Comentários sobre a Guerra Gálica/Introdução do tradutor

Empreendemos e estampamos esta nossa tradução dos Comentários de Caio Júlio César; primò, porque não nos consta que haja em português versão alguma deles, nem boa, nem má, que a dispense; secondò, porque um dos melhores meios de combater a corrupção do idioma, proveniente de péssimas traduções do francês, é seguramente fazer versões do latim, língua mãe do português, na qual se pode restaurar o estilo com bons fundamentos do dizer; terciò, porque julgamos prestar serviço à mocidade brasileira, facilitando-lhe a inteligência de um dos primeiros clássicos latinos, adotado geralmente nas aulas para uso dos principiantes.

A obra que passamos do latim para o pátrio idioma, foi escrita por uns dos maiores homens de toda a antiguidade conhecida, desde os tempos em que a história deixou de envolver-se em fábulas, as quais, por mais bem explanadas que sejam, rodeiam de trevas os fatos os mais simples, gerando confusão em nosso espírito.

Caio Júlio César, o primeiro ditador perpétuo de Roma, ou melhor, o primeiro imperador romano, depois que esta palavra começou a designar o soberano, foi grande nas armas, grande nas letras, grande na ciência de dirigir homens em geral, reunindo num e o mesmo sujeito três qualidades eminentes em qualquer época da civilização humana, das quais uma só basta para formar o grande homem, e cercá-lo de bem merecida celebridade no seu século e no porvir.

Como capitão só tem iguais, através de tantos séculos como os que se contam da civilização grega e romana até nós, em Alexandre Magno de Macedônia, e Napoleão Primeiro de França, sendo mui superior a Pompeu que lhe disputou o império e a celebridade, e a nenhum dos três pode ser equiparado em talentos militares, posto tivesse no seu tempo o nome de grande.

Como homem de letras foi um dos literatos mais abalizados de Roma no tempo que mais nela floresceram as letras latinas, rival de Cicero na oratória, e, no gênero de história a que se dedicou, um dos primeiros, pois ainda ninguém que se propusesse historiar os próprios feitos, o excedeu no decurso de tantos séculos. Pelo contrário, Xenofonte que lhe serviu de modelo na sua famosa "Retirada dos Dez Mil", foi, com ser historiador de grande mérito, por ele igualado, se não excedido.

Como político e estadista poucos se lhe assemelham. Não pretendemos certamente estabelecer comparações, que nem a diversidade dos tempos, nem a das circunstâncias comportam, mas é sabido que o império de Alexandre Magno se desmoronou por sua morte, assim como o de Napoleão Primeiro com sua queda, e o de César permaneceu muito séculos intacto. Do primeiro, dividido e retalhado entre os generais de Alexandre, apenas restou o domínio dos gregos na Ásia e no Egito até as conquistas dos romanos; do segundo, inteiramente dissolvido, apenas o influxo latente em França e na Itália, o qual, obrando surdamente até predominar, produziu o Império Francês do imperador Napoleão Terceiro, e, ultimamente, o reino de Itália do rei Victor Emanuel; o terceiro, porém, só se dividiu e desmoronou depois que Constantino transferiu a série da monarquia para Constantinopla, ou longos anos depois de sua fundação.

Que César foi o fundador do Império romano propriamente dito, ou do império com um chefe político e supremo, não há a menor dúvida; pois o domínio de Sila não foi senão o triunfo da aristocracia de que ele era chefe, sobre o democracia de que era chefe Mario, e não o domínio pessoal de um só como o de César; nem Sila faccionário, feroz e sanguinário, assim como Mario, é para ser em coisa alguma comparado com César.

A supremacia contrabalançada, exercida por Pompeu, assemelha-se muito mais à de Sila, que a que foi depois exercida por César e seus sucessores, porque Pompeu era simplesmente o chefe da aristocracia como Sila, e não o chefe da nação como hoje diríamos, e o foi em realidade César quando suplantou seu contendor, sujeitando a seu domínio todo o orbe romano.

O triunfo de César não foi o triunfo da democracia em que se ele apoiou para chegar ao poder supremo, mas o triunfo de um homem sobre as instituições que só ficaram existindo de nome; nem foi como chefe de partido que os conjurados da nobreza o apunhalaram no senado, mas como usurpador da soberania nacional, e destruidor da liberdade romana que acabou com o seu domínio.

O primeiro e principal distintivo da soberania pessoal entre os Imperadores romanos depois de César foi a TRIBUNITIA POTESTAS, ou o título de tribuno do povo, como para indicar que em nome e por delegação do povo obravam, subsistindo aparentemente todos os cargos da antiga república, que sob a influência e o bom querer dos mesmos eram distribuídos aos cidadãos romanos, assim como um fantasma de senado, mero instrumento dos caprichos imperiais.

Percorra-se a história de todas as idades desde os tempos mais remotos até nós, e o grande vulto de César, general, historiador e político, sobressairá sempre nela, não simplesmente como o de um homem extraordinário, mas como o de um prodígio de gênio!

Sob o modesto título de COMENTÁRIOS, ou de simples Memórias, deixou-nos o primeiro Imperador romano uma sucinta, bem delineada e ainda mais bem escrita história das guerras que empreendeu, rivalizando nela com os grandes modelos de Grécia e Roma. em pureza de linguagem, primor de estilo, veracidade, clareza, eloquência, sem desfigurar o seu trabalho com as fábulas que algures deturpam a história de Tito Livio, nem impregná-lo do fel que reçuma por vezes na de Tacito. E tanto é isso mais para admirar que compôs os seus Comentários durante uma vida agitadíssima, no meio dos acampamentos e trabalhos militares, ao estrepito das armas, de que se viu sempre cercado, não lhe consentindo sua morte prematura pôr-lhes a última lima, como sem dúvida o faria, se continuasse a viver mais alguns anos. Por isso desculpa têm assim as faltas, como os descuidos, que neles se notam, sendo que a mor parte dos últimos à ignorância dos copistas deve ainda ser atribuída.

Tais como chegaram até nós, com as feridas que lhes fez a mão da ignorância, e as lacunas ocasionadas pelos estragos do tempo, são os COMENTÁRIOS de César um dos principais monumentos históricos de toda a antiguidade clássica.

Quanto à parcialidade de que é taxado o autor quando historeia a Guerra Civil, por ser chefe do partido contrário ao de Pompeu, e antagonista deste, a sua elevada e perspicaz inteligência como que lhe serve de corretivo, fazendo com que não oculte ele circunstância alguma que lhe seja desfavorável, pelo menos em tudo que respeita à direção, eventualidades e peripécias da guerra, que era o que tinha principalmente em vista descrever, nem ajuíze de seu contendor senão com moderação, e isso só pelas consequências emanadas dos fatos.

Se os escritos são o transunto fiel do homem que os compôs, os COMENTÁRIOS de César dão-nos a justa medida das faculdades superiores e extraordinárias deste homem assombroso, manifestando sua cabal instrução em tudo que se podia saber no seu tempo, seus incomparáveis talentos militares que o colocavam acima de todos os generais contemporâneos e só lhe consentiam rivais no passado e no porvir, seu seguro e fino tato político que lhe aconselhava perdoar aos vencidos enquanto Pompeu e seus tenentes mandavam matar os prisioneiros que faziam, sua grandeza de alma superior aos acontecimentos e só igual à sua ambição, e a nobreza e generosidade de seu caráter que foi ocasião próxima de sua morte.

Todas essas admiráveis qualidades, porém, que o rodeavam de um prestígio irresistível a quanto se punha com ele em contato, foram manchadas por um grande crime, o de haver escravizado sua pátria, crime igual ao cometido por Napoleão I no princípio deste século.

César, na errada crença em que estavam os romanos de que era virtude matar o tirano ou o usurpador, foi punido de sua ambição com vinte e três punhaladas, que, assassinando o homem, não destruiram sua obra, filha da mesma corrupção de Roma, como demonstrou o reinado de seus sucessores, começando em seu sobrinho e herdeiro Otávio Augusto.

Napoleão I, em outros tempos e sob a ordem de outras ideias, o foi da sua pelo longo martírio do exílio de Santa Helena, que, trucidando moralmente o homem, não obstou a que sua dinastia fosse restabelecida no trono de França, e influísse nos destinos do mundo político.

Nem César nem Napoleão I hesitaram nunca em sacrificar milhões de homens aos cálculos de sua ambição, ou, simplesmente, de sua glória. Limitado à Europa, e por momentos ao Egito e à Síria, somente foi mais estreito o teatro do segundo que o do primeiro, que teve por área todo o orbe romano, ou as três partes do antigo continente até onde chegaram as águias de Roma.

Suposto fossem eles mui diversos em caráter, achamos todavia muito mais pontos de semelhança entre esses dois homens, um patrício e da mais alta aristocracia, outro da classe média, os quais sendo ambos particulares, conquistaram à força de gênio o poder supremo e tudo quanto se lhes pôs diante, que entre qualquer deles e Alexandre Magno, que nascendo rei, e na posse do soberano poder, foi um mero conquistador de povos e impérios, comparável, MUTATIS MUTANDIS, a Sesostris e a Ciro.

Ninguém há que, lendo com atenção os COMENTÁRIOS de César, não reconheça nele o primeiro romano a todos os respeitos, ou o mais digno do império do mundo que então se disputava.

Pompeu, o primeiro representante da aristocracia romana, um dos filhos mais mimosos da fortuna, hábil general sem dúvida, mas inferior a sua fama, caráter indefinido e medíocre, só resplandeceu e foi grande enquanto não teve de lutar com o gênio de César, diante do qual se eclipsou.

Quanto à corrupção atribuída a César pelas memórias do tempo, quem estuda seriamente o gênio insondável deste singular ambicioso, capaz de todas as virtudes, enxerga ainda nisso um meio político, de que ele lançou mão, para descer aos homens de uma sociedade gangrenada até a medula dos ossos, como era a República Romana no seu tempo, e dominá-los pelos seus mesmos vícios.

Deixando porém no seu pedestal o grande vulto do primeiro imperador romano, que há de ser sempre admirado enquanto houver memória de homens, venhamos à nossa atual tradução de seus inimitáveis COMENTÁRIOS, para dar a quem importa, a razão do que fizemos, ou não julgamos conveniente fazer.

Traduzimos só sete livros da Guerra Gaulesa conjuntamente com os três da Guerra Civil, e não os Comentários atribuídos a Hircio Pansa e à Ópio, porque nosso fim foi dar ao leitor o transunto fiel, ainda que apagado, do que é sem contradição obra de César, ou do que nos resta de sua eloquente pena, e não a história completa de todas as guerras por ele feitas e concluídas. Nos COMENTÁRIOS escritos de sua mão é que este extraordinário personagem sui generis, que parece crescer com os séculos, se nos mostra em toda a luz, e torna para nós um perfeito objeto de estudo.

Trabalhamos por fazer uma tradução no rigoroso sentido em que deve ser tomada esta palavra, e não uma imitação, e ainda menos uma paráfrase, porque entendemos que qualquer das duas últimas espécies de versão não é de ordinário senão um trivial expediente para fugir às dificuldades, que não raro apresenta o texto de obras compostas em língua morta diversa em sua estrutura de nossos atuais idiomas, e viciadas em alguns lugares por mão intrusa e profana. E se neste árduo empenho formos bem sucedidos a mor parte das vezes, dar-nos-emos por pagos de nosso trabalho; pois não nutrimos a louca vaidade de havê-lo sido todas, tendo de lutar com um dos modelos de estilo histórico da antiguidade clássica.

Sempre achamos sumamente ridículo nas traduções francesas de clássicos latinos a maneira por que figuram os nomes dos povos e lugares, trocando-os por outros modernos, que não são as mais das vezes exatamente os mesmos; o que tanto monta como em assuntos sérios e reais, todo trajado de casaca pantalonas, chapéu e luvas, a um antigo germano, gaulês ou celta, sarmata, etc., quando nos fictícios, ou em nossos teatros, tem o bom senso cuidado de apresentá-los caracterizados com suas vestes e ademanes usuais! Tratámos pois de evitar esta espécie de escolho, conservando os antigos nomes dos povos, cidades, montes, rios, ilhas, bosques e pondo em abreviadas notas os seus equivalentes modernos, unicamente para servir às necessidades da geografia e topografia comparadas. Assim, julgamos conservar a primitiva cor local, e o resaibo de antiguidade, que devem transpirar da versão de uma obra escrita cerca de dezenove séculos atrás, e que procuramos ainda corroborar com o emprego de alguns termos portugueses expressivos, que vão mal indevidamente caindo em desuso, como USANÇA, PODERIO, HONRARIA, HOSTE e outros. Podíamos também em vez de SEQUANOS, BOIOS, HEDUOS, etc., dizer como os modernos, SEQUANESESES, BOIESES, HEDUESES ou HEDUANOS, mas reputámos mais consentâneo ao que requeria a gravidade do assunto manter a forma primitiva de tais nomes, aportuguesando-lhes tão somente a terminação.

Esforçamo-nos por ser sempre precisos e concisos todas as vezes que o pudemos, sem prejuízo do sentido, para compensar com estas virtudes a constante harmonia e consonância do latim, espécie de língua musical, mui diversa neste ponto dos idiomas que falamos hoje, mais próprios para exprimir o movimento e rapidez que a majestade e cadência sustentada dos sons, as quais, quando empregadas a propósito pelos oradores romanos, faziam romper em aplausos o mesmo povo ignorante.

Assim, por exemplo, os verbos que vem ordinariamente no original colocados no pretérito perfeito por causa da harmonia e consonância das respetivas terminações os pusemos nós na tradução as mais das vezes no presente, para dar a precisa rapidez à narração histórica, como em casos tais praticam os nossos bons autores.

Não poupamos entretanto diligência para corresponder no português à harmonia do latim, empregando com preferência, quanto à sintaxe das proposições, a ordem inversa mais análoga à indole da língua que a direta, e adotando, quanto à das palavras, a mais ajustada colocação de complementos dos sujeitos e atributos, que nos foi possível combinar.

No que, porém, respeita à versão do pensamento, e expressão natural ou figurada, nunca achamos menos a língua portuguesa, filha legítima da latina, tanto na estrutura das vozes, como em muitas maneiras de dizer análogas e até idênticas. Assim, se nesta parte se notarem faltas na tradução, a nós unicamente nos devem ser atribuídas, e não ao nosso belo idioma que é um dos mais ricos e abundantes, quer em variedade de construções e idiotismos, quer em cópia da termos expressivos, sonoros e acomodados a todo gênero de assuntos.

Uma das grandes dificuldades das versões do latim para os modernos idiomas é certamente a passagem dos longos discursos indiretos, a que se prestam admiravelmente os infinitivos latinos, dependentes pela mor parte ou de verbos do modo finito ocultos, ou ainda de verbos desse modo e simples substantivos claros, que contenham em si a força dos verbos, DIZER, EXPOR, ANUNCIAR, ou outros análogos, mas julgamos havê-la superado auxiliados com as variadas construções do português, como emprego de infinitivos pessoais, elipses da conjunção QUE, e idiotismos equivalentes aos latinos.

Oxalá que este ensaio que fazemos com a versão dos COMENTÁRIOS de César, superior por ventura às nossas forças, sirva de estímulo aos professores e literatos brasileiros e portugueses para nos enriqueceram com boas traduções do latim e grego, de que é pobríssima a literatura portuguesa, base e parte essencial de nossa nascente literatura.

É engano manifesto supor que as traduções, as dignas deste nome entende-se, são trabalhos meramente secundários, impróprios para ocupar os bons engenhos, e sem influência na literatura de qualquer país, ou que esta só deve constar de obras originais. Há traduções que valem bem excelentes obras originais, e são mui superiores às medíocres, em pureza de linguagem e perfeição de estilo. Tais são, por exemplo, do latim — a tradução ou paráfrase dos Salmos de David pelo padre Antônio Pereira de Souza Caldas; — a tradução de diversas Metamorfoses de Ovidio por Bocage; — a continuação da tradução das mesmas metamorfoses pelo distinto poeta, A. Feliciano de Castilho; — a tradução das obras completas de Virgílio pelo nosso ilustre comprovinciano, Odorico Mendes; — a tradução DE REBUS EMMANUELIS do bispo Jeronimo Osório pelo padre Francisco Manoel do Nascimento; — a tradução do primeiro livro da História de Tito Livio por Barreto Feio; do francês, a tradução dos Mártires de Chateaubriand pelo padre Francisco Manoel do Nascimento; — a tradução da Atalia de Racine pelo padre Francisco José Freire; — as traduções dos Jardins de Delille e das Plantas de Castel por Bocage.

Em traduções como essas que apontámos, iguais em beleza de estilo às melhores obras originais, haverá sempre muito que aprender para os amantes do pátrio idioma e da boa literatura.

A paráfrase dos SALMOS é uma obra prima, superior em rasgos poéticos e inimitável perfeição de estilo a quantas paráfrases de Salmos temos lido em outras línguas, e tão magnífica que eleva o padre Souza Caldas à categoria de um dos primeiros líricos modernos.

A tradução dos MÁRTIRES é um riquíssimo tesouro de linguagem, estilo poético e poesia imitativa, e tão caudal, que, depois dos imortais LUSÍADAS, é por ventura o livro em que o estilo épico se levanta mais alto na língua portuguesa.

Temos lido em outras línguas, algumas traduções das METAMORFOSES mas nenhuma das que vimos, reproduziu ainda as Fábulas de Ovidio com tanta galhardia, graça, naturalidade e harmonia, como a de Bocage. É pena que tão insígne tradutor não nos deixasse mais composições deste gênero, em que primava.

A continuação da tradução das METAMORFOSES por Castilho não é feita com gosto menos apurado, nem em versos menos harmoniosos e naturais, que a de Bocage, seu modelo.

Da tradução das obras completas de Virgílio, a parte que compreende a ENEIDA principalmente, pode passar por uma obra clássica, e nada tem que invejar às boas traduções deste poema feitas em outras línguas.

Suposto seja a literatura portuguesa mui pobre de boas traduções, cumpre, todavia, notar, que essas poucas boas que existem, ou são iguais ou superiores a quanto há de melhor neste gênero em outras línguas; pois nada conhecemos de comparável em língua viva à admirável paráfrase dos SALMOS e à riquíssima tradução dos MÁRTIRES, a não ser a soberba tradução ou imitação do OSSIAN de Macpherson feita em italiano pelo abade Cesaroti.

Nenhum desses insignes tradutores que citamos como outros tantos clássicos, e em cujo número figuram poetas de primeira ordem, julgou degradar-se da justa celebridade que adquiriu por suas composições originais, dando-nos em português, enriquecidas com todos os donaires e galas da língua, as melhores obras de outros engenhos.

Os franceses que, de ordinário, tomamos por modelos de bom gosto em tudo, e cuja língua não é tão própria para verter do latim, como o português, têm nada obstante enriquecido sua literatura, uma das mais ricas em obras originais, com muitas e boas traduções, paráfrases e imitações dos autores gregos e latinos, sem se julgarem decaídos da nomeada e glória de literatos, porque transladam o melhor da literatura clássica para a sua, que com isso mais se opulenta e apura.

Se houvéssemos feito outro tanto, teríamos de certo criado um poderoso corretivo contra os grosseiros e bárbaros galicismos, que nos vão todos os dias introduzindo na língua as detestáveis traduções do francês feitas por gente ignorante, e são um triste documento de quanto as traduções podem influir na literatura, ou de sua grande importância literária.

O desejo de concorrermos com o nosso fraco contingente para inspirar à mocidade brasileira o gosto do estudo comparado das línguas, que não consiste só na teoria, mas também, e especialmente na prática, foi, para bem dizer, o principal motivo que nos impeliu a empreender, depois da publicação das POSTILAS DE GRAMÁTICA GERAL APLICADA À LÍNGUA PORTUGUESA, este novo e mais volumoso trabalho, que, se não corresponder a seu fim por insuficiência nossa, ao menos não será de todo infrutífero para os principiantes no latim, atenta a falta absoluta que se experimenta em português de uma tradução dos COMENTÁRIOS de César.

Para facilitar o estudo a que aludimos, tivemos o cuidado de estampar o texto latino ao lado da tradução portuguesa, poupando assim ao leitor o trabalho de folhear outro livro para confrontar a segunda com o primeiro. Quanto à edição do texto, seguimos geralmente com leve diferença na ortografia a edição feita em Leipzig por Francisco Vehler no ano de 1885, por nos parecer a melhor de todas quantas edições dos Comentários de César consultamos.