VII

Eis-me de repente lançado no turbilhão do mundo.

Ao cabo de quatro annos de tirocinio na advocacia, a imprensa diaria, na qual apenas me arriscara como folhetinista, arrebatou-me. Em fins de 1856 achei-me redactor chefe do Diario do Rio de Janeiro.

É longa a historia dessa lucta, que absorveu cerca de tres dos melhores annos de minha mocidade. Ahi se acrisolaram as audacias que desgostos, insultos, nem ameaças conseguiram quebrar até agora; antes parece que as afiam com o tempo.

Ao findar o anno, houve idéa de offerecer aos assignantes da folha, um mimo de festa. Sahiu um romancete, meu primeiro livro, se tal nome cabe á um folheto de 60 paginas.

Escrevi Cinco minutos em meia duzia de folhetins que iam sahindo na folha dia por dia, e que foram depois tirados em avulso sem nome do author. A promptidão com que em geral antigos e novos assignantes reclamavam seu exemplar, e a procura de algumas pessoas que insistiam por comprar a brochura, somente destinada á distribuição gratuita entre os subscriptores do jornal; foi a unica, muda mas real, animação que recebeu essa primeira prova.

Bastou para suster a minha natural perseverança. Tinha leitores e expontaneos, não illudidos por falsos annuncios. Os mais pomposos elogios não valiam, e nunca valerão para mim, essa silenciosa manifestação, ainda mais sincera nos paizes como o nosso de opinião indolente.

Logo depois do primeiro ensaio, veiu a Viuvinha. Havia eu em epocha anterior começado este romancete, invertendo a ordem chronologica dos acontecimentos. Deliberei porem mudar de plano, e abri a scena com o principio da acção.

Tinha eu escripto toda a primeira parte, que era logo publicada em folhetins; e contava aproveitar na segunda o primitivo fragmento; mas quando o procuro, dou pela falta.

Sabidas as contas, Leonel[1] que era então o encarregado da revista semanal, Livro do domingo, como elle a intitulou; achando-se um sabbado em branco pediu-me alguma coisa com que encher o rodapé da folha. Occupado com outros assumptos, deixei que buscasse entre os meus borrões. No dia seguinte lograva elle aos leitores dando-lhes em vez da habitual palestra, um conto. Era este o meu principio de romance ao qual elle tinha posto, com uma linha de reticencias e duas de prosa, um desses subitos desenlaces que fazem o effeito de uma guilhotina litteraria.

Fatigado do trabalho da vespera, urgido pelas occupações do dia, em constantes tribulações, nem sempre podia eu passar os olhos por toda a folha.

Nesse domingo não li a revista, cujo teor já me era conhecido, pois sahira-me da pasta.

Imagine, como fiquei, em meio de um romance, cuja continuação o leitor já conhecia oito dias antes. Que fazer? Arrancar do Livro do domingo, as paginas já publicadas? Podia-o fazer; pois o folhetinista não as dera como suas, e deixara entrever o author; mas fôra matar a illusão.

D'ahi veiu o abandono desse romancete, apezar dos pedidos que surgiam á espaços, instando pela conclusão. Só tres annos depois, quando meu amigo e hoje meu cunhado Dr. Joaquim Bento de Souza Andrade, quiz publicar uma segunda edição de Cinco Minutos, escrevi eu o final da Viuvinha, que faz parte do mesmo volume.

O desgosto que me obrigou a truncar o segundo romance, levou-me o pensamento para um terceiro, porem este já de maior folego. Foi o Guarany, que escrevi dia por dia para o folhetim do Diario, entre os mezes de fevereiro e abril de 1857, si bem me recordo.

No meio das labutações do jornalismo, oberado não somente com a redacção de uma folha diaria, mas com a administração da empreza, desempenhei-me da tarefa que me impuzera, e cujo alcance eu não medira ao começar a publicação, apenas com os dois primeiros capitulos escriptos.

Meu tempo dividia-se desta forma. Accordava por assim dizer na meza do trabalho; e escrevia o resto do capitulo começado no dia antecedente para envial-o á typographia. Depois do almoço entrava por novo capitulo, que deixava em meio. Sahia então para fazer algum exercicio antes do jantar no Hotel de Europa. A tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escriptorio da redacção, onde escrevia o artigo edictorial e o mais que era preciso.

O resto do serão era repousar o espirito dessa ardua tarefa jornaleira, em alguma distração, como o theatro e as sociedades.

Nossa casa no Largo do Rocio n. 73 estava em reparos. Trabalhava eu n'um quarto do segundo andar, ao estrepito do martelo, sobre uma banquinha de cedro que apenas chegava para o mister da escripta; e onde a minha velha caseira Angela servia-me o parco almoço. Não tinha comigo um livro; e soccorria-me unicamente á um canhenho, em que havia em notas o fructo de meus estudos sobre a natureza e os indigenas do Brasil.

Disse alguem, e repete-se por ahi de outiva que o Guarany é um romance ao gosto de Cooper. Si assim fosse, haveria coincidencia, e nunca imitação; mas não é. Meus escriptos se parecem tanto com os do illustre romancista americano, como as varzeas do Ceará com as margens do Delaware.

A impressão profunda que em mim deixou Cooper foi, já lhe disse, como poeta do mar. Dos Contrabandistas, sim, poder-se-hia dizer, apezar da originalidade da concepção, que foram inspiradas pela leitura do Piloto, do Corsario Vermelho, do Varredor do Mar etc. Quanto à poesia americana, o modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre que eu tive, foi esta explendida natureza que me envolve, e particularmente a magnificencia dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescencia, e foram o portico magestoso por onde minh'alma penetrou no passado de sua patria.

D'ahi, desse livro secular e immenso, é que eu tirei as paginas do Guarany, as de Iracema, e outras muitas que uma vida não bastaria á escrever. D'ahi e não das obras de Chateaubriand, e menos das de Cooper, que não eram senão a copia do original sublime, que eu havia lido com o coração.

O Brasil tem, como os Estados Unidos, e quaesquer outros povos da America, um periodo de conquista, em que a raça invasora destróe a raça indigena. Essa lucta apresenta um caracter analogo, pela semelhança dos aborigenes. Só no Perú e Mexico differe.

Assim o romancista brasileiro que buscar o assumpto do seu drama nesse periodo da invasão, não póde escapar ao ponto de contacto com o escriptor americano. Mas essa approximação vem da historia, é fatal, e não resulta de uma imitação.

Si Chateaubriand e Cooper não houvessem existido, o romance americano havia de apparecer no Brasil á seu tempo.

Annos depois de escripto o Guarany, reli Cooper afim de verificar a observação dos criticos e convenci-me de que ella não passa de um rojão. Não ha no romance brasileiro um só personagem de cujo typo se encontre o molde nos Mohicanos, Espião, Outario, Sapadores e Leonel Lincoln.

No Guarany derrama-se o lirismo de uma imaginação moça, que tem como a primeira rama o vicio da exhuberancia; por toda a parte a limpha, pobre de seiva, brota em flor ou folha. Nas obras do iminente romancista americano, nota-se a singeleza e parcimonia do prosador, que se não deixa arrebatar pela fantazia, antes a castiga.

Cooper considera o indigena sob o ponto de vista social; e na descripção dos seus costumes foi realista; apresentou-o sob o aspecto vulgar.

No Guarany o selvagem é um ideal, que o escriptor intenta poetisar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os chronistas, e arrancando-o ao ridiculo que sobre elle projectam os restos embrutecidos da quasi extincta raça.

Mas Cooper descreve a natureza americana, dizem os criticos. E que havia elle de descrever, senão a scena do seu drama? Antes delle Walter Scott deu o modelo dessas paisagens á penna, que fazem parte da cor local.

O que se precisa examinar é si as descripções do Guarany têm algum parentesco ou affinidade com as descripções de Cooper; mas isso não fazem os criticos, porque dá trabalho e exige que se pense. Entretanto basta o confronto para conhecer que não se parecem nem no assumpto, nem no genero e estylo.

A edicção avulsa que se tirou do Guarany, logo depois de concluida a publicação em folhetim, foi comprada pela livraria do Brandão por um conto e quatro centos mil reis que cedi á empreza. Era essa edicção de mil exemplares; porem trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se faziam á formiga na typographia. Restavam pois setecentos, sahindo o exemplar á 2$000.

Foi isso em 1857. Dois annos depois comprava-se o exemplar á 5$000 e mais, nos belchiores que o tinham á cavallo do cordel, embaixo dos arcos do Paço; d'onde o tirou o Xavier Pinto para sua livraria da rua dos Ciganos. A indifferença publica, sinão o pretencioso desdém da roda litteraria, o tinha deixado cahir nas pocilgas dos alfarrabistas.

Durante todo esse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer elogio, critica ou simples noticia do romance, á não ser em uma folha do Rio Grande do Sul, como razão para a transcripção dos folhetins. Reclamei contra esse abuso que cessou; mas posteriormente soube que aproveitou-se a composição já adiantada para uma tiragem avulsa. Com esta anda actualmente a obra na sexta edição.

Na bella introducção que Mendes Leal escreveu ao seu Calabar, se extasiava ante os thezouros da poesia brasileira, que elle suppunha completamente desconhecidos para nós. «E tudo isto offerecido ao romancista, virgem, intacto, para escrever, para animar, para reviver.»

Que elle o dissesse não ha extranhar; pois ainda hoje os litteratos portuguezes não conhecem da nossa litteratura, senão o que se lhes manda de encommenda com um offertorio de mirra e incenso. Do mais não se occupam; uns por economia, outros por desdem. O Brasil é um mercado para seus livros e nada mais.

Não se comprehende porem que uma folha brasileira, como era o Correio Mercantil, annunciando a publicação do Calabar, insistisse na idéa de ser essa obra uma primeira licção do romance nacional dada aos escriptores brasileiros, e não se advertisse que dois annos antes um compatriota e seu ex-redactor se havia estreado nessa provincia litteraria.

«Ha muito que o author pensava na tentativa de criar no Brasil para o Brasil um genero de litteratura para que elle parece tão affeito e que lhe pode fazer serviços reaes.» Quando Mendes Leal escrevia em Lisboa estas palavras, o romance americano já não era uma novidade para nós; e tinha no Guarany um exemplar, não arreiado dos primores do Calabar, porem incontestavelmente mais brasileiro.


  1. Conselheiro Leonel de Alencar, hoje Barão de Alencar.