assuste ninguém?
— É que você não viu.
— Vamos ver o que há?
Dirigiu-se para o quarto da filha, que tinha o queixo amarrado num lenço dobrado, e perguntou:
— Que houve, Clarinha?
— Nada. Tenho aqui um dente furado, que me dói de quando em quando. Hoje doeu-me mais fortemente, gemi e tive que me deitar. Felizmente o remédio que Dona Margarida me deu, fez passar a dor, mas tenho o queixo inchado...
— Não é nada?
— Penso que sim - disse Clara, e acrescentou: - olhe, papai, não pude passar a limpo a música.
— Não faz mal, eu mesmo passo.
Depois ajuntou, voltando-se para a mulher:
— É preciso levar essa menina ao dentista, Engrácia, enquanto está no começo.
— Dentistas! Deus me livre!
— Por que, mulher de Deus?
— Porque é casa de perdição, Quincas.
— Qual perdição, qual nada. Perde-se quem quer ou quem já está perdido.
— Você que a leve, Quincas. Não posso sair todo o dia... Você sabe que não posso andar muito...
— Eu não posso, pois tenho de ir para o serviço.
Pôs-se a pensar, olhando a filha deitada, com os doces olhos negros a interrogar o pai, quando lhe surgiu um pensamento:
— Vou chamar o Meneses. Ele não é formado, mas tem prática e pode certamente fazer o que se trata. Que acha, Engrácia?
— Acho bom, se ele vier em casa.
— Ele virá, pela manhã. Almoçará com vocês e dar-lhe-ei alguma coisa.
— Você quer, Clara? - perguntou o pai.
— Aceito e acho bom. Não é preciso sair e mamãe não se incomoda.
Foi assim que Meneses entrou a tratar dos dentes de Clara, fato de que tão oportunamente Cassi tivera notícias pelo doutor Praxedes, no Méier. Para o velho doutor Meneses foi uma salvação, porquanto, embora trabalhasse, não era pago ou o era mal e irregularmente. Com o carteiro, as coisas se passavam de outra forma; e, além disso, almoçaria todo o dia - vantagem que não era de desprezar.
Sabendo que Meneses estava todos os dias com Clara, Cassi, que havia resolvido pôr cerco à rapariga, tratou de aproveitar o estado de miséria, de abatimento moral em que estava o velho dentista, para realizar os seus inconfessáveis fins. Encomendou-lhe aqueles versos que deviam ser feitos por Flores e deu-lhe dinheiro, já prevendo que Meneses gastá-lo-ia e não obteria os versos. Tudo isto aconteceu; mas Meneses, quando, no dia seguinte, se lembrou da recusa de Flores e de ter gasto o dinheiro, não achou outro alvitre senão ele mesmo fazer os versos. Ficou o dia inteiro a martelar, a riscar, a emendar e, ao fim do domingo, tinha feito algumas quadras com mais ou menos sentido. Nunca, a bem dizer, fizera versos; mas, tendo corrido montes e vales, lidara com poetas e tinha o ouvido educado. De resto, escolhera o metro popular, a quadra de sete sílabas; e tanto fez que, pela tardinha, a poesia estava pronta, e o pobre velho ficou muito contente consigo mesmo, como se tivesse feito obra de vulto. Bebeu bastante e dormiu satisfeito. Havia cumprido a sua palavra de qualquer forma. Se os versos não eram de Leonardo Flores, eram dele. Não seriam tão bons; mas, pelo menos, desculpariam o gasto dos cinco mil-réis, que lhe remordia a consciência.
Na segunda-feira, à noite, depois de ter andado por toda a parte, com a sua velha mala de ferros de cirurgião-dentista, Meneses foi-se postar no botequim do Fagundes. Sentou-se, como de hábito, na última mesa, aos fundos, encostada à parede, com um jornal debaixo dos olhos e um cálice de parati na frente. Ele bebia aos goles, à vista de todos, sem vexame algum. Fazia-lhe mal, como mal faz a todo mundo; mas era solicitado a beber para se atordoar, para não se recordar, para não estar só com o seu passado, para afugentar o terror que a vida lhe inspirava, na miséria, quase indigência em que se achava, naquela idade avançada de mais de setenta anos, alquebrado, doente, sem uma amizade forte, sem um parente que o amparasse, sem uma pensão qualquer.
Cassi foi encontrá-lo engolfado na leitura do jornal:
— Pensei - disse ao sentar-se - que o doutor se havia esquecido.
Meneses, descansando o modesto pince-nez em cima da mesa, onde já havia posto o jornal, respondeu:
— Qual o quê! Sou homem de palavra... Demais, o senhor me havia dado o dinheiro, e, assim, o trato ficava mais sagrado.
Cassi tinha uma grande dificuldade em ser amável, tomar a entonação de voz conveniente, adaptar o olhar a ela, ajeitar adrede os músculos da face...
Não era capaz disso quando sincero, que fará quando falso! Todo ele era rude, metálico, grosseiro e áspero. Enfim, fez o que pôde e disse:
— Por isso, não, doutor! Eu não me lembrava de tal fato! Aquilo foi para uns beberiques... Arranjou?
— Arranjei; mas não com o Leonardo.
— Ele não quis ou...
— Não; estava bom. Como já lhe disse em certa ocasião, Flores é por demais orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao falar-lhe no "negócio", deitou-me um discurso enorme, dizendo que era isto e aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não vendia versos.
— Nem dados?
— Não lhe propus; mas estou certo que não daria. Pelo que disse, os versos que lhe saíam da cachola eram dele e só dele.
— E com quem arranjou?
— Fi-los, eu mesmo. Não serão...
— Vamos ver, doutor.
Meneses puxou, de dentro da algibeira do interior do fraque cinzento, um volumoso embrulho de papéis sebosos, procurou o que continha os versos, pôs o pince-nez e disse:
— Vou lê-los, para o senhor compreender melhor. A minha letra é muito ruim.
— Leia, doutor.
Meneses concertou os óculos, experimentou uma melhor posição para receber a luz e começou:
A minha Querida pena
Nas grades de uma prisão,
Mas o Amor lhe ordena
Sossego no coração.
O velho dentista ambulante, afinal, acabou e olhou interrogativamente o menestrel. Tinha este tomado um ar grotesco de entendido e olhava vago, simulando que ajustava pensamentos. Após ter Meneses perguntado o que achava dos versos, o manhoso violeiro disse:
— Não era bem isto que eu queria. Os versos, porém, não estão maus, antes são bons. Serve até para modinha... O doutor não sabe quem faça música para modinhas?
— Conheço o Joaquim dos Anjos.
— Ah! É verdade! Como há de ser? - perguntou Cassi, simulando embaraço.
— O senhor não se dá com ele?
— Dou-me; mas não tenho muita intimidade. Se fosse por intermédio da filha? Por que o doutor não pede?
— Posso pedir a ela; mas o padrinho - não sei por quê - não gosta do senhor. Se ele sabe...
Meneses arrependeu-se de ter avançado tanto, mas a sua vontade já era tão fraca que não soube, nem procurou meios e modos de fugir às conseqüências de sua confidência. Cassi aproveitou-se das aberturas do velho e disse:
— Sei; mas escrevo uma carta à Dona Clara a fim de que ela evite a má vontade do padrinho e que se saiba ser a modinha...
Meneses não pôde reprimir um movimento de espanto.
— Não tenha susto, doutor; absolutamente não malicie no que vou fazer. A carta será lida pelo senhor.
Meneses ficou mais seguro de si e continuou a beber com vontade, enquanto Cassi contava-lhe os seus ganhos extraordinários no cangueiro, jogo suburbano.
— Olhe, doutor - rematou ele -, quando precisar de algum, é só pedir.
O dentista já estava muito adiantado na embriaguez; e, ao ouvir aquilo, olhou, desejoso e mendicante, para o violeiro, que se apressou em ir ao seu encontro:
— Quanto precisa, doutor?
— Dois mil-réis, só.
— Não - disse Cassi, tirando um maço de notas da carteira -, leve cinco; e não se esqueça de estar aqui, amanhã, às sete horas. Preciso da música para breve.
Meneses foi para a casa, sem pensar no que havia prometido; e, como guiado por instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e acabou se deitando muito naturalmente no seu miserável canapé. Não quis comer; a embriaguez lhe havia tomado inteiramente. Despertou, no dia seguinte, sem saber o que tinha feito nas últimas horas em que estivera fora. Lembrava-se vagamente que parara no botequim habitual. Tendo saído para fora de casa, a fim de lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo, quando voltou, já encontrou sua irmã de pé a lhe dizer, como quase todas as manhãs:
— Não temos nada em casa, Juca.
Meneses não sabia se tinha ou deixava de ter dinheiro. Por desencargo de consciência, foi esgravatar as algibeiras. Encontrou um níquel de cruzado e pensou: "Bem! Para o café e o açúcar, já temos." Continuou a procurar, achou, dobradinha, no fundo de um bolso, uma nota de cinco mil-réis. Espantou-se. Quem lha teria dado? Cogitou, forçou a memória, enquanto a irmã resmungava:
— Juca, você não ouviu o que eu disse?
— Ouvi; espera, que estou procurando o "cobre".
Tanto forçou a memória, tanto combinou as vagas recordações, que toda a sua entrevista com Cassi foi recordada. Teve vontade de rasgar a nota, de dizer que não faria o prometido; mas já estava sem força moral, temia tudo, temia o menor sopro, o mais inocente farfalhar de uma árvore. Toda a criação estava contra ele, conjugava-se para perdê-lo - que podia fazer contra tudo e contra todos? E a miséria? E a fome? Se se revoltasse, que seria dele, sem futuro, sem emprego, sem amigos, sem parentes, doente? Era bem triste o seu destino... Onde estava a sua mecânica? Onde estava a sua engenharia? Amontoara livros e notas pueris, e nada fizera. Levara bem cinqüenta anos, isto é, desde que saíra da casa dos pais, a viver uma vida vagabunda de ciganos, sem nunca se entregar seriamente a uma única profissão, experimentando hoje esta, amanhã aquela. De que lhe valera isto? De nada. Estava ali, no fim da vida, obrigado a prestar-se a papéis que, aos dezesseis anos, talvez não se sujeitasse, para disfarçadamente esmolar o que comer com os seus parentes. Teve vontade de chorar, mas a irmã gritou-lhe do quintal:
— Achaste o dinheiro?
— Achei.
Respondeu assim, numa palavra, e deitou bem meio copo da aguardente, que sorveu toda quase de um só trago.
Meneses pensou ainda nos seus setenta anos desamparados, estéreis, e teve infinita dor de si mesmo, da miséria do seu fim. Que resolver sobre o caso de Cassi e da carta? Sacudiu os ombros e pensou de si para si: Que hei de fazer? As coisas me levaram a isso e...
Cassi veio ao botequim, munido da carta, que leu, conforme prometera a Meneses. Desgostoso, com aquele mau travo na consciência, o pobre dentista ambulante procurava, durante o dia, beber a mais não poder. Tinha chegado cedo em casa de Joaquim e, tendo-o ainda encontrado, pedira-lhe dinheiro. Almoçou, saiu e foi bebendo daí em diante em todo o botequim por que passava. Ao chegar à casa do Fagundes, tinha lá uma carta de um cliente. Abriu-a; mandava-lhe dez mil-réis, por conta de cinqüenta que lhe devia. Deu cinco mil-réis ao caixeiro, para guardar, e foi para a cidade. Aí não teve medida. Todos lhe pagavam, de forma que, ao se encontrar com o Cassi, não dava mostras, mas estava completamente sem discernimento.
O violeiro leu o que quis, fechou a carta e deu-a ao pobre velho. A sua resolução já estava tomada. Havia forçosamente de se entregar à sorte, aos caprichos da corrente da miséria, de dor, de humilhação que o arrastava. Ela o havia levado até ali; era inútil resistir. Entregou a carta a Clara. No dia seguinte, recebeu a resposta. Entregou-a a Cassi. Assim, durante um mês e tanto, ele foi o intermediário da correspondência dos dois. Já não tinha um movimento de revolta; resignara-se àquele ignóbil papel como a uma fatalidade que o destino lhe impusesse. Contra a força não há resistência, pensou ele; o mais sábio era submeter-se. Não esperava mais que Cassi lhe oferecesse dinheiro, pedia-o. No começo, o violeiro foi satisfazendo inteiramente os pedidos; depois, fazia-o pela metade; por fim, dizia que não tinha dinheiro e não lhe dava nada.
Meneses, porém, continuava passivamente a desempenhar o seu indigno papel. Se não o achava decente, conformava-se diante da sua atroz e irremediável miséria. Não se julgava mais um homem...
Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de quem recebe mensagens divinas. Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não serem, às vezes, entendidas, tão caprichosa era a ortografia delas. A filha do carteiro não via nada disso; esquecera-se até das más ausências que faziam do namorado. Para ela, ele era o modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com ele, com aquele Cassi da viola. Passava da alegria para o choro. A mãe notava-lhe essas alternativas de humor e fazia-lhe perguntas. Ela as respondia, malcriadamente, desabridamente. Relaxava o serviço ou não o fazia. Quase sempre, esquecia-se disso ou daquilo. Engrácia comunicou isto tudo ao marido. Joaquim disse então:
— É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma coisa... Antigamente, as suas cópias de música eram limpas e certas; agora, não. Vêm cheias de raspagens, erradas, borradas... Que terá ela? Vou levá-la a um médico - que achas?
— Talvez faça bem.
Daí a dias, Joaquim faltou à repartição e levou a filha ao doutor. Este a examinou e disse ao pai:
— Sua filha nada tem. São coisas da idade e do sexo... De distrações, passeios, convivência - é o que ela precisa... Em todo o caso, vou receitar...
Joaquim fez a necessária comunicação à mulher, que ficou de se entender com Dona Margarida, para fazer-se acompanhar da filha, sempre que tivesse de sair, ir a lojas, etc. Ele mesmo, Joaquim, levou-a no próximo domingo, a passear em Niterói.
O mar não fez bem à menina. Se a sua alma estava cheia de vago e de impalpável, com a vista do mar ficou absorta no infinito, no ilimitado do Universo.
De volta, chorou toda a noite sem saber por quê. Amanheceu de olheiras roxas, corpo mole, aborrecida de tudo e de todos. A vida lhe sabia a amargo. Ela não via como se a podia adoçar. Ao mesmo tempo, lembrava-se de Cassi e enchia-se de esperanças. Saiu com Dona Margarida. A alemã, muito mais sagaz que seus pais, adivinhou o seu mal e pô-la em confissão com habilidade. Tanto fez, que Clara lhe disse francamente a origem dos seus males.
— Mas este sujeito é um tipo indigno.
— Não, para mim. Estou crente que...
— Dizem tão mal dele...
— É porque ele se deixou apanhar, enquanto outros há por aí que... Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora quer se empregar e casar-se comigo.
Dona Margarida olhou firmemente para a moça, cravou bem os seus olhos perquiridores nos da rapariga; e fez de si para si:
— Será possível?
Apressou-se a contar a confissão de Clara à mãe. Engrácia odiava Cassi. Se, algum dia, tinha tido um sentimento forte, era esse de ódio ao violeiro. Não sabia bem como justificá-lo; mas tinha-lhe uma raiva, uma gana de morte. Quando Dona Margarida lhe narrou a confidência da filha, ela teve uma crise surda de rancor. Já não era só contra ele, mas contra a filha, que ela criara com tantos carinhos, tantos cuidados, para, afinal, vir a se "embeiçar" por aquele borra-botas, amaldiçoado por todos, até pelo próprio pai. Serenou e tomou a resolução de contar o fato, por sua vez, a Joaquim, antes que aquele perverso de modinheiro não lhes pespegasse alguma das dele.
Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar espanto. Não gostava também de Cassi. Era, para ele, homem morigerado e trabalhador, um capadócio, um desclassificado, réu de polícia, muitas vezes, de quem tanto mal se dizia; mas, se ele quisesse casar com a filha, apesar de todos os seus maus precedentes, não se oporia. Iria falar-lhe? Ou chamá-lo-ia em casa? Não seria melhor esperar?
Pensou e tomou o alvitre de pedir a opinião do compadre Marramaque. O antigo contínuo tinha um grande ascendente moral e intelectual sobre o ânimo do carteiro, que o obedecia cegamente. Tratou, portanto, de pedir-lhe conselho.
Naquele domingo, a partida de solo tinha se adiantado pela noite afora. Deviam ser onze horas quando resolveram a "dar com o basta". Jogavam na sala de jantar, onde se encontravam, além dele, Joaquim, Marramaque, Lafões e Dona Engrácia também. Clara já se recolhera ao quarto. Parecendo-lhe que a filha dormia, Joaquim resolveu decidir a coisa. Expôs primeiramente o estado nervoso da filha, os passos que tinha dado para tratá-la e chegou ao ponto agudo da questão. Por aí, Marramaque ergueu-se furioso:
— Pois, então, você, compadre, quer meter semelhante pústula dentro de sua casa? Você não sabe quem é este Cassi? Se o pai não quer saber dele, é porque boa coisa ele não é. Ele não só desonra a família dos outros, como envergonha a própria. As irmãs, que são moças distintas, já podiam estar bem casadas; mas ninguém quer ser cunhado de Cassi. Ele se diz sempre correspondido, que se quer casar, etc., para dar o bote. Quando fica satisfeito, escorrega pelas malhas da justiça e da polícia, e ri-se das pobrezinhas que atirou à desgraça. Você não vê que, se ele se quisesse casar, não escolheria Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? Sou teu amigo, Joaquim...
— É o que eu penso também - fez Dona Engrácia. - Ele pode achar muitas em melhores condições...
Clara, que ouvia tudo, chorando em silêncio, quis protestar e citar exemplos em contrário, que conhecia, mas se conteve.
Joaquim, que escutara calado a fala apaixonada do compadre, observou:
— Acho que você tem razão; mas, qual o remédio?
— É continuar... Como é que minha afilhada recebeu recados dele, comadre? - perguntou Marramaque a Dona Engrácia.
— Ela diz que foi uma amiga que lhe trouxe - respondeu a mulher do carteiro.
— Fresca amiga! - comentou rindo-se Marramaque. - O que há a fazer, Joaquim, é continuar no que está e fazer que ele saiba que você não vê com bons olhos a insistência dele junto à filha.
— Se ele teimar? - perguntou Engrácia.
— Publica-se nos jornais aquele folheto que recebi, vai-se à polícia, desmoraliza-se o tipo de uma vez; e ele que faça o que quiser.
Todos calaram-se. Lafões não precisou fazer isto, porque se havia mantido até então calado. O carteiro voltou-se para ele e perguntou-lhe:
— Que diz a isto, Lafões?
— Isso... isso é matéria delicada. Não sou da família e, por isso, não me julgo com o direito...
— Eu também não sou - acudiu Marramaque. - Estou só dando com franqueza uma opinião que me pediram; mas certo de que, Joaquim, se você permitir que esse tal sujeito entre aqui, eu, apesar do muito que devo a você, não ponho mais os meus pés na sua casa.
Levantou-se, tomou a bengala e saiu mergulhado na treva da noite, que estava bem escura, quase sem estrelas, caminhando devagar, no seu passo de capenga, até à sua modesta casa, onde chegou sem temor e tranqüilo de consciência.
Clara não pôde conciliar o sono. As idéias mais absurdas lhe passavam pela cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em matar-se... Enchia-se de raiva contra o padrinho. Por fim, resolveu relatar, por carta, tudo o que se passou ao namorado. Saiu do quarto, logo que percebeu que o pai já tinha ido para a repartição; tomou naturalmente a bênção à mãe, lavou-se e serviu-se do café matinal. Como não tivessem vindo as "compras", disse à mãe que ia copiar música, enquanto as esperava. Era um pretexto. O que ela escreveu, foi uma longa carta, narrando o que ouvira naquela noite a respeito dela e dele. Antes de Meneses começar a cuidar dos dentes, ela lhe fizera entrega da missiva, que o pobre velho, cheio de amargura, logo meteu na algibeira. Para que viver tanto? pensou ele, limpando os ferros numa toalha de alvura imaculada.
Inteirado do que acontecera, vendo os seus planos fracassarem por causa daquele "João Minhoca" e, ainda mais, com a ameaça de ver toda a sua escandalosa vida publicada nos jornais - Cassi encheu-se de fúria má e, na maior fúria, tomou a firme resolução de remover aquele trambolho de "aleijado", que estava sempre estragando os seus planos, com os quais até já tinha gasto bastante dinheiro. Não subiam as despesas a mais de cinqüenta mil-réis...
O seu furor foi grande; tanto que, ao ler, em voz baixa, a carta, ao lado de Meneses, no botequim, este lhe notou a profunda alteração de fisionomia que, subitamente, a leitura lhe havia produzido. Os seus olhos chamejavam, os dentes estavam rilhados e toda a sua natureza baixa, feroz e grosseira se revelava, num ríctus horrível.
Pagou alguma coisa que beber a Meneses e despediu-se, sem dizer mais nada.
Meneses continuou a sorver os seus consoladores "calistos" e a perguntar de si para si:
— Que há? Que haverá? Que haveria?
O que havia, era simples: Cassi premeditava simplesmente, friamente, cruelmente, o assassinato de Marramaque. Quando ele falou a respeito a Arnaldo, limitou-se a dizer: "Vamos dar-lhe uma surra." "Por quê?" perguntou o outro. Ele respondeu: "Esse velho está abusando de ser aleijado, para me insultar. Merece uma surra." Não iam sová-lo, sabiam os dois desalmados; iam matá-lo...
Era sábado, dia em que Marramaque se demorava mais na venda do "Seu" Nascimento. Chovia e a noite viera logo fechada e escura. Grossas nuvens negras pairavam baixo. As luzernas de gás, tangidas pelo vento, mal iluminavam aquelas torvas ruas dos subúrbios, cheias de árvores aos lados e moitas intrincadas de arbustos. Marramaque, vindo da repartição, deixara-se ficar até às oito, na venda. Por essa hora, despediu-se e tomou o caminho de casa. Para se ir ter a ela, por ali, preconiza-se, entre outras, uma rua já quase completamente edificada, que terminava numa ladeira deserta. De um lado, o esquerdo, havia um terreno baldio, cheio de moitas altas; do direito, grandes árvores dos fundos de uma chácara, cuja frente era na rua paralela. Além de deserto, esse trecho era por demais sombrio, sobretudo em noites como aquela.
Marramaque, debaixo de chuviscos teimosos, embrulhado numa capa de borracha, subiu a ladeira, para depois descer o barranco e, finalmente, chegar à casa. Quando estava no alto da pequena elevação, dois sujeitos tomaram-lhe a frente e disseram-lhe: "Capenga, você vai apanhar, para não se meter onde não é chamado." Não teve tempo de dizer coisa alguma. Os dois descarregaram-lhe os cacetes em cima, pela cabeça, por todo o corpo; e o pobre Marramaque, logo à primeira paulada, caiu sobre um lado, arfando, mas já sem fala. Malharam-no ainda com toda a força e raiva, sem dó nem piedade; e fugiram, quando lhes pareceu momento azado.
No dia seguinte, ao passarem os primeiros transeuntes, ele estava morto. E, assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da Silva Marramaque, que aos dezoito anos, no fundo de um "armazém" da roça, sonhara as glórias de Casimiro de Abreu e acabara contínuo de secretaria, e assassinado, devido à grandeza do seu caráter e à sua coragem moral. Não fez versos ou os fez maus; mas, ao seu jeito, foi um herói e um poeta... Que Deus o recompense!