I - II - III - IV - V - VI - VII - VIII - IX - X - XI - XII - XIII - XIV - XV - XVI - XVII - XVIII - XIX - XX - XXI - XXII - XXIII - XXIV - XXV - XXVI - XXVII - XXVIII - XXIX - XXX - XXXI - XXXII - XXXIII - XXXIV - XXXV - XXXVI - XXXVII - XXXVIII - XXXIX - XL - XLI - XLII - XLIII - XLIV - XLV - XLVI - XLVII - XLVIII - XLIX - L - LI - LII - LIII - LIV

Argumento

Descrição de GÁLIA — c. I — Tentam os helvécios invadi-la mas são derrotados por César em duas batalhas e os restantes compelidos a voltar à patria, donde tinham saído — c. 2-29 — Queixam-se os gauleses a César de Ariovisto, rei dos germanos, que ocupava o território dos Sequanos. Manda César embaixadores a Ariovisto para compor as coisas, mas em vão. c. 30-36. Marcha contra ele com as tropas a princípio desanimadas, depois alvoroçadas por exortação sua. Conferenciam os chefes dos dois campos, mas sem resultado algum. Recorre-se, por fim, à fortuna das armas, e recebendo grande perda, fogem os germanos da Gália c. 37-54.

A Gália está toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanios, a terceira pelos que na língua deles se chamam celtas, na nossa gauleses. Diferem todos esses povos, uns dos outros, na língua, nos costumes, e nas leis. Extrema os gauleses dos aquitanios o rio Garona; dos belgas, o Mátrona[1] e o Séquana[2]. De todos eles são os belgas os mais fortes, por isso mesmo que estão mais longe da cultura e polícia da província romana, e não vão lá a miúde mercadores, nem lhes levam coisa que lhes enerve o vigor; e vizinham com os germanos[3], que habitam além do Rim, e com quem andam continuamente em guerra. Por esta mesma causa excedem também os helvecios[4] em valor aos mais gauleses; pois contendem com os germanos em refregas quase quotidianas, quando ou os repelem de suas fronteiras, ou nas próprias fronteiras desses fazem a guerra, A parte ocupada pelos gauleses tem princípio no rio Rodano; limite, no Garona, no Oceano, e nas fronteiras dos belgas; toca também no Rim pelo lado dos sequanos[5] e dos helvecios; e inclina ao setentrião. Os belgas[6] começam nas extremas fronteiras da Gália; estendem-se até a parte inferior do Rim; e olham para o setentrião e o sol nascente. A Aquitania extende-se do rio Garona aos montes Pirineus e à parte do Oceano que beija a Espanha e olha por entre o ocaso do sol e o setentrião.

Foi Orgetorix o maior potentado entre os helvecios por sua linhagem e riquezas. Levado da ambição de reinar, fez uma conjuração da nobreza, no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, e persuadiu à sua cidade[7] que saísse do país com todas as forças, dizendo ser facílimo assenhorearem-se os helvecios do império das Gálias, visto como em valor excediam a todos os mais gauleses. E persuadiu-lho tanto mais facilmente, que de todos os lados se vêm os helvecios estreitos[8] pela natureza do lugar; de uma parte, pelo Rim, mui largo e profundo rio, que os extrema dos germanos; de outra, pelo Jura, monte altíssimo, que se interpõe entre eles e os sequanos; de outra enfim, pelo lago Lemano[9] e rio Rodano, que deles extrema a nossa província. Originava-se daí poderem estender-se menos, e menos facilmente fazer guerra aos vizinhos; o que, para gente tão belicosa, era ocasião de grande mágua. Atentando pois, no seu tão avultado número, e na tão transcendente glória de seus feitos militares, reputavam acanhado seu território, que se extendia duzentos e sessenta mil passos em comprimento e cento e oitenta mil em largura.

Compenetrados disto, e movidos da autoridade de Orgetorix, resolveram aprestar o que respeitava à emigração, comprando quanto mais bestas e carros, fazendo quanto mais sementeiras para não faltar pão na jornada, e estabelecendo paz e amizade com as cidades[10] vizinhas. Assentando bastar-lhes para isto um biênio, confirmam por lei a emigração para o terceiro ano. A levá-lo a efeito designa-se Orgetorix que se encarrega da negociação com as cidades vizinhas. Partido neste pressuposto dentre os seus, a Castico, filho de Catamantaledes, sequano de nação, cujo pai fora rei dos sequanos muitos anos, e honrado com o título de amigo pelo Senado do povo romano, persuade assuma na sua cidade a realeza dantes exercida por seu pai; também a Dunorix, heduo[11] de nação, irmão de Diviciaco, o maior potentado então entre os seus, e mui popular, persuade tente o mesmo, dando-lhe sua filha em casamento. Demonstra-lhes ser mui fácil realizar a empresa, sendo ele rei dos helvecios que ninguém contestava serem os mais poderosos dos gauleses, assegurando-os de que com seus cabedais e exércitos lhes havia conciliar a realeza a eles. Induzidos por este discurso, dão promessa e juramento entre si, esperando poder, com a usurpação da soberania, assenhorear-se da Gália toda por meio dos três mais poderosos e valentes povos dela.

Denunciado aos helvécios, obrigam-no eles, conforme a usança, a defender-se preso: condenado, era a pena ser queimado vivo. No dia designado para a defesa, faz Orgetorix cercar o tribunal de todos os seus até dez mil, bem como de grande número de clientes e devedores, e por eles exime-se violentamente da obrigação de responder em juizo. Pretendendo a cidade indignada sustentar o seu direito pelas armas, e apelidando para isso os magistrados multidão de homens dos campos, morre neste meio tempo Orgetorix não sem suspeita, na opinião dos compatriotas, de se haver dado morte a si.

Depois da morte dele resolvem-se nada obstante os helvecios a emigrar, como tinham assentado. Quando se julgam para isso aparelhados, põem fogo a todas as suas cidades em número de doze, as suas aldeias no de quatrocentas, aos mais edifícios particulares, e a todo o trigo que não haviam de levar consigo, para que, tirada a esperança de regresso à patria, se achassem mais hábeis a arrostar todo gênero de perigos, provendo-se cada um de farinha e vitualhas para três meses. Aos rauracos[12], tulingos[13] e latobrigos[14], vizinhos seus, persuadem que, queimadas suas cidades e aldeias, emigrem conjuntamente com eles; e aos boios que tendo passado o Rim, e invadido o território norico[15], conquistaram Noreia, associam-nos a si como aliados.

Havia somente dois caminhos, pelos quais podiam sair de casa[16]; um através dos sequanos[17], estreito e difícil, por entre o monte Jura e o rio Ródano, por onde mal passariam carros um a um; ficava-lhe porém à cavaleiro o monte altíssimo, em modo que dos desfiladeiros podiam mui poucos embargar-lhes o passo: o outro pela nossa província, muito mais fácil e expedito, pois que, por entre as fronteiras dos helvecios e as dos alobroges[18] de pouco pacificados, corre o Ródano que em alguns lugares se vadeia. Extrema cidade dos alobroges e vizinha às fronteiras dos helvecios é Genebra que por uma ponte a estes se liga. Aos alobroges, por que ainda não pareciam bem dispostos em favor dos romanos, supunham ou haver de mover ou forçar a lhes concederem passagem por suas terras, Aparelhado tudo para a partida, designam o dia em que se haviam de reunir todos na margem do Rodano. Era esse o quinto antes das Calendas de abril (28 de março), sendo cônsules Lucio, Pisão e Aulo Gabinio.

Comunicado a César o intentarem eles fazer passagem pela nossa província, dá-se pressa a partir de Roma, e, encaminhando-se à grandes jornadas para a Gália ulterior, chega a Genebra. Ordena as maiores levas de soldados pela província toda, porque só havia nela uma legião; e manda cortar a ponte de Genebra. Sabedores da chegada dele, deputam-lhe os helvecios os mais nobres da cidade, a cuja frente vinham Nameio e Verucloecio com esta embaixada: "Que tencionavam passar pela província sem fazer mal, pois nenhum outro caminho tinham, e lhe pediam o permitisse de bom grado." César, que tinha em lembrança haverem os helvecios morto ao cônsul Lucio Cassio, desbaratado e feito passar por baixo de jugo o seu exército, não vinha na permissão; nem tão pouco acreditava que forças hostis se abstivessem de, em sua passagem pela província, ofender e fazer mal. Contudo, para dar espaço a se reunirem as levas que ordenara, respondeu aos embaixadores que tomaria tempo para deliberar, e viessam pela resposta nos idos de abril (a 13 desse mês).

Entrementes, com a legião que consigo tinha e as levas chegadas da província, desde o lago Lemano por onde corre o Rodano, té o monte Jura, que extrema os sequanos dos helvecios, levanta em espaço de dezenove mil passos uma muralha de dezeseis pés de alto, guarnecida de um fosso. Concluída a obra, dispõe por ela presídios em castelos fortificados, para mais facilmente poder tolher-lhes o passo, se, seu mau grado dele, tentassem passar. Quando chegou o dia aprazado aos embaixadores, e voltaram a saber da resposta, declarou-lhes formalmente que, segundo o costume e exemplo do povo romano, a ninguém podia conceder passagem pela província, acrescentando que, caso tentassem fazê-lo por força, estava aparelhado para vedar-lho. Decaídos desta esperança, fazem os helvecios diversas tentativas para romper, uns em canoas unidas e jangadas fabricadas em grande número, outros pelos vaus do Rodano, onde a profundidade do rio é menor, ora de dia e mais vezes de noite; repelidos, porém, quer pela resistencia da fortificação, quer pelas armas e bravura dos soldados, desistem por fim da empresa.

Restava o caminho através dos sequanos, por onde não podiam, mau grado destes, passar em razão dos desfiladeiros. Não podendo obter por si o consenso dos sequanos, enviam embaixadores ao heduo Dunorix, para que, por intercessão sua, lho alcance deles. Era Dunorix mui acreditado com os sequanos por sua largueza e popularidade, e amigo dos helvecios, porque tinha casado com a filha de Orgetorix dessa cidade, e ambicionando a realeza entre os seus favorecia empresas arriscadas, para ter quanto mais cidades ligadas a si por benefícios, Encarrega-se, pois, da negociação, e alcança dos sequanos permissão para passarem os helvecios pelas fronteiras deles[19], fazendo com que se dêm reféns reciprocamente: os sequanos, para que aos helvecios não tolham o passo; os helvecios, para que passem sem fazer mal, nem ofender.

Comunicado a César o tencionarem os helvecios fazer passagem pelas fronteiras dos sequanos e heduos[20] para as dos santones[21], que não distam muito dos tolosates[22] cidade situada na província, entendia que, se tal acontecesse, havia de ser com grande perigo do sossego da província, que teria por vizinha em campos sumamente ubertosos a essa gente belicosa e inimiga do povo romano. Assim, prepondo o seu lugar tenente Tito Labieno à fortificação que fizera, parte para a Itália a toda a pressa, alista ali duas legiões, tira de seus quartéis mais três que invernavam nos arredores de Aquileia, e com estas cinco legiões marcha para a Gália pelos Alpes, caminho mais curto. Aí tentam os centrones[23] graiocelos[24], e caturiges[25] embargar o passo ao exército, ocupadas as alturas. Depois de os rechaçar em muitos recontros, de Ocelo[26] que é o extremo da província citerior, chega com sete dias de marcha às fronteiras dos voconcios[27] na província ulterior; daí abala com o exército para as dos alobroges; dos alobroges para os segusiavos[28] que são os primeiros além do Rodano ao sair da província.

Já haviam os helvecios transposto as gargantas e fronteiras[29] dos sequanos, e chegados às dos heduos devastavam-lhes os campos. Não podendo defender-se a si e seus haveres, mandam os heduos embaixadores a César implorar-lhe auxílio nestes termos: "Que eles sempre tinham servido ao povo romano de maneira que, sendo quase expectador o nosso exército, não deviam ser seus campos talados, seus filhos cativados, suas cidades conquistadas." Ao mesmo tempo os heduos ambarros, amigos e consangüíneos dos heduos, fazem a César sabedor que eles, despovoada a campanha, dificilmente repeliriam das cidades a força dos inimigos. Da mesma forma os alobroges, que tinham aldeias e possessões além do Rodano, fugindo buscam amparo em César, demonstrando que, além do solo do terreno, nada mais lhes resta. Comovido com tais estragos, não espera César que, consumidas todas as fortunas dos aliados, penetrem os helvecios até os santones.

É o Arar[30] um rio, que pelas fronteiras dos heduos e sequanos se dirige o Rodano com placidez tal, que não se pode distinguir com a vista para qual das duas partes corre: passavam-no os helvecios em jangadas e pontes de barcas. Sabedor pelos exploradores de terem eles já passado três partes das tropas além deste rio, e testar quase a quarta aquém deles, César, partindo dos arraiais na terceira vela da noite com três legiões, alcança aos que ainda não haviam transposto o rio; e atacando-os de improviso, quando embaraçados e desprevenidos, faz neles grande mortandade, fugindo e acolhendo-se o restante aos vizinhos bosques. Chamava-se Tigurino[31] este cantão, sendo que toda a cidade Helvecia em quatro cantões se acha dividida. Este mesmo, o único que saira da pátria em tempo de nossos país, havia morto o cônsul Lucio Cassio, e feito passar por baixo de jugo o seu exército. Assim ou fosse caso, ou providência dos deuses imortais, a parte da cidade Helvecia que ocasionou insígne calamidade ao povo romano, foi também a primeira a sofrer o castigo. Nisto não só vingou César a pública ofensa, mas ainda a particular, porque na mesma batalha em que mataram a Cassio, haviam também os tigurinos morto ao seu lugar tenente Lucio Pisão, avô de Lucio Pisão, sogro dele, César.

Para poder alcançar as restantes tropas dos helvecios, manda, depois desta batalha, fazer uma ponte no Arar, e por ela passa o exército. Abalados com tão repentina vinda, vendo fizera César num dia o que mal tinham eles conseguido em vinte, o passar o rio, enviam-lhe os helvecios embaixadores, a cuja frente se notava Divicão, antigo caudilho seu na guerra contra Cassio. Falou ele a César nesta substância: "Que, se o povo romano fizesse com os helvecios paz e amizade, haviam os helvecios de ir para onde, e permanecer aonde o quisesse César; mas, se persistisse em guerreá-los, tivesse em lembrança o antigo desastre do povo romano, e o valor dos helvecios — Por haver de improviso atacado um cantão, quando os que tinham passado o rio não podiam socorrer os seus, nem se ensoberbecesse ele tanto, nem os desprezasse a eles, que mais haviam aprendido de seus passados a combater com denodo, que a armar ciladas e traições — Não fosse, pois, ocasião para que o lugar em que haviam feito alto, servisse de monumento no porvir, tomando nome da calamidade dos romanos e destruição de seu exército."

A isto respondeu César: "Que não lhe restava a menor dúvida, porque conservava muito em lembrança o que mencionavam os helvecios, e tanto mais, quanto menos causa dera a tal o povo romano, que, se tivesse consciência de havê-los ofendido, facilmente se acautelaria; — fora porém enganado, porisso mesmo que, não tendo praticado coisa de que se houvesse de arrecear, não julgava dever temer sem fundamënto — Mas, ainda quando quisesse esquecer a antiga ofensa, podia também apagar da memória as recentes, de tentarem passar a força pela nossa província, e devastarem o território aos heduos, ambarros e alobroges? — Quanto a se gloriarem tão insolentemente de sua vitória, e admirarem de haver ele por tanto tempo suportado a ofensa impunemente: que os deuses imortais, para ser mais dolorosa a mudança de fortuna aos homens, costumavam às vezes conceder aos maus, que queriam castigar, maior soma de felicidades e impunidade mais duradoura; que, nada obstante, se lhe dessem reféns para fiança de que haviam de cumprir o prometido, aos heduos satisfação das ofensas a eles e seus aliados feitas, e igualmente satisfação aos alobroges, ele faria com eles paz e amizade." Divicão replicou: "Que os helvecios tinham aprendido de seus passados, não a dar, mas a receber reféns, como bem o sabia o povo romano." E com isto retirou-se.

No seguinte dia levantam campo. Faz César outro tanto; e para observar a marcha do inimigo, manda diante toda cavalaria, havida da província, dos heduos e seus aliados, em número de quatro mil homens — Pica esta com demasiado ardor a retaguarda inimiga, e travando combate com a cavalaria dos helvecios em lugar desvantajoso, caem poucos dos nossos. Ensoberbecidos por terem com quinhentos de cavalo rechaçado tamanha força de cavalaria, entram os helvecios a fazer-nos rosto mais desassombradamente, provocando muitas vezes com sua retaguarda aos nossos da vanguarda, Vedava César aos seus o pelejar, contentando-se por então com tolher ao inimigo a possibilidade de rapinar, forragear e despovoar a campanha. Assim marcharam cerca de quinze dias, não medeiando mais de seis mil passos entre a retaguarda do inimigo e a nossa vanguarda.

No entanto, todos os dias requeria César aos heduos o trigo que tinham solenemente prometido; pois, achando-se a Gália, como antes se disse, situada sob o setentrião, não só não estavam maduras as messes por amor do frio, mas nem ainda abundava assás forragem nos campos. Do trigo, porém, que fazia transportar em barcos pelo Arar, não podia ele utilizar-se, por haverem os helvecios, de quem se não queria apartar, desviado a marcha do Arar. Remetiam-no os heduos de dia para dia; o trigo, segundo eles, estava-se aprontando, transportando, vinha chegando. Vendo tamanha demora, e achar-se iminente o dia em que convinha medir trigo aos soldados, convoca os principais gauleses, dos quais contava grande número no seu campo, e entre esses a Divicaco e Lisco que exercia o cargo de vergobreto, magistratura suprema e anual, que tem sobre os seus poder de vida e morte; acusa-os gravemente, porque, não podendo comprar-se, nem tão pouco colher-se nos campos, o não socorriam com trigo em ocasião tão urgente, tão próximos do inimigo, quando principalmente movido em grande parte pelas súplicas deles é que empreendeu a guerra; e queixa-se amargamente de estar sendo abandonado.

Abalado com este discurso de César, expõe Lisco o que antes calara: "Que havia alguns particulares que por sua grande autoridade com o povo tinham mais poder, que os mesmos magistrados; e esses tais com discursos sediciosos despersuadiam a multidão de concorrer com trigo, dizendo que, uma vez que não podiam ser senhores da Gália, deviam os heduos preferir aos dos romanos o jugo dos gauleses, não duvidando que, vencedores dos helvecios, não houvessem os romanos de extorquir aos heduos a liberdade conjuntamente com o resto da Gália; — que pelos mesmos que não tinha força para coibir, era o inimigo informado de nossos planos e quanto se passava nos arraiais; — e só ele sabia com que risco, obrigado da necessidade, comunicava isto a César, e por isso guardara silêncio, enquanto lhe fora possível."

Bem via César ser por este discurso de Lisco indicado Dunorix, irmão de Diviciaco; não querendo, porém, que isto se aventasse em presença de muitos, despede a assembléia à pressa e retendo a Lisco, inquire dele, particularmente, o que dissera na reunião. Fala este mais livre e desassombradamente. Informa-se secretamente de outros e acha conforme a verdade:

"Ser Dunorix sumamente audaz, mui acreditado com o povo por sua liberalidade, desejoso de nova ordem de coisas, e muitos anos arrematante por baixo preço das portagens e mais rendas dos heduos, porque licitando ele, ninguém mais ousava fazê-lo, havendo com isso não só acrescentado sua fortuna particular, mas ainda adquirindo imensos cabedais para despender em larguezas e acercar-se sempre de grande força de cavalaria sustentada a sua custa; — ser mui poderoso assim entre os seus, como nas vizinhas cidades, e tanto que casou a mãe entre os bituriges[32] com o maior potentado dali[33], a si com mulher helvecia, e a irmã por parte de mãe e parentes em outras cidades; — mui afeiçoado aos helvecios e grande seu beneficiador por sua afinidade com eles, hostil por interesse próprio a César e aos romanos, pois fora com a vinda deles diminuido seu poderio, e restituído o irmão Diviciaco a antiga autoridade e honraria; sendo que, se ficassem mal os romanos, concebia suma esperança de ser rei com o auxílio dos helvecios, e, no dominio romano, não só perdia essa esperança, mas até a de conservar o poder que tinha." Inquirindo descobre também César: "Ser o princípio da derrota da cavalaria, no combate havido poucos dias antes, obra de Dunorix que comandava a cavalaria mandada pelos heduos a César; pois com a fuga dessa se aterrara a demais."

Acrescendo, pois, a estas suspeitas os fatos incontestáveis de ter proporcionado passagem aos helvecios pelas fronteiras dos sequanos, fazendo para isso com que se dessem reféns reciprocamente, de o haver praticado não só sem consentimento, mas nem ainda conhecimento de César e da cidade, e ser acusado pelo magistrado dos heduos, julgava haver assás fundamento ou para puni-lo ele mesmo, ou para ordenar à cidade que o punisse. A isto, porém, repugnava uma única coisa, que era ter encontrado em Diviciaco devoção suma para com o povo romano, benevolência extreme para com sua pessoa, egrégia lealdade, justiça e moderação; receava sobretudo ofendê-lo com o suplício do irmão. Assim, antes de tentar coisa alguma, manda chamar a Diviciaco; e, removidos os intérpretes quotidianos, por Caio Valerio Procilo, homem principal da província da Gália, amigo e confidente seu, se abre com esse, expondo tanto o que em sua presença se dissera de Dunorix na assembléia dos gauleses, como o que se referira deste em particular, e pede-lhe instância, não leve a mal, ou que ele lhe castigue o irmão, ou que ordene a cidade o faça.

Abraçando a César com muitas lágrimas, entrou Diviciaco a suplicar-lhe, nada ordenasse de grave contra o irmão, dizendo sabia ser tudo aquilo verdade, e ninguém concebia disso maior dor que ele, pois sendo o mais poderoso entre os seus e no resto da Gália, quando o irmão o era mui pouco por sua mocidade, o havia com seu crédito elevado, do que agora abusava este, não só para cercear-lhe a autoridade, mas até para perdê-lo; comovia-se, nada obstante, com o fraternal amor e a opinião dos homens; pois se alguma coisa grave viesse ao irmão da parte de César, ninguém de certo acreditaria que, sendo tal sua amizade com César, deixara de nisso ter também parte, donde resultaria ficar-lhe adversa a Gália toda. Prosseguindo ele em suas instâncias todo banhado em pranto, toma-lhe César a dextra, consola-o e pede-lhe, ponha termo às suplicas; porque tão singular amizade lhe votava, que tanto a ofensa da república, como a sua, ao seu querer e pedido dele de mui bom grado as remitia. Manda chamar a Dunorix, repreende-o em presença do irmão, enumerando os agravos que de seu procedimento tinham ele César e a cidade, admoesta-o a evitar toda a suspeita para o futuro, e acrescentando que por amor do irmão, Diviciaco, lhe perdoava o passado, põe-lhe vigias para saber o que faz e com quem fala.

No mesmo dia sabendo dos exploradores haver o inimigo acampado junto a um monte a oito mil passos de nossos arraiais, faz examinar a natureza do monte e sua subida em torno. Vindo no conhecimento ser fácil, à terceira vela da noite manda o lugar tenente pro pretor[34], Tito Labieno, com duas legiões e os guias conhecedores do caminho ocupar a cumiada ao monte, expondo-lhe de antemão seu plano. À quarta vela da noite, tendo enviado diante a cavalaria, marcha em pessoa ao inimigo pelo mesmo caminho que este tomara. Publio Considio que passava por militar mui experimentado, e servira no exército de Lucio Sila, e depois no de Marco Crasso, é mandado diante com os exploradores.

Ao romper d’alva, ocupada por Labieno a cumiada do monte, e distante César do inimigo mil e quinhentos passos, sem que fosse pressentida, nem sua vinda, nem a de Labieno, como depois soube dos cativos, corre Considio à desfilada anunciar-lhe estar pelo inimigo ocupado o monte, que desejara o fosse por Labieno, e havê-lo conhecido pelas armas e insígnias gaulesas. Conduz César suas tropas para um vizinho monte, e as forma em ordem de batalha. Labieno, como lhe fora ordenado, não combatesse, enquanto não visse as tropas de César perto do campo inimigo, para que dessem juntamente nele de todos os lados, senhor do monte abstinha-se de atacar, aguardando os nossos. Alto dia, enfim, veio César a saber dos exploradores, acharem-se não só os nossos de posse do monte, mas terem os helvecios levantado campo e haver-lhe Considio, cortado de terror, anunciado como visto o que não vira. Segue esse dia ao inimigo com o costumado intervalo, e acampa a três mil passos dele.

No seguinte, como faltavam sós dois dias para medir trigo ao exército, e não distava de Bibracte[35], a maior e a mais bem provida cidade dos heduos, senão dezoito mil passos, julgou dever entender no provimento de víveres, e desviando-se dos helvecios marchou em direitura à Bibracte. É isto logo denunciado ao inimigo pelos transfugas de Lucio Emilio, decurião da cavalana gaulesa[36]. Os helvecios, ou por entenderem que os romanos se retiravam cortados de temor, mui principalmente porque senhores das alturas os não haviam atacado na véspera, ou por confiarem poder tolher-lhes o provimento de víveres, mudada a resolução e a marcha, entram a picar e provocar a nossa retaguarda.

Em o notando, manda César a cavalaria sustentar o ímpeto dos inimigos, e marcha com suas tropas[37], para um vizinho monte. No meio deste, forma três linhas com as quatro legiões veteranas; no cume, posta à cavaleiro destas as duas legiões de próximo alistadas na Gaba citerior[38], e tropas auxiliares, enchendo todo de homens o monte; e ordena sejam as bagagens reunidas num ponto, e este defendido pelos que estavam postados nas alturas. Seguindo-o com todos os seus carros, reúnem também os helvecios num ponto as bagagens; e repelindo cerrados nossa cavalaria, sobem a investir nossa primeira linha ordenados em falange.

Removido primeiramente o seu, depois os cavalos de todos, para que, igualado o perigo, tirasse a esperança de fuga, exortando os seus, trava César a batalha. Arremessando os pilos do alto, rompem facilmente os soldados a falange aos inimigos; rota esta, arremetem contra eles espada em punho. Grande embaraço para a peleja era aos gauleses[39] o haverem-lhes os pilos varado e ligado de um golpe muitos escudos[40], de modo que, encurvado o ferro, o não podiam arrancar, nem pelejar assás comodamente, impedida a esquerda, e sacudindo constantemente o braço, desejavam muitos arrojar o escudo da mão, e pelejar a corpo descoberto, Afinal, desangrados pelas feridas, entram a recuar, retirando-se para um monte daí mil passos. Ganho o monte, e subindo trás eles os nossos, os boios e tulingos, que em força ao redor de quinze mil homens fechavam o exército inimigo, e compunham o corpo de reserva, atacando os nossos na investida pelo flanco aberto, começam de involvê-los, o que notado dos helvecios, que se haviam retraído ao monte, carregam de novo, e restauram a batalha. Fazem então frente os romanos para duas partes, opondo aos vencidos e retraídos a primeira e segunda linhas, a terceira aos que atacavam pelo flanco.

Assim combate-se encarniçadamente, indecisa largo tempo a vitória. Não podendo por fim sustentar o impeto dos nossos, acolhem-se uns ao monte como haviam começado a fazê-lo, passam-se outros a seus carros e bagagens; pois, combatendo-se desde uma hora da tarde até véspera, ninguém em todo esse tempo viu costas ao inimigo. Pelejou-se ainda até alta noite juntos às bagagens, porque fazendo dos carros tranqueiras, arremessavam do alto dardos contra os nossos e deles os feriam através das rodas com zagaias e zargunchos. Depois de combater-se largo espaço, apoderam-se os nossos de carros e bagagens, sendo aí aprisionados a filha e um dos filhos de Orgetorix. Restaram desta batalha uns cento e trinta mil homens, que marchando constantemente essa noite toda, chegaram em quatro dias às fronteiras dos lingones[41], sem que os nossos os pudessem seguir, demorados pelas feridas dos soldados e sepultura dos mortos. Preveniu César aos lingones, que os não socorressem com trigo, nem outra alguma coisa, declarando-lhes que, se o fizessem, os teria na mesma conta que aos helvecios. Três dias depois, os segue em pessoa com todas as tropas.

Forçados a render-se pela necessidade de tudo, deputam-lhe os helvecios embaixadores, que o encontram no caminho, lançam-se-lhe aos pés, e lhe pedem paz com muitas súplicas e lágrimas, Mandados aguardá-lo no lugar, aonde então estavam, obedecem. Depois de aí chegar, exige-lhes César reféns, armas, escravos para eles fugidos. Enquanto estas coisas se procuram e apresentam, mete-se de permeio a noite; e cerca de seis mil homens do cantão chamado Verbigeno[42], ou temendo ser supliciados, depois de entregues as armas, ou induzidos da esperança de salvação, porque em tamanha multidão de rendidos esperavam ou poder sua fuga ser oculta, ou totalmente ignorada, abalando à prima noite dos arraiais dos helvecios, marcham para o Rim e confins dos germanos.

XXVIII

editar

Mal o sabe, ordena César àqueles por cujas terras foram, que os procurem e reconduzam se querem com ele justificar-se. Obedecido, aos reconduzidos tem em conta de inimigos; a todos os mais, depois de entregues reféns, armas transfugas, os toma debaixo de sua proteção. Aos helvecios, tulingos[43] elatobrigos[44] determina, voltem aos países, donde haviam partido; e porque, destruídas absolutamente as novidades, nada tinham em casa com que ocorrer à fome, ordena aos alobroges lhes forneçam trigo e a eles mesmos, restabeleçam as cidades e aldeias queimadas. Fá-lo principalmente por não ficarem devolutas as terras dos helvecios, para que, por amor da fertilidade do solo, não passassem das suas para elas os germanos que habitam além do Rim, vizinhando assim com a província da Gália e os Alobroges. Quantos ao boios, solicitando os heduos guardá-los em suas fronteiras, por serem mui esforçados, lho permite; e estes lhes concedem terras, e depois os mesmos foros e liberdade de que gozavam.

Foram nos arraiais dos helvecios encontradas e levadas a César, tábuas escritas em caracteres gregos, as quais continham a relação nominal dos que haviam saido da pátria, tanto homens em estado de pegar em armas, como meninos, velhos e mulheres. Perfaziam os helvecios o número de duzentas e sessenta e três mil cabeças; os tulingos, o de trinta e seis mil; os latobrigos, o de quatorze mil; os rauracos, o de vinte e três mil; os boios o de trinta e duas mil. O número total dos que podiam pegar em armas era de noventa e dois mil, e o dos de todos os sexos e idades, de trezentos e sessenta e oito mil. O total dos que depois voltaram à patria foi, segundo o censo ordenado por César, de cento e dez mil.

Terminada a guerra dos helvecios, vieram os principais de quase todas as cidades da Gália dar parabéns a César, significando-lhes que, posto entendessem ter o povo romano debelado os helvecios por antigas ofensas deles recebidas, fora todavia isso não menos útil à terra da Gália, que aos romanos; porquanto haviam os helvecios abandonado seu país em estado mui florescente com desígnio de assenhorear-se da Gália por conquista, e escolher para residência a comarca que de toda ela julgassem a mais oportuna e fértil, fazendo as demais cidades tributárias suas. Pediram-lhe levasse a bem convocarem uma reunião de toda Gália[45], para dia aprazado, pois tinham requerimentos a fazer-lhe de acôrdo comum. Outorgado, marcam o dia da reunião, e obrigam-se com juramento a não divulgá-lo, senão a quem por deliberação comum fosse resolvido.

Despedida a reunião, os mesmos principais das cidades, que tinham estado com eles antes, tornaram a vir ter com César, pedindo-lhe uma conferência secreta sobre a sua particular, e a salvação comum dos gauleses. Impetrado[46], lançam-se todos aos pés de César, conjurando-o com lágrimas: "Que não importava menos ficar em segredo o que lhe iam revelar, do que alcançarem o que desejavam; porquanto, se não houvesse segredo, ficavam expostos a suportar as maiores angústias." Orou por eles o heduo Diviciaco nestes termos: "Que em duas facções estava a Gália toda dividida, de uma das quais tinham os heduos o principado, e da outra os arvernos[47]; e, disputando-se elas a supremacia muitos anos, acontecera socorrerem-se os arvernos e sequanos de germanos mercenários; e, passando destes primeiramente o Rim uns quinze mil, depois mais, quando em sua barbária e ferocidade foram tomando gosto a fertilidade da terra, polícia e abundâncias dos gauleses, existiam ora na Gália cerca de cento e vinte mil — Que com esses haviam primeira e segunda vez travado batalha os heduos e seus apaniguados, e recebido vencidos grande calamidade, perdendo toda nobreza, todo senado, toda cavalaria, pelas quais batalhas e perdas alquebrados se viram eles, dantes os mais poderosos da Gália por seu esforço, aliança e amizade com os romanos, forçados a dar aos sequanos em reféns os mais nobres da cidade, obrigando-se com juramento a não exigir os reféns, nem implorar auxílio ao povo romano, nem recusar viver sob o perpétuo jugo e sujeição dos mesmos — Que de toda a cidade dos heduos era ele o único que nunca pudera ser induzido a jurar, nem dar seus filhos em reféns, sendo porisso obrigado a fugir da cidade e ir à Roma implorar auxílio ao senado, visto como nem por juramento, nem reféns se achava ligado — Mas ainda pior sucedera aos sequanos vencedores do que aos heduos vencidos, porque o rei dos germanos, Ariovisto, em suas fronteiras deles[48] fizera assento, ocupando-lhes a terça parte das terras, as melhores da Gália, e os mandava agora sair de outra terça parte, por lhe haverem chegado vinte e quatro mil harudes[49], aos quais era mister preparar terras e mansão — Que dentro em poucos anos aconteceria serem expulsos da Gália todos os gauleses, e passarem o Rim todos os germanos, pois nem o terrão germano era para comparar em bondade com o gaulês, nem este com aquele bárbaro costume de viver — Que, depois de vencer os gauleses em Magetobria[50], se tornara Ariovisto tão soberbo e tirano, que exigia em reféns os filhos dos mais nobres, e os castigava com todo gênero de tormentos, quando não obedeciam a seu menor aceno ou vontade; e era bárbaro, iracundo, violento, a ponto de não poder seu jugo ser mais tempo suportado — Se César e os romanos lhes não valessem, teriam os mais gauleses de emigrar, como os helvecios, em procura de outras terras e habitações, remotas dos germanos, fosse qual fosse a fortuna que os aguardasse; e, se suas queixas chegassem aos ouvidos de Ariovisto, tinham certeza que havia ele de acabar em tormentos a todos os reféns — Que, com sua autoridade e a do exército, sua recente vitória, e o nome romano, podia César fazer com que não passasse o Rim maior multidão de germanos, e pôr toda Gália à coberto das violências de Ariovisto."

Depois deste discurso de Diviciaco, entram todos os que estavam presentes, a pedir auxílio a César com grande pranto. Nota, porém, César que só os sequanos não faziam como os mais, mas olhavam para a terra, cabisbaixos e tristes. Admirado inquire-lhes a causa: E nada responderam os sequanos, permanecendo calados na mesma tristeza. Perguntando-lho mais vezes, sem lhes poder arrancar palavra, responde o mesmo heduo Diviciaco: "Que tanto mais miserável e grave era, que a dos mais, a condição dos sequanos, porque sós nem ainda ocultamente ousavam queixar-se, nem implorar auxílio, temendo a crueldade de Ariovisto ausente, como se presente fosse; pois os mais podiam subtrair-se-lhe fugindo, os sequanos, porém, que o haviam recebido em suas terras, e cujas cidades estavam todas em poder dele, tinham de suportar-lhe todas as cruezas.

XXXIII

editar

Inteirado disto, anima César os gauleses, prometendo-lhes tomar o negócio a peito, pois grande esperança concebia que, demovido por seus beneficios e autoridade, havia Ariovisto pôr termo às iniquidades. Depois disso impeliam-no a chamar o negócio a si, tomando-o na devida consideração, outros valiosos motivos, dos quais era o principal ver sob o jugo germano escravizados os heduos, tantas vezes honrados pelo senado com o nome de irmãos e consanguíneos, e os reféns destes em poder de Ariovisto e dos sequanos; o que, sendo tamanho o poderio dos romanos, reputava mui desairoso à si e à república. Via por outro lado ser perigoso para os romanos acostumarem-se, pouco e pouco, os germanos, a passar o Rim, e afluir, em grande multidão na Gália; porque estes bárbaros não se haviam por certo de conter em sua ferocidade, que, depois de ocupar a Gália, não invadissem, como os cimbros e teutões, a nossa província e daí a Itália, principalmente sendo o Ródano a única extrema entre os sequanos e a província; ao que entendia dever quanto antes ocorrer-se. Demais, tais espíritos e sobranceria se havia o mesmo Ariovisto arrogado, que já não era para tolerar.

Julgou, pois, conveniente mandar embaixadores a Ariovisto, pedir-lhe escolhesse lugar acomodado para conferenciarem; porque tinha a tratar com ele negócio de suma importância, tanto a República, como a ambos. A esta embaixada respondeu Ariovisto: "Que se ele necessitasse o que quer que fosse de César, iria procurá-lo; assim, se César lhe queria alguma coisa, viesse ter com ele — Demais, não ousava ir sem exército às partes da Gália ocupadas por César, nem podia reunir exército sem grande abastecimentos e aparatos — Muito se admirava, porém, que tivesse ou César ou o povo romano de ver absolutamente com a sua Gália por ele conquistada."

Recebida tal resposta, manda-lhe César nova embaixada concebida nestes termos: "Que, pois, obrigado por tamanho benefício seu e do povo romano, como ser em seu consulado honrado pelo Senado com o título de rei e amigo, lhe retribuía por todo agradecimento a ele e ao Senado, recusar-se a uma conferência, sem a menor consideração com sua pessoa, nem com o bem público, eis o que dele exigia: — primeiro, não passar mais aquém do Rim multidão alguma de homens para a Gália; depois, restituir os reféns que tinha dos heduos, e permitir aos sequanos restituirem livremente os que dos mesmos também possuíam; nem empecer, nem fazer guerra aos heduos e seus aliados — Que, se nisso viesse, César e o povo romano teriam com ele perpétua paz e amizade: senão, não havia César desprezar os agravos dos heduos, pois decretara o Senado no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, que todo o que tivesse o governo da província da Gália, protegesse os heduos e mais amigos dos romanos, quando fosse possível fazê-lo sem gravame da República."

A isto respondeu Ariovisto: "Que era direito da guerra imperar o vencedor à bel prazer sobre o vencido; nem segundo o ditame de outrém costumava o povo romano fazê-lo mas por alvedrio seu; e se ele não prescrevia aos romanos a maneira, por que haviam de usar de seu direito, não deviam também os romanos estorvá-lo quando usava do seu — Que os heduos, tendo tentado a fortuna das armas, tornaram-se, depois de vencidos, tributários seus; e grande injustiça praticava César, agorentando-lhe com sua vinda os rendimentos, — Que não havia de restituir os reféns aos heduos, nem fazer-lhes guerra a eles e seus aliados, enquanto persistissem no concertado, pagando-lhe o tributo anual; mas, se o não fizessem, de nada lhes havia de valer o nome fraterno do povo romano. E quanto a dizer César, que não desprezaria os agravos dos heduos, ninguém combatera com ele sem ficar destruído; esperimentasse-o, quando quisesse, e conheceria qual era o valor dos germanos invencíveis e adestrados nas armas, a ponto de se não abrigarem debaixo de teto por espaço de quatorze anos."

XXXVII

editar

Na mesma ocasião em que esta resposta se transmitia a César, chegavam-lhe embaixadores não só dos heduos, mas também dos trevicos[51]: — Queixavam-se os heduos, de nem ainda com reféns poderem comprar a paz de Ariovisto, pois estavam as suas fronteiras[52] sendo assoladas pelos harudes, recentemente transportados à Gália: — Os treviros, de haverem acampado junto à margem do Rim, com ânimo de passar o rio, os cem cantões dos Suevos[53], capitaneados pelos irmãos, Nasua e Cimberio. Gravemente comovido com isto, entende César que não há tempo a perder, porque se às antigas tropas de Ariovisto se reunisse o novo enxame dos suevos, menos facilmente poderia resistir-lhes. Assim, feito as pressas provimento de víveres, dirige-se a grandes marchas contra Ariovisto.

XXXVIII

editar

Tendo avançado caminho de três dias, recebe aviso de que marchava Ariovisto com todas as tropas a ocupar Vesonção[54], a maior cidade dos sequanos, e havia ganho três jornadas além de suas fronteiras. Entendia César dever a todo custo prevenir tal ocupação: porquanto havia nesta cidade suma abundância de tudo que é mister para a guerra, e era ela tão fortificada por sua situação, que oferecia a maior possibilidade de fazer prolongar a campanha, porque o rio Dubis[55], torneando-a como à volta de compasso, a cinge quase toda, e o espaço por ele não compreendido, de cerca de seiscentos pés, é fechado por um alto monte cujas raízes são de um e outro lado, beijadas pelas margens do rio. Fazendo do monte cidadela, prende-o a cidade uma muralha. Para aqui se dirige César a grandes marchas noite e dia, ocupa a praça[56], e a guarnece de tropas.

Enquanto se demora poucos dias em Vesonção para abastecer-se de víveres, inquerindo os nossos e apregoando os gauleses e mercadores, serem os germanos de grande corpulência, incrível esforço e exercício em armas, à ponto de não poderem os gauleses suportar-lhes no combate nem a catadura nem o olhar sequer, apoderou-se tal terror do exército, que não pouco perturbava o entendimento e ânimo a todos. Nasceu este, a princípio, dos tribunos dos soldados, prefeitos e outros, que acompanhando a César por amizade, quando partiu de Roma, deploravam a gravidade do perigo, por não terem grande prática da guerra. Deles pediam a César permissão de retirar-se, inventando algum pretexto honesto para fazê-lo; deles ficavam por vergonha, para evitar a suspeita do medo. Estes porém não podiam compor o rosto, nem por vezes reter as lágrimas: escondidos nas tendas, ou choravam sua má fortuna, ou deploravam com os amigos o perigo comum. Pelo campo todo se faziam testamentos. Com as vozes e o temor desses, aos poucos se iam turbando os mesmos que grande experiência tinham da guerra, soldados, centuriões e oficiais de cavalaria. Os que queriam parecer mais corajosos, diziam temer, não o inimigo, mas os desfiladeiros e imensos bosques que se interpunham entre eles e Ariovisto, ou a carência de provisões pela dificuldade dos transportes. Alguns até prediziam a César que, quando mandasse levar campo e estandantes, o soldado lhe não havia de obedecer nem desalojar, possuído de temor.

À vista de tamanho pânico, faz César uma reunião de oficiais em que são admitidos os centuriões de todas as graduações[57]; e extranha-lhes severamente entenderem dever pesquisar, ou examinar para onde, ou com que fim fossem dirigidos, acrescentando: "Que tendo em seu consulado Ariovisto solicitado a amizade do povo romano com todo empenho, porque razão se supunha deixaria tão sem fundamento de permanecer nela? — Que ele César estava persuadido de que, apreciando sua proposta e a equidade das condições oferecidas, não havia Ariovisto de enjeitar-lhe a amizade nem a dos romanos — Caso, porém, fosse tão furioso e insensato, que nos declarasse guerra, que era o que temiam? Ou porque deixavam de confiar no próprio valor, ou na perícia do general? — Que em tempo de nossos pais fora este inimigo experimentado, quando, com não menor glória do exército, que do general, derrotara Caio Mano os Cimbros e Teutões; e ainda há pouco o fora em Itália, na guerra dos escravos germanos, já então auxiliados com alguma tática militar de nós aprendida — Daí se podia conhecer quanto valia a constância, pois aos que algumas vezes temeram desarmados, os venceram depois armados e vencedores. Que estes finalmente eram os mesmos germanos, muitas vezes combatidos, e não poucas vencidos, até em sua própria casa, pelos helvecios que não puderam todavia resistir ao nosso exército; e os que se deixavam impressionar da derrota e fuga dos gauleses, deviam ver que Ariovisto, fatigando-os com a procrastinação da guerra, encerrado muitos meses nos arraiais e paues, sem dar cópia de si, e acometendo-os de súbito, quando já debandados desesperavam a batalha, mais os vencera por estratagema, que valor; — mas nem esse mesmo esperava que nosso exército se deixasse surpreender pelo ardil, que lhe sortira bom efeito com bárbaros inexperientes — Que os que disfarçavam o temor com a carência de viveres e os desfiladeiros do caminho, obravam arrogantemente, parecendo ou desconfiar da capacidade do general ou prescrever-lhe o dever — Que tinha muitos a peito o abastecimento do exército: pois os sequanos, leucos[58], e lingones[59], lhe forneciam trigo, e já as messes estavam maduras nos campos; do caminho seriam eles próprios em breve os juizes. Quanto a não obedecerem, nem levarem estandartes[60], nada com isso se movia; porque sabia terem-se os generais a quem não obedecera o exército, ou infelicitado perdendo batalhas, ou maculado com criminosa avareza: — que de sua limpeza de mãos dava testemunho sua vida inteira, de sua felicidade a guerra contra os helvecios — Que assim o que havia de fazer daí a dias, ia fazê-lo já, que era levantar campo na quarta vela da próxima noite, para saber quanto antes o que podia mais com eles, se o pudor e o dever ou o medo — E se ninguém o quisesse seguir, havia, nada obstante, marchar só com a décima legião, e essa lhe serviria de coorte pretoriana." Era esta a legião a que César mais comprazia, e em cujo valor mais confiava.

Maravilhosa foi a mudança operada nos ânimos por este discurso, que fez nascer em todos sumo alvoroço e ardor guerreiro. A décima legião foi a primeira que, pelos tribunos dos soldados, rendeu graças a César, por haver dela formado ótimo conceito, e confirmou estar prontíssima a marchar. Depois, também as demais legiões, por intermédio dos tribunos dos soldados e centuriões das primeiras graduações, lhe deram satisfação nestes termos: "Que nunca duvidaram, nem temeram, nem reputaram seu o comando, mas do general." Aceita a satisfação, e por Diviciaco, o gaulês de sua maior confiança, explorado o melhor caminho para levar o exército por campos com um rodeio de mais de sessenta milhas, parte na quarta vela da noite, como determinara; e ao sétimo dia de marcha não interrompida, sabe dos exploradores distarem das suas as tropas de Ariovisto coisa de vinte e quatro milhas.

Ciente da vinda de César, envia-lhe Ariovisto embaixadores a dizer: "Que convinha em ter a conferência dantes pedida, porque havendo César chegado para mais perto, contava podê-lo fazer sem risco." Não rejeitou César a proposta; e já supunha Ariovisto tornado a melhor conselho, pois oferecia de boamente o que recusara rogado, e concebia grande esperança de que em atenção aos benefícios dele e do povo romano recebidos, e à vista da equidade do que lhe exigia, havia desistir da pertinácia. Foi para daí a cinco dias marcado o da conferência. E como neste ínterim se enviavam recíprocas embaixadas, exigiu Ariovisto que César não levasse infantaria alguma à conferência, porque receava ciladas da parte deste, mas fossem ambos acompanhados de cavalaria, sendo que de outra forma não havia de vir. César que desejava remover todo e qualquer obstáculo à realização da conferência, mas não ousava confiar sua salvação à cavalaria gaulesa, entendeu ser o mais conveniente tirar-lhe os cavalos, e montar com eles a décima legião que era a de sua maior confiança, para, em caso de necessidade, contar com socorro quanto mais amigo; o que feito, disse não sem graça um soldado desta: "Que César fazia mais do que prometia, pois tendo prometido fazer da décima legião guarda pretoniana, a alistava na cavalaria."

Havia uma vasta planície, e nela um cômoro assás grande. Distava o lugar, quase espaço igual de ambos os acampamentos. Para ali se dirigiram a conferenciar, como estava convencionado. César postou sua legião montada a duzentos passos deste cômoro. A cavalaria de Ariovisto fez alto a distância igual. Chegados aí, exordiou César, mencionando os benefícios seus e do Senado a Ariovisto, como fora honrado com o título de rei e amigo, e magnificamente remunerado, o que a bem poucos coubera em sorte, pois tinham os romanos por usança concedê-lo unicamente aos mais assinalados serviços; — e todos esses favores conseguira por mera liberalidade sua e do Senado, porque não tinha motivo justo, nem plausível, para solicitá-los, Representou-lhe mais quão antigos e justos eram os fundamentos da amizade dos romanos com os heduos, de quais, quantos, e quão honoríficos decretos do Senado haviam estes sido objeto, e como em todo tempo, ainda antes de procurarem nossa amizade, exerceram a supremacia na Gália — Que era uso e costume do povo romano o querer que seus aliados e amigos não só nada perdessem em seus foros, mas fossem ainda acrescentados em preponderância, dignidade, honraria. Como pois se havia tolerar fosse arrancado aos heduos o que trouxeram com sua amizade quando se aliaram aos romanos? Apresentou depois as mesmas condições que havia proposto por seus embaixadores — Que não fizesse guerra nem aos heduos, nem a seus aliados; restituísse os reféns; e, se não podia mandar parte dos germanos para seu país, não consentisse passarem o Rim outros de novo."

A isto pouco respondeu Ariovisto, espraiando-se sobre seu mérito e virtudes nesta substância: "Que não de motu próprio, mas rogado e convidado pelos gauleses, se aventurara a passar o Rim, deixando pátria e parentes não sem grandes esperanças e promessas; que tinha na Gália domicílio e reféns concedidos pelos mesmos, e pelas leis da guerra percebia o tributo que aos vencidos costumavam impor os vencedores — Que não fora ele quem fizera guerra aos gauleses, mas os gauleses a ele, vindo atacá-lo e acampando contra ele todas as cidades da Gália[61]; — e essas numerosas tropas foram todas por ele destroçadas e vencidas numa batalha — Se queriam fazer nova experiência, estava pronto a pelejar; mas se queriam paz, era iníquo recusarem o tributo que até aí haviam pago — Que a amizade do povo devia ser-lhe de honra e proveito, não prejuízo; e neste presuposto a solicitara — Se o povo romano lhe tirasse os tributários, remitindo-lhes o tributo, de tão boamente lhe havia de enjeitar a amizade, como a procurara — Quanto a passar a Gália multidão de germanos, o fizera para amparar-se, não para atacar a Gália; e disso era testemunho o não ter vindo, senão rogado, e o não ter atacado, mas repelido o ataque — Que primeiro, que os romanos, viera ele à Gália; pois nunca dantes havia nosso exército transposto os limites da província romana. Que era o que lhe queria? porque penetrava em seus domínios? — Que esta Gália era província sua, bem como aquela outra nossa; e assim como lhe não devia ser permitido invadir nossas fronteiras, assim também éramos injustos intrometendo-nos em sua jurisdição — Quanto a serem os heduos apelidados irmãos pelo Senado, não era ele tão bárbaro e inexperiente do que ia pelo mundo, que não soubesse que nem os heduos auxiliaram aos romanos na guerra contra os alobroges, nem os romanos aos heduos na que estes com ele e os sequanos tiveram — Que o ter César exército na Gália com capa de amizade, suspeitava ser para oprimi-lo, e se dali se não retirasse com o exército, havia tê-lo em conta, não de amigo, mas de inimigo; pois faria, se o matasse, coisa agradável a muitos nobres e principais de Roma, como sabia dos mensageiros que lhe os mesmos enviavam, e podia com isso comprar a proteção e amizade de todos eles: — ele porém, se César se retirasse, deixando-lhe a livre posse da Gália, havia remunerá-lo, fazendo sem trabalho nem risco do mesmo César todas as guerras que quisesse feitas[62].

Muito discorreu César para mostrar não poder desistir da pretenção, por não ser próprio dele e do povo romano desamparar aliados beneméritos, nem ser a Gália mais de Ariovisto do que dos romanos. Que por Quinto Fabio Maximo foram vencidos os arvernos e rutenos[63], a quem perdoara o povo romano sem os reduzir a província, nem impor-lhes tributo — Se convinha atender à antiguidade, o império romano era o mais justo na Gália; se à autoridade do Senado, a Gália a quem permitira vencida reger-se por suas leis, devia ser livre.

Emquanto isto se passa na conferência, é César avisado de que os cavaleiros de Ariovisto se chegavam para perto do cômoro, e cavalgando contra os nossos, lhes arremessavam pedras e dardos. Põe César termo ao dizer, e retirando-se para os seus, ordena-lhes nem um só tiro façam aos inimigos. Pois, posto via haver de ser sem risco da legião escolhida o combate com a cavalaria, entendia contudo não dever travá-lo, para que, rechaçados os inimigos, não se dissesse depois haverem sido cercados na conferência com quebra da fé pública. Mal se espalhou pelo vulgo dos soldados com que arrogância se houvera Ariovisto, pretendendo vedar-nos a Gália, ter sua cavalaria atacado os nossos, e ser isso causa de romper-se a conferência, maior foi ainda a alacridade e o ardor de pelejar, que se apoderou do exército.

Dois dias depois manda Ariovisto esta embaixada a César: "Que desejava tratar com ele do que começara a tratar-se, e não fora ultimado; — e ou marcasse dia para nova conferência, ou, senão, lhe deputasse algum lugar-tenente seu." Não julgou César dever ter outra conferência, mui principalmente por não se poderem abster os germanos na passada de fazer tiros aos nossos. Deputar-lhe um lugar-tenente dos seus fora expô-lo a grande risco entre tais bárbaros. O que pareceu mais conveniente, foi enviar-lhe Caio Valerio Procillo, filho de Caio Valenio Caburo, moço de excelentes partes, cujo pai fora por Caio Valerio Flaco agraciado com o foro de cidadão romano, pois não só era de sua inteira confiança, e sabedor da língua gaulesa, já mui familiar a Ariovisto, pelo longo uso, mas não dava também na pessoa ocasião aos germanos de desrespeitar-nos, e juntar-lhe por colega Marco Mecio[64] que fora hóspede de Ariovisto. A estes, pois, ordenou fossem saber o que lhe ele queria, e lho viessem relatar. Assim que os viu no acampamento, entrou Ariovisto a bradar diante de seu exército: "Porque é que vinham a ele? Se não eram espias?" E sem lhes permitir explicar-se os manda carregar de cadeias.

XLVIII

editar

Levanta no mesmo dia o campo e o vem assentar junto de um monte a seis mil passos dos arraiais de César. No seguinte, passa suas tropas para além dos arraiais de César, acampando dois mil passos diante dele, para cortar-lhe o provimento de trigo e vitualhas, transportado dos sequanos e heduos[65]. Desde esse dia conserva César suas tropas ordenadas em batalha em frente dos arraiais por outros cinco sucessivos, oferecendo a Ariovisto ocasião de pelejar, se o quisesse fazer. Em todos eles contém Ariovisto o exército nos arraiais, escaramuçando quotidianamente com a cavalaria. São os germanos mui exercitados neste gênero de peleja.

Tinham seis mil cavaleiros, e outros tantos peões mui velozes e valentes, singularmente escohidos por cada cavaleiro para guarda sua. Com esses andavam os cavaleiros nas refregas, a esses se retraiam; esses ao menor perigo acorriam; se algum caía do cavalo gravemente ferido, logo o socorriam; se era mister avançar muito, ou retroceder a toda pressa, tão exercitada era neles a celeridade, que, agarrados às crinas dos cavalos, os igualavam na carreira.

Como viu encerrar-se Ariovisto nos arraiais, César, para lhe não ser mais tempo tolhido o provimento de víveres, escolheu além do em que estanciavam os germanos, lugar asado a acampamento, cerca de seiscentos passos destes, e para lá marchou com o exército formado em três linhas. À primeira e segunda linhas ordenou se conservassem em armas; à terceira, fortificasse arraiais. Distava do inimigo o lugar coisa de seicentos passos, como fica dito. Para ali mandou logo Ariovisto uns dezeseis mil homens expeditos com toda cavalaria, no intuito de com tais tropas obstar a fortificação, aterrando os nossos. Ordenou nada obstante César que duas linhas fizessem rosto ao inimigo, e a terceira concluísse a obra. Fortificados os arraiais, aí deixou duas legiões e parte dos auxiliares, reconduzindo as quatro restantes aos arraiais maiores.

No seguinte dia tira César suas tropas de ambos os arraiais, como dispusera; e adiantando-se um pouco dos maiores, as forma em batalha, oferecendo ao inimigo ocasião de pelejar. Vendo que nem assim saía a campo, reconduziu o exército à quartéis pela volta de meio dia. Então, finalmente, mandou Ariovisto parte de suas tropas atacar os arraiais menores, e de ambos os lados se combateu encarniçadamente até véspera. Ao pôr do sol reconduziu Ariovisto as tropas a quartéis, depois de causado e recebido muito dano. Inquerindo dos cativos o motivo por quê Ariovisto não aceitava a batalha, soube César ser costume entre os germanos declararem as mães de família por meio de sortilégios e vaticínios, quando convinha ou não dar batalha; e diziam essas: "Não ser permitido aos germanos vencer, se antes da lua nova a dessem."

Um dia depois guarnece César ambos os arraiais com força suficiente, e formando à vista dos inimigos todos os auxiliares em frente dos arraiais menores, para ostentação de número, por ter poucas legiões comparativamente à grande multidão daqueles, marcha em pessoa sobre o campo inimigo com o exército em três linhas. Obrigados então da necessidade tiram por fim os genmanos suas tropas dos quartéis e as ordenam em batalha por nações, mediando igual intervalo entre harudes[66], marcomanos[67], triboces[68], vangiones[69], nemetes[70], sedusios[71], suevos[72], e para tolher qualquer esperança de fuga, circundam toda a hoste[73] de veículos e carros, donde as mulheres com as mãos postas pediam chorando aos soldados que avançavam, as não deixassem cair na escravidão dos romanos.

Prepondo a cada legião um lugar-tenente seu e um questor, para testemunharem o valor de cada um, trava César a batalha com sua ala direita por notar que o inimigo estava menos firme desse lado. Com tal fúria investem os nossos ao sinal dado, e tão galhardamente correm os inimigos a encontrá-los, que não tiveram aqueles espaço de vibrar pilos contra estes. Omitidos os pilos, peleja-se a espada, recebendo os germanos o ímpeto destas ordenados em falange à sua usança. Houve muitos soldados nossos que, saltando por sobre as falanges[74], arrancavam-lhes os escudos com as mãos e feriam por cima. Desbaratada e posta em fuga a ala esquerda do inimigo, apertava a sua direita vigorosamente com os nossos assoberbados da multidão. Observa-o o moço Publio Crasso, general da cavalaria, por andar mais expedito, que os que se achavam na refrega, e envia a terceira linha a socorrer os nossos em aperto.

Restaurada por esta forma a batalha, voltaram costa todos os inimigos, e não pararam na fuga, senão quando chegaram à margem do Rim cerca de cinqüenta mil passos deste lugar. Aí, mui poucos, ou a passar o rio a nado, confiados nas próprias forças, se aventuraram, ou em canoas que por acaso encontraram, se salvaram[75]. Deste número foi Ariovisto, que fugiu numa barquinha que estava amarrada à margem. Alcançados dos nossos com a cavalaria, todos os mais foram mortos. Duas mulheres teve Ariovisto, uma sueva, que trouxe comsigo da pátria; a outra norica, irmã do rei Vocião, com a qual casou na Gália, enviada pelo irmão: ambas pereceram nesta fuga. De duas filhas que houve delas, uma foi morta, a outra aprisionada. Caio Valerio Procilo, eniquanto é pelos guardas arrastado na fuga com três cadeias, encontra-se com o próprio César que perseguia o inimigo à frente da cavalaria; e não é a este menor prazer, que a mesma vitória, ver tirado de mãos hostis, e salvo, a um dos homens mais honrados da província da Gália, amigo e hóspede seu, em que com sua perda agorentasse coisa alguma a fortuna de tanta satisfação e regozijo. Dizia ele haveremse três vezes feito sortilégios em sua presença, a ver se seria logo queimado vivo, ou reservado para outra ocasião, e dever aos sortilégios a salvação. É do mesmo modo encontrado Marco Mecio, e apresentado a César.

Divulgada além Rim[76] a notícia desta batalha, entram a regressar a pátria os suevos acampados à margem deste. Deles aterrados, e acossados pelos Ubios que habitam perto do rio e lhes vão no encalço, são mortos muitos na retirada. Terminadas duas das maiores guerras em um só estio, conduz César o exército aos sequanos[77] a quartéis de inverno, um pouco mais cedo do que o requeria a estação; e prepondo Labieno a esses quartéis, parte para a Gália citerior a reunir as juntas da província[78].

  1. O Mame.
  2. O Sena.
  3. Os alemães.
  4. Os suíços.
  5. Os de Franche-Comté.
  6. Os belgas estão aqui pelo país que habitavam; pois é como se César dissesse o Belgio ou a Bélgica. É a metonímia do conteúdo pelo continente, mui vulgar nos autores latinos.
  7. O coletivo, cidade, está aqui tomado na acepção de nação. Considerado porém em sua acepção genuina. é a metonimia do continente pelo conteúdo, ou a cidade pelos cidadãos.
  8. Estreitos por estreitados, ou apertados, é vulgar nos clássicos portugueses.
  9. O lago de Genebra.
  10. Cidades, por estados, repúblicas, nações, na acepção em que os romanos tomavam este termo.
  11. Natural de Autuo.
  12. Os de Bale.
  13. Os de Dutlingen.
  14. Os de Brisgau.
  15. A Baviera.
  16. Casa, por pátria ou país: é a sinédoque da parte pelo todo.
  17. Os de Franche-Conté. Através dos sequanos, isto é, do Sequanio ou da Sequonia. É a metonímia de conteúdo pelo continente.
  18. Os saboianos
  19. Fronteiras, pelo território; é a sinédoque da parte pelo todo.
  20. Os de Autun.
  21. Os de Saintogne.
  22. Os de Toulouse.
  23. Os de Tarantaise.
  24. Os de Briançon.
  25. Os de Enibrum e Gap.
  26. Exiles.
  27. Os de Vaison.
  28. Os de Lion.
  29. As fronteiras pelo território ou a parte pelo todo.
  30. La Saôme, ou Sóna.
  31. O cantão de Zurich.
  32. Os do Berri.
  33. Dali, do país dos bituriges, ou do Biturigio, o atual Berri. Os bituriges pelo Biturigio é a metonímia do conteúdo pelo continente.
  34. Aqui é o primeiro dos legados das legiões, com quem o proconsul reparte seus cuidados.
  35. Autun.
  36. Na turma ou companhia, que tinha trinta cavaleiros, os primeiros de cada decúria chamavam-se decuriões.
  37. Suas tropas, isto é, as legiões romanas, pois quase toda cavalaria era gaulesa ou auxiliar.
  38. A Lombardia.
  39. Os helvecios eram também gauleses, como já fica dito.
  40. O pilo era arma de arremesso, que o soldado romano trazia presa ao sago, ou farda, por uma correia, e tirava a si quando havia ferido o inimigo.
  41. Os de Langres.
  42. O cantão de Berne.
  43. Os stuliglanos.
  44. Os de Brisgau.
  45. Reunião de toda a Gália em lugar de reunião de todos os gauleses, ou dos que os representavam. É a metonímia do continente pelo conteúdo, ou ainda a sinédoque do todo pela parte.
  46. Impetrado, por sendo isto impetrado, é proposição participio elítica como outorgado, no capítulo precedente, e condenado, no cap. IV. É uma locução concisa que dá vigor e animação ao dizer.
  47. Os Auvernheses
  48. Fronteiras, por, território como em outros lugares.
  49. Os de Constancia.
  50. Mgstat.
  51. Os de Treves.
  52. As fronteiras estão aqui pelo país. É a sinedogue da parte pelo todo.
  53. Os cem cantões de Suevos estão pelos Suevos tirados dos cem cantões de que se compunha este povo. Temos aqui a metonímia do continente pelo conteúdo, e a sinedoque da parte pelo todo.
  54. Besanção.
  55. O rio Doubs.
  56. Praça forte, ou cidade murada, é a verdadeira significação de oppidum. Preferimos na tradução, cidade a praça, porque o segundo nome sem antecedente que o determine, oferece equívoco.
  57. Desde o Centurio posterior do trigésimo manípulo até o Centurio prior do primeiro, havia sessenta graduações a percorrer. Cada legião compreendia dez coortes, cada coorte três manípulos, cada manípulo duas centúrias. A legião romana no tempo de César era de 6.000 homens.
  58. Os lorenos.
  59. Os de Langres.
  60. Levarem estandartes, por levantarem estandartes, assim como se diz "levar âncora", por levantar âncora.
  61. As cidades estão aqui pelas tropas dos povos que as compunham, como depois explica César, pondo na boca de Ariovisto, e essas tropas foram todas destroçadas, etc. É a metonimia do continente pelo conteúdo, ou, debaixo de outro ponto de vista, a sinedoque do todo pela parte.
  62. Todas as guerras que quisesse feitas, isto é, que fossem feitas. Há nos clássicos, e com especialidade Fr. Luiz de Souza, diversos exemplos desta espécie de elipse.
  63. Os de Ruergne.
  64. Outras edições trazem Marco Tido.
  65. Os sequanos e heduos estão aqui pelos respectivos países.
  66. Os de Constança.
  67. Os de Boemia.
  68. Os de Strasburgo.
  69. Os de Maiença.
  70. Os de Vormes.
  71. Os de Spira.
  72. Os de Suabia.
  73. Hoste, termo antiquado, que cumpre restabelecer, porque significando o exército inimigo, e por extensão qualquer exército, ou divisão dele, em ordem de batalha, não tem correspondente na língua. Em muitos casos pode este termo verter bem o acies dos latinos. Por ex.: prima, secunda, tertia acies, primeira, segunda, terceira hoste; isto é, linha, coluna, divisão, em ordem de batalha. O termo batalha, tomado figuradamente à maneira dos clássicos, supriria neste caso hoste, mas não na acepção de exército em geral, em que o tomamos.
  74. Eram tantas as falanges, quantas as nações, porque os germanos se haviam ordenado em batalha por nações, como fica dito.
  75. Não nos sendo possível conservar no primeiro período a mesma consonância do original, colocando no fim de cada proposição os verbos no pretérito perfeito, por se não prestar facilmente o português a esta espécie de harmonia que tanta beleza e majestade dá ao latim; procuramos todavia fazê-lo no segundo em que menos repugnante nos pareceu este torneio de frase.
  76. Além Rim, assim como se diz, além Tejo, além Douro, além mar.
  77. Os sequanos, pelo Sequanio ou país que habitavam.
  78. Juntas de justiça ou juntas em que o governador da província distribuía justiça às partes.