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Argumento

O lugar-tenente de César, Servia Galba, subjuga certas nações dos Alpes sitas para as partes dos Alobroges, derrotando-as em uma sortida quando rebeladas lhe cercavam os arraiais C. 1-6. Rebelam-se ao mesmo tempo, retendo nossos oficiais, os Armoricos, isto é, os Venetos, mas são afinal domados por Césarem combate naval C. 7-16, O lugar-tenente de César, Titurio Sabino, vence os Unelos C. 17-19. Crasso, os Aquitanios C. 20-27. Guerreia César os Morinos e Menapios em quanto lho permite a boa estação, conduzindo com a volta do mau tempo o exército a quartéis de inverno C. 28-29.

Partindo para a Itália, enviou César a Servio Galba com a duodécima legião e parte da cavalaria a subjugar os Nantuates[1], Veragros[2], e Sedunos[3], que, das fronteiras dos Alobroges, lago Lemano e rio Rodano, extendem-se até às cumiadas dos Alpes. Fê-lo no intuito de estabelecer livre passagem pelos Alpes, por onde os mercadores transitavam com grandes riscos e portagens[4]. A este permitiu-lhe invernar com a legião naqueles lugares, se o julgasse conveniente. Feliz em diversos recontros, depois de tomar muitos castelos, e receber embaixadores e reféns de todos esses povos, resolveu Galba, feita a paz, colocar duas coortes entre os Nantuates, e invernar com as restantes na aldeia dos Veragros, chamada Octoduro[5], que demora num vale com planície não grande, e altíssimos montes em roda. Como esta se achasse dividida em duas partes por um rio, uma delas concede aos gauleses, a outra, que fortifica com trincheira e fosso depois de abandonada por eles, a destina às coortes para quartéis de inverno.

Depois de passados muitos dias da estação invernosa, e expedida ordem de ser para ali transportado trigo, é de repente certificado pelos exploradores de haverem os Gauleses abandonado de noite a parte da aldeia, que lhes fora assinada, e acharem-se os montes a cavaleiro ocupados por grandíssima multidão de Sedunos e Veragros. Estas eram as causas de tomarem os Gauleses a súbita resolução de renovar a guerra e oprimir-nos: primeiramente, desprezarem a legião por seu pequeno número de soldados, achando-se ela incompleta pelo desfalque das duas coortes, e de muitos que tinham sido mandados destacadamente por víveres; depois, julgarem também que, quando corressem dos montes sobre o vale e nos fizessem tiros na arrancada, nem sequer o primeiro ímpeto lhes poderia ser sustentado pelos nossos, em razão da desigualdade do lugar. Acrescia doerem-se que lhes fossem tirados os filhos a pretexto de reféns, e persuadirem-se que os romanos, não tanto por amor do trânsito, como com vistas no perpétuo domínio, tentavam ocupar as cumiadas dos Alpes, incorporando estes lugares à sua província limítrofe.

Recebendo esta notícia, sem estar ainda concluída a obra dos quartéis e fortificações, nem assás providenciado o abastecimento de trigo e vitualhas, (pois feita a submissão e entregues os reféns, nada julgava ter a temer dos Gauleses), dá-se Galba pressa a convocar concelho e entra a requerer os pareceres dos vogais, Aí[6], sobrevindo contra a opinião tão repentino perigo, notando-se já repletas de multidão de armados quase todas as alturas, e não se podendo contar com socorro, nem abastecimento de víveres, fechados os caminhos, emitiam-se, perdida quase toda outra esperança, pareceres desta natureza: "Que, abandonadas as bagagens, e feita a sortida, se buscasse a salvação nos mesmos caminhos, por onde tinham vindo." À maior parte pareceu, todavia, conveniente que, reservado este remédio para caso extremo, se defendessem no entanto os arraiais e aguardasse o resultado.

Mal sobrado depois disto um breve espaço para colocar e dispor o mais necessario à defensão, entram logo os inimigos, a sinal dado, a correr de todas as partes dos montes, e a despedir para a trincheira chuveiros de cantos e arremessões[7]. A princípio resistiam os nossos vigorosamente com forças intactas, não perdendo o emprego de um só tiro feito do alto[8]; quando alguma parte dos arraiais parecia estar em aperto por desfalque de defensores, a ela acudiam, dando-lhe auxílio; mas levavam o pior no jogo, porque os inimigos cansados do longo pelejar retiravam-se do combate, sendo revezados por gente de fresco e outro tanto não podiam eles fazer, sendo que em razão de seu pequeno número não tinham faculdade de arredar pé do posto uma vez ocupado, para recobrar forças, não só os cansados, mas nem ainda os feridos.

Durando a luta mais de seis horas, e falecendo já aos nossos não só forças, mas também tiros, e apertando mais fortemente os inimigos que, por irem os nossos afrouxando, começavam a fazer brecha na trincheira e a entupir o fosso, e estando as coisas no último apuro, o primipilar Publio Sextio Baculo, que dissemos haver crivado de feridas na batalha com os Nervios, e igualmente o tribuno dos soldados Caio Voluseno, militar de grande experiência e bravura, correm a Galba, e convencem-no de que a única esperança de salvação estava em experimentar o remédio extremo, fazendo a sortida. Assim, convocados à pressa os centuriões, ordena aos soldados que, interrompendo por um pouco o pelejar, se limitem a aparar os tiros do inimigo, e a refocilar-se da fadiga; depois, arremetendo dos arraiais ao sinal dado, ponham toda esperança de salvação só no valor.

Executam o determinado; e rebentando subitamente por todas as portas[9], aos inimigos nem dão tempo de conhecerem o que se operava, nem de reunirem-se para a resistência. Assim, trocadas as cenas, aos que vinham na esperança de senhorear os arraiais, matam-nos, envolvendo-os de todos os lados, e mortos mais da terça parte de trinta mil destes bárbaros, (tantos constava haverem atacado o campo), aos restantes aterrados convertem-nos à fuga, não lhes consentindo parar nas mesmas alturas. Desbaratados e desarmados todos os inimigos, recolhem-se os nossos a seus entrincheiramentos. E porque, depois desta batalha, não queria tentar mais vezes a fortuna, recordando-se ter vindo a quartéis de inverno com um fim, e haver ela disposto outra coisa, movido principalmente pela carência de trigo e vitualhas, no seguinte dia, depois de mandar incendiar todos os edifícios desta aldeia, começou Galba a regressar à província; e não lhe estorvando, nem demorando a marcha inimigo algum, conduziu a legião salva e intacta aos Nantuates, e daí aos Alobroges, entre os quais invernou.

Como depois disto com todo fundamento julgasse César a Gália pacificada, havendo sido domados os Belgas, expulsos os Germanos, vencidos os Sedunos nos Alpes, e partisse no princípio do inverno para o Ilirico, por desejar também conhecer essas nações e regiões, rebentou súbita güerra na Gália. Eis a causa dela. O moço Publio Crasso invernava com a sétima legião entre os Andes nas vizinhanças do mar Oceano. Havendo aí falta de trigo, a diversos prefeitos e tribunos dos soldados expedira por ele às cidades vizinhas, e entre estes a Tito Terrasidio aos Esuvios, Marco Trebio Galo aos Curiosolitas, e Quincio Velanio com Tito Silio aos Venetos.

Mui grande e ampla é a preponderância dos Venetos em toda costa marítima destas regiões, já porque possuem muitos navios em que costumam navegar para a Britania, já porque excedem os outros povos comarcãos na ciência e prática das coisas náuticas, já porque num mar borrascoso e aberto, salpicado com raros portos, de que estão de posse, têm por tributários seus a quase todos que por ele navegam. Foram esses que deram primeiro o exemplo de prender a Silio e Velanio, porque por eles esperavam recobrar os seus reféns entregues a Cassio. Induzidos pela autoridade desses, segundo são os Gauleses precipitados e levianos em suas resoluções, prendem também os vizinhõs no mesmo presuposto a Trebio e Terrasidio, e enviados embaixadores com presteza, conjuram-se entre si por seus principais[10], obrigando-se a nada fazer senão de acordo comum, e a correr conjuntamente uma e a mesma fortuna; e solicitam às restantes cidades, para preferirem viver na liberdade herdada de seus maiores a suportar o jugo dos Romanos. Reduzida toda a costa a seu partido deles, mandam a Crasso esta embaixada em comum: "Que, se queria recobrar os seus, lhes havia de restituir os reféns."

Informado disto por Crasso, César que estava longe, mandou, no entretanto, ordem, para se construirem galeras[11] no rio Liger[12], que desemboca no Oceano, tomarem-se remeiros da província, e aprestarem-se marinheiros e pilotos. Aparelhado tudo com presteza, logo que o permitiu a estação, dirigiu-se em pessoa ao exército. Conscios de haverem cometido um grande atentado contra si próprios[13], retendo e prendendo os embaixadores, pessoas em todo tempo e entre todas as nações invioláveis e sagradas por seu caráter, resolvem os Venetos e demais cidades, conhecida a vinda de César, preparar guerra correspondente à grandeza do perigo, providenciando principalmente o que respeitava ao uso dos navios, com tanto mais esperança, quanto mais confiavam na natureza do lugar. Sabiam serem as vias terrestres cortadas de lagos salgados, a navegação embaraçosa para os não habituados a ela, pela ignorância dos lugares e raridade dos portos, não se poderem nossos exércitos, em razão da carência de trigo, demorar muito tempo entre eles; e, ainda quando sucedesse tudo contra a esperança, serem todavia senhores do mar por suas esquadras, e não terem os Romanos abundância de navios, nem conhecimento dos parceis, portos e ilhas da costa, em que haviam de fazer a guerra, sendo a navegação em mar fechado[14] mui diversa da que se faz no vastíssimo e imenso Oceano. Concebido este plano, fortificam suas cidades, transportam dos campos cereais para elas e reunem na Venecia, onde constava haver César de fazer primeiro a guerra, quanto mais navios lhes é possível. Trazem a seu partido os Osismos, Lexovios[15], Namnetes[16], Ambiliatos[17], Morinos, Diablintres[18], Menapios; e chamam tropas auxiliares da Bretania, que demora contra estas regiões.

Grandes por certo eram as dificuldades que apresentava esta guerra; mas muitas eram também as considerações que levavam César a empreendê-la: — O escândalo da prisão dos cavaleiros romanos[19], a rebelião depois da submissão e entrega dos reféns, a conjuração de tantas cidades[20], o receio principalmente que deixando impune esta parte[21], a exemplo dela, se rebelassem todas as demais cidades da Gália — Vendo, pois, propenderem quase todos os Gauleses para nova ordem de coisas, serem inconstantes e prontos em recorrer às armas e amando naturalmente a liberdade, aborrecerem os homens a escravidão, resolveu disseminar suas forças, fazendo-as ocupar mais amplo espaço, antes que conspirasse maior número de cidades.

Assim, ao seu lugar-tenente Tito Labieno com a cavalaria manda-o para os Treviros[22] que vizínham com o rio Rim, ordenando-lhe dirija-se aos Remos e mais Belgas para contê-los no dever, e tolha a passagem do rio aos Germanos, que se diziam chamados pelos Gauleses como auxiliares, se a força tentassem fazê-la em barcos. A Publio Crasso com doze coortes legionárias e grande porção de cavalaria expede-o para a Aquitania, afim de embargar a remessa de socorros dali[23] para a Gália Celtica, e o congregarem-se tantas nações. Ao seu lugar-tenente Quincio Titurio Sabino com três legiões destaca-o para os Unelos, Curiosolitas e Lexovios, com o intuito de fazer diversão nessas forças. Ao moço Decimo Bruto prepõe-no à armada, bem como aos navios gauleses, que tinha feito juntar dos Pictões[24], Santones, e mais regiões pacificadas, ordenando-lhe parta para os Venetos, logo que seja possível. Depois disto, para ali se dirige em pessoa com as tropas de pé.

Construídas ordinariamente na extremidade de linguetas de terra[25] e promontórios que entram pelo Oceano, por tal forma se achavam dispostas suas cidades, que não davam acesso à gente de pé, quando enchia a maré, (o que sempre acontece duas vezes no espaço de vinte e quatro horas), nem aos navios, porque, vasando ela, corriam risco de despedaçar-se nos baixos. Assim era o assédio das mesmas estorvado pelo fluxo e refluxo; e quando assoberbados pela grandeza da circunvalação, expelido o mar com aterramentos e molhes levados quase à altura dos muros da praça, começavam a desesperar a salvação, fazendo vir grande número de embarcações, nas quais abundavam, transportavam-se os habitantes com seus haveres a outras cidades vizinhas, onde continuavam a defender-se com a mesma superioridade de posição. Praticavam-no com mais facilidade boa parte do estio, porque nossos navios eram então embaraçados pelas tempestades, e dificílimo se tornava navegar em mar vasto e aberto, com grandes marés, e mui poucos ou nenhuns portos.

Os seus navios eram feitos e aparelhados por este jeito. Tinham os cascos mais chatos do que os nossos, para mais facilmente resistirem aos parceis na baixa-mar; as proas sumamente levantadas, e da mesma forma as popas acomodadas à grandeza dos escarcéus e tempestades. Eram todos construídos de carvalho, e próprios a suportar qualquer embate, com traves transversais[26] de um pé de espessura, seguras com pregos de ferro de uma polegada de grossura, âncoras que se prendiam a correntes de ferro em vez de amarras, e velas de peles bem preparadas ou por falta de linho, ou pelo não saberem manipular, ou, o que é mais verosímil, por julgarem que tantas tempestades, fúria de ventos e peso de navios, não se podiam bem suster e reger com outras velas. Na luta com eles, a única vantagem que tinha nossa armada, era a da celeridade no impulso dos remos; no mais eram eles mais próprios para a navegação destas paragens, e resistiam melhor à violência dos mares e tempestades. Nem podiam nossas galeras empecer-lhes com o rostro[27], (tanta era sua fortaleza!), nem jogar-lhes por sua altura arremessões com boa pontaria; e pela mesma causa menos comodamente se sobjugavam no abalroar. Acrescia que, começando de embravecer o vento, não só mais facilmente, à mercê dele, aturavam o mau tempo, mas encalhavam também nos baixos com menos risco, sem receiar pedras e rochedos, quando os abandonava a maré, acidentes esses todos mui de temer para nossos navios.

Depois de expugnadas muitas praças, vendo ser trabalho baldado, pois não podia com isso obstar a retirada dos inimigos, nem empecer-lhes, resolveu César esperar, a armada. Mal apareceu, e houveram dela vista os inimigos, saem do porto, e lhe fazem rosto uns duzentos e vinte navios seus, mui bem apercebidos e aparelhados de todo o necessário. Nem Bruto, que comandava a armada, nem os tribunos dos soldados e centuriões, a que fora confiada cada galera, estavam assás certos do que convinha fazer, ou que gênero de peleja cumpria adotar; pois sabiam não poder empecer-lhes com o rostro. Armadas as torres[28], tanto as excediam em altura as popas dos navios bárbaros, que não era possível acertar-lhes bem a pontaria de baixo, e os tiros dos Gauleses disparados de cima empregavam-se bem nos nossos. Uma única coisa de grande utilidade havia sido preparada pelos nossos e vinha a ser umas foices mui cortantes, encabadas e pregadas em longos vara-paus, quase à feição das foices murais[29]. Com estas eram apanhados os cabos que prendiam as antenas aos mastros dos vasos inimigos, empuxados e cortados, impelindo-se os nossos à voga arrancada. Cortados esses, caíam as antenas; e estando toda esperança dos navios gauleses nas velas e aparelhos, ficavam eles sem isso completamente desarmados. O mais do combate estava posto no valor no qual eram nossos soldados facilmente superiores, e ainda mais passando-se a ação aos olhos de César e do exército, o qual ocupava todos os oiteiros e alturas, donde havia vista sobre o mar, de modo a não poder ficar oculta nenhuma proeza de vulto.

Derribadas, como dissemos, as antenas, cercando duas e três galeras nossas cada navio desaparelhado, entravam-no nossos soldados mui esforçadamente, e rendiam-no. Vendo por tal forma tomados muitos navios seus sem haver para isso remédio põem os bárbaros toda esperança de salvação na fuga. E virados já os navios na direção do vento, sobreveiu de súbito tanta calmaria, que não foi mais possível mudarem de lugar. Muito contribuiu este acidente para o complemento da vitória; pois atacando-os um a um, os rendiam os nossos, de sorte que, durando o combate quase desde as dez horas do dia[30] até o pôr do sol, mui poucos deles chegaram à terra com o favor da noite.

Com esta batalha ficou terminada a guerra dos Venetos e de toda costa marítima; porquanto toda a mocidade e ainda os homens maduros, em quem se notava ou experiência ou alguma dignidade, haviam a ela concorrido, bem como todos quantos navios tinham coligido de qualquer parte, perdidos os quais, aos que restavam nem ficavam meios de retirar-se, nem de defender suas cidades. Rendem-se pois sem condições a César, que resolveu dar neles um severo exemplo, para que o direito das gentes fosse no porvir melhor respeitado pelos bárbaros. Assim, mandando matar os senadores, vendeu os demais como escravos[31].

Enquanto isto se passa na Venecia, com as tropas que recebera de César, chega Quincio Titurio Sabino às fronteiras dos Unelos. Mandava sobre estes Viridovix, que exercia o poder supremo em todas as cidades rebeladas, donde reunira grandes forças e bastimentos. Dentro em poucos dias matam os Aulercos[32], Eburives[33] e Lexovios a todos seus senadores, porque se opunham à guerra, e fecham as portas, fazendo causa comum com Viridovix, a quem por cima disto se reune de diversas partes da Gália grande multidão de gente perdida e ladrões, distraídos da agricultura e trabalho quotidiano, pela esperança do saque e paixão da guerra. Provido de tudo continha-se Sabino nos arraiais, não obstante haver Vindovix acampado a duas milhas de distância, e oferecer-lhe todos os dias batalha com as tropas formadas, de modo que não só já era ele desprezdo pelos inimigos, mas até não poucas vezes mordido de nossos soldados. Tal foi a opinião de terror espalhada a seu respeito, que já os inimigos ousavam aproximar-se às nossas trincheiras. Obrava porém assim, por julgar não dever o lugar-tenente, principalmente estando ausente o general, arriscar batalha contra tamanha multidão de inimigos, senão em lugar vantajoso e ocasião oportuna.

Confirmada esta opinião de temor, dentre os gauleses auxiliares que consigo tinha, escolhe um homem hábil e astuto, e com grandes donativos e promessas persuade-lhe passe aos inimigos, insinuando-lhe o que convinha fazer. Este, logo que a eles chega como transfuga, põe-lhes diante dos olhos o temor dos Romanos, os apertos em que se acha César entre Venetos[34], e não estar Sabino longe de partir ocultamente com o exército na seguinte noite, afim de levar-lhe socorro. Mal o ouviram, clamam todos a uma não se dever perder tão bela ocasião, e ser conveniente marchar logo dali aos arraiais romanos. Muitas eram as causas que a isso impeliam os Gauleses: — a hesitação de Sabino nos dias passados, a confirmação dada pelo transfuga, o não haverem providenciado assás o suprimento de víveres, a esperança da guerra venética, e o acreditarem facilmente os homens o que desejam — Movidos por elas não deixam sair do concelho a Vinidovix e mais caudilhos[35], sem esses consentirem primeiro em que tomem armas para atacar-nos os arraiais. Obtido o consenso, alvoroçados, como se já tivessem a vitória nas mãos, fazem faxina para entupir-nos o fosso, e marcham sobre nossos entrincheiramentos.

O lugar dos arraiais era eminente, e se ia do plaino levantando aos poucos até cerca de mil passos. A ele sobem correndo para deixar aos Romanos o menor espaço possível de se reunirem e armarem; chegam arquejando. Depois de exortar os seus, dá-lhes Sabino o desejado sinal do ataque, e manda fazer a sortida por duas portas subidamente quando embaraçados os inimigos com as cargas que traziam[36]. Por nossa vantajosa posição, ignorância e cansaço seu deles, bravura e experiência dos soldados adquirida nos passados combates, verificou-se não poderem suportar sequer o primeiro impeto dos nossos, voltando logo costas. Perseguindo-os na fuga embaraçados e fatigados, fazem nossos soldados descançados grande mortandade neles. Alcançados depois pela cavalaria, poucos dos fugitivos chegam a salvar-se. Têm pois a um tempo notícia, Sabino da batalha naval de César, e César da vitória de Sabino. Submetem-se logo a Titunio todas as cidades; porque assim como são por índole alvoroçados e belicosos, assim são os Gauleses pusilânimes para resistir às calamidades.

Quase pelo mesmo tempo chegava Publio Crasso à Aquitania que, como antes se disse, deve pela extensão do território e multidão de homens ser considerada a terceira parte da Gália; e vendo ter de fazer a guerra nos lugares onde poucos anos antes fora morto o lugar-tenente Lucio Valerio Preconino com derrota do seu exército, e donde fugira o proconsul Lucio Mallio, abandonando as bagagens, entendia dever empregar não pequena vigilância. Feito pois provimento de víveres, aparelhados auxiliares e cavalaria, e chamados nominalmente muitos bravos de Tolosa e Narbona, cidades da província romana vizinhas destas regiões, abala com o exército para as fronteiras dos Sonciates[37]. Tendo notícia de sua vinda, juntam estes grandes forças de pé e cavalaria, na qual são mui poderosos, e atacando nosso exército em marcha, travam primeiro combate com a cavalaria; depois, rechassada esta, e perseguindo-a os nossos, mostram subitamente as tropas de pé, que haviam postado em emboscadas num vale, e acometendo os nossos derramados, renovam a batalha.

Peleja-se por largo tempo e encarniçadamente, julgando os Sonciates confiados nas passadas vitórias posta no seu valor a salvação de toda a Gália, e desejando os nossos se visse quanto podiam agir sem o general, sem as demais legiões e com um chefe mancebo. Bem sangrados de nosso ferro, voltam por fim costas os inimigos. Depois de morto grande número deles, começa Crasso incontinenti o assédio da capital dos Sonciates[38]; e apresentando a praça grande resistência, constroe mantas de guerra e torres. Ora tentam os inimigos sortidas, ora fazem minas para destruir o terrado e mantas (no que são peritíssimos os Aquitanios por causa das minas de cobre que exploram); mas logo que entendem nada disso aproveitar-lhes pela vigilância dos nossos, mandam embaixadores a Crasso, pedindo-lhe os receba sob sua proteção. Impetrado com condição de entregarem as armas, executam-no.

Voltada para isto a atenção dos nossos, de outra parte da praça Adiatuno[39], que era o principal caudilho, tenta uma sortida com seiscentos devotados seus, dos que chamam Soldurios[40]. Gozam estes na vida de todos os cômodos conjuntamente com aqueles, a cuja amizade se consagram; correm com eles a mesma fortuna, morrendo, ou matando-se com eles em caso extremo; nem há exemplo de um só destes que tenha recusado morrer, morto aquele por quem se devotara. Levantado clamor desse lado dos entrincheiramentos, e correndo os soldados às armas, aí se combate bravamente, e é Adiatuno repelido para a praça. Alcança nada obstante de Crasso ser contemplado no número dos submetidos.

De posse de armas e reféns, marcha Crasso para as fronteiras dos Vocates[41] e Tarusates[42]. Abalados então com a notícia de se haver uma praça fortificada não só pela natureza, como pela arte, rendido com poucos dias de sítio, entram os bárbaros a expedir embaixadores para toda parte, a conjurar-se a dar reféns entre si e a aparelhar tropas. Mandam também embaixadores às cidades da Espanha citerior, que vizinham com a Aquitania, solicitando dali auxiliares e caudilhos; e chegados esses, empreendem a guerra com grande confiança e multidão de homens. Escolhem-se aqueles caudilhos que, tendo servido constantemente com Quincio Sertorio[43], haviam grangeado reputação de consumados na arte militar. Estes, ao uso dos Romanos, tomam posições, fortificam arraiais e tolhem aos nossos o provimento de víveres. Logo que o notou, vendo não poderem por diminutas dividir-se suas forças, e vagar livremente o inimigo, interceptando-nos a comunicação sem desfalcar seus araiais da necessária guarnição, e dificultar-se-lhe por isso muito o transporte de víveres, e crescerem diariamente as forças hostís, julgou Crasso não dever demorar a batalha. Posto o negócio em concelho, e sendo todos do mesmo sentir, destinou para ela o seguinte dia.

Tirando as tropas de quartéis ao romper dalva, e formando-as em ordem de batalha em duas linhas[44], aguardava a resolução dos inimigos. Estes, posto entendessem haver de combater com vantagem por sua multidão, antiga reputação de bravura e diminuto número dos nossos, julgavam todavia mais seguro obter vitória incruenta, interceptando-nos os víveres com apoderarem-se dos caminhos, e, se os Romanos obrigados da fome tentassem retirada, atacá-los na marcha, quando sobrecarregados e desalentados. Aprovada pelos chefes tal resolução, conservavam-se nos arraiais, enquanto os romanos se achavam ordenados em batalha. Notado isto, e crescendo nos nossos soldados o alvoroço de pelejar com a hesitação e suposto temor dos inimigos, e ouvindo-se vozes de todos que convinha ir-lhes sem demora aos arraiais, depois de exortar os seus, marcha Crasso sobre o campo inimigo conforme o desejo geral.

Aí entupindo uns o fosso, repelindo outros da trincheira os defensores com chuveiro de tiros, e aparentando os auxiliares, em quem Crasso não confiava muito, a demonstração de combatentes com fornecerem pedras e dardos, e transportarem cespedes para o terrado, pelejando da mesma forma os inimigos constante e bravamente, e não desfechando em vão os seus tiros feitos do alto[45], os cavaleiros que haviam torneado o campo inimigo, vêm anunciar a Crasso não ser esse igualmente fortificado por toda parte, e oferecer fácil acesso pelo lado da porta decumana[46].

Depois de exortar os prefeitos da cavalaria, para que com grandes prêmios e promessas excitassem os seus, indica-lhes Crasso o que convinha fazer. Estes, tirando segundo as ordens as coortes descançadas, que haviam sido deixadas de guarda aos arraiais e conduzindo-as com rodeio por caminho mais longo, para não serem vistas do campo inimigo, distraídos com o pelejar os olhos e a atenção de todos, chegam com celeridade àquela parte dos entrincheiramentos inimigos que mencionamos; e feita larga brecha, penetram-lhes dentro, antes de poderem ser vistos ou sentidos. Ouvindo clamor desse lado, combatem os nossos reanimados com novas forças, como quase sempre acontece quando se conta com a vitória. Vendo-se cercados, e totalmente perdidos, entram os inimigos a lançar-se das trincheiras abaixo, e a procurar a salvação na fuga. Perseguidos por nossa cavalaria em campos mui descobertos, de cinqüenta mil que constava terem-se reunido da Aquitania e dos Cantabros[47], salva-se apenas um quarto, recolhendo-se aquela aos arraiais alta noite.

Com a notícia desta batalha a mor parte da Aquitania se rendeu a Crasso, e lhe enviou reféns de proprio motu, contando-se no número dos submetidos os Tarbelos[48], Bigerriões[49], Peianos[50], Vocates, Tarusates, Eluzates[51], Gates[52], Auscios[53], Garumnos[54], Sibusates[55], Cosates[56]. Poucas foram as nações que, por mais remotas, e fiadas na proximidade do inverno, negligenciaram fazê-lo.

XXVIII

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Quase pelo mesmo tempo César, posto estar já o estio a findar, todavia, porque, pacificada a Gália, só restavam em armas os Morinos e Menapios, sem lhe mandar propor pazes, persuadido de que podia semelhante guerra concluir-se com brevidade, conduziu o exército para aquele ponto. Entram esses a fazer a guerra por forma bem diversa dos mais gauleses; pois, vendo que as nações mais poderosas que haviam combatido em campo raso, tinham sido desbaratadas e vencidas, e possuindo uma continuação de selvas e paúis, para lá se passam com o que era seu. Chegando César ao princípio destas selvas e começando a fortificar arraiais, sem darem mostras de si os inimigos, ao tempo em que dispersos andavam os nossos ocupados na obra, voam aqueles subitamente de todos os pontos da mata, e precipitam-se sobre estes. Armam-se os nossos à pressa, repelem-os para as selvas com morte de muitos deles, e seguindo os demais por brenhas emaranhadas, perdem poucos dos seus.

Resolve, pois, César destruir as selvas nos restantes dias; e para que pelo flanco aberto não pudesse o inimigo atacar nossos soldados, quando dispersos e descuidados, a madeira cortada a ia voltando toda contra aquele, e amontoando-a de cada lado a modo de trincheira. Feito em poucos dias grande espaço desbastado com incrível celeridade, e estando já os nossos senhores do gado e últimas bagagens[57] do inimigo, que se entranhava por selvas ainda mais densas, seguiram-se dias tão tempestuosos, que foi forçoso interromper a obra, não podendo o soldado em razão das contínuas chuvas conservar-se mais tempo sob as peles[58]. Assim depois de assolar a campanha e incendiar aldeias e edifícios, reconduz César o exército, levando-o a invernar entre os Aulercos, Lexovios e mais cidades[59], que haviam feito a guerra de próximo.

  1. Povo de Narboneza, no Chablais e Baixo-Valais, sobre o lago Lemano e Rodano.
  2. Povo da Narboneza, no vale superior do Rodano, ao S. E. dos Nantuates.
  3. Pequeno povo da Narboneza, no centro do Valais, só a margem direita do Rodano.
  4. Portagens, direitos exigidos para o transporte das mercadorias.
  5. Julga-se ser Martigny, no Valais.
  6. Ai, no concelho.
  7. Arremessões: o texto latino traz, gaesa, dardos todos de ferro; mas não tendo o português termo correspondente, servimo-nos de arremessões, que compreende todo o gênero de arma de arremesso, e por conseguinte, dardos de ferro.
  8. Do alto: de cima da trincheira.
  9. Por todas as portas: os arraiais romanos, tinham quatro portas; a primeira, chamada pretoria ou pretoriana, era a mais próxima ao pretorium, ou tenda do general, e fazia de ordinário face aos inimigos; a segunda, colocada na parte oposta, era a decumana; as duas outras abriam-se sobre as faces laterais, uma à direita, outra à esquerda.
  10. Os chefes das nações.
  11. Navios de remo próprios para combate, em latim naves longae, por oposição aos vasos de transporte, chamados Mb>naves onerariae ou vectoriae.
  12. O rio Loire.
  13. Atentado que podia, e devia reverter contra eles.
  14. Em mar fechado: isto é, no Mediterrâneo, em que costumavam navegar os romanos.
  15. Os do atual distrito de Lisieux.
  16. Os de Nantes.
  17. Pequeno povo da Bélgica, que ocupava, ao que se crê, o território de Orchias.
  18. Os do Maine.
  19. Mais grave se tornava ainda o atentado por serem os embaixadores cavaleiros romanos, ou nobres.
  20. Cidades, no sentido de povos, nações, estados, assim como nos outros dois lugares deste capítulo.
  21. Esta parte, isto é, esta parte da Gália, ou dos povos da Gália.
  22. Para os Treviros: os Treviros estão aqui pelo país que habitavam, assim como nos lugares abaixo, os Remos e mais Belgas, os Unelos, Curiosolitas, Lexovios, Pictões, Santones e Venetos.
  23. Dali, desse país ou povos.
  24. Um dos povos mais consideráveis da Aquitania, entre os Bituriges-Cubi, os Lemovices e o Oceano, ao norte dos Santones e ao meio dia do curso inferior do Loire.
  25. Na extremidade de linguetas de terra e promontórios: há muitas destas pontas na costa da Bretanha. Promontório distingue-se de lingueta de terra ou ponta em ser o primeiro mais vasto e elevado, que a segunda.
  26. Com traves transversais: a original traz, transtra, bancos de remeiros no sentido ordinário; mas esta acepção é inadmissível aqui, porque no capítulo seguinte César diz que os navios Gauleses punham toda sua esperança nas velas e aparelhos. César descreve certamente o arcabouço do convés dos navios inimigos, inteligência a que aliás se presta a definição que dá Festo da palavra transtra: — Tigna, quae ex pariete in parietem porriguntur.
  27. Com o rostro: os navios romanos de combate tinham na proa um esporão de bronze, com que arrombavam os navios inimigos, quando, encontrando-os com violência, os tomavam de lado.Adotamos o termo latino, rastro, que já vem aliás nos dicionários portugueses, porque designa muito melhor a espécie de arma de que se trata, que o nosso esporão. Da mesma forma, no cap. 8 do livro II, adotámos do latim, tormento, máquina bélica de arrojar pedras, por nos parecer que o termo português, trabuco, não exprime exatamente o mesmo.
  28. Armadas as torres: estas torres se levantavam de repente sobre os navios romanos, por meio de peças movediças. É o turres excitare, este meio não podia servir contra os navios dos Venetos, cujas popas ficavam a cavaleiro das torres.
  29. Quase à feição das foices murais: estas foices serviam para arrancar as pedras do muro da praça sitiada. Empregavam-nas aqui, encabando-as em longos varapaus, longuriis.
  30. A hora quarta, desde a quarta hora do dia diz o original, o que, segundo nossa maneira de computar o tempo, corresponde às dez horas do dia.
  31. Como escravos, ou sub corona, o que era infamante, porque os prisioneiros de guerra eram vendidos, sub hasta, em hasta pública. O português não tem expressão correspondente à latina.
  32. Um dos principais povos da Lugdunense, vizinhos dos Carnutes.
  33. Os de Evreux.
  34. Os Venetos tomados pela Venecia.
  35. Vê-se daqui quão precaria era a autoridade dos chefes entre os gauleses.
  36. Os feixes da fachina.
  37. Os Sonciates habitavam o distrito de Nerac e o vale de la Bayse.
  38. Leitoure.
  39. Outras edições trazem Adcantuano.
  40. Soldarios: querem alguns que daí venha a palavra soldados.
  41. Os Vocates ocupavam o atual distrito de Bazas (Gironda).
  42. Os Tarusates habitavam o vale do Adour (Landes).
  43. Na guerra que sustentou em Espanha, Sertorio tirou grande número de auxiliares da Aquitania.
  44. A ordem de batalha dos Romanos era ordinariamente em três linhas, triplice acie, Crasso contravém a este costume para estender um pouco mais a sua frente de batalha, e porque não tinha confiança nos auxiliares para deixá-los nos flancos, como se praticava.
  45. Da trincheira.
  46. Porta decumana: a porta de detrás, ou a mais retirada do inimigo. César emprega o termo latino, porque os Aquitanios tinham fortificado arraiais à maneira dos Romanos.
  47. Povos da Biscaia. Os Cantabros estão aqui pela Cantabria, ou pelo país que habitavam.
  48. Os de Baiona.
  49. Os de Bigorre.
  50. Os de Mauleon.
  51. Os de Condom.
  52. Os de Lectuore.
  53. Os de Auch.
  54. Os de Saint-Gaudens (Haut-Garone).
  55. Os de Saint-Sever (Landes).
  56. Os de Dax (Landes).
  57. As últimas bagagens: as bagagens que seguiam a retaguarda do exército dos bárbaros.
  58. Sob as peles: isto é, sob as tendas, pois estas eram feitas de peles; e daí a expressão, tendere pelles, ou simplesmente tendere, armar tendas. As contínuas chuvas tornavam necessário ao soldado o abrigo das barracas, hibernacula.
  59. Cidades, na acepção de povos, nações.