TRANSCRIÇÃO COMENTADA - COMO SE FAZ UM HERÓI:
AS LINHAS DE FORÇA DO POEMA DE GILGÁMESH
Jacyntho Lins Brandão
Doutor em Letras Clássicas pela USP
Professor Titular da UFMG/FALE
jlinsbrandao@yahoo.com.br
Recebido em: 24/05/2015 – Aceito em 20/07/2015

Resumo: O trabalho é uma tradução comentada da qual a primeira parte (a primeira tabuinha) se encontra publicada no volume 10 (2014) da Revista Nuntius antiquus. Nesse sentido, o objetivo é duplo: de um lado, apresentar algo de minha tradução da versão babilônica clássica da chamada epopeia de Gilgámesh (cujo título original é Ele o abismo viu), atribuída ao "exorcista" (mašmaššu) Sîn-l qi-unninni e composta por volta do século XIII a. C.; por outro lado, examinar as linhas de força temáticas que dão coesão ao poema, considerando a conexão que nele têm os feitos heroicos com o sexo, a morte e a vida civilizada.

Palavras-Chave: Epopeia de Gilgámesh, Poemas babilônicos, Feitos heróicos

Abstract: The work is a commented translation whose first part (the first tablet) was published in Nuntius Antiquus Journal, volume 10 (2014). In this sense, the goal is twofold: on the one hand, present something of my translation of the classical Babylonian version called Epic of Gilgámesh (whose original title is He saw the abyss), attributed to the "exorcist" (mašmaššu) Sîn-l qi-unninni and composed around the thirteenth century B. C.; On the other hand, examine the thematic power lines that give cohesion to the poem, considering the connection that the heroic deeds with sex, death and civilized life have with the poem.

Keywords: Epic of Gilgámesh, Babylonian Poems, Heroic Deeds


Meu objetivo é duplo: de um lado, apresentar algo de minha tradução da versão babilônica clássica da chamada epopeia de Gilgámesh (cujo título original é Ele o abismo viu), atribuída ao "exorcista" (mašmaššu) Sîn-lēqi-unninni e composta por volta do século XIII a. C.;[1] por outro lado, examinar as linhas de força temáticas que dão coesão ao poema, considerando a conexão que nele têm os feitos heroicos com o sexo, a morte e a vida civilizada.

Em primeiro lugar cumpre chamar a atenção para essa circunstância excepcional de conhecermos um poeta que viveu nada menos que por volta de 1200 a. C. – apenas recorde-se que, o mais antigo que possa ser Homero, ele sem dúvida não é de antes de 800 a. C. A atribuição do texto a Sîn-lēqi-unninni encontra-se em catálogo redigido no primeiro terço do primeiro milênio a. C. e achado em Nínive, no qual se lê: “Série de Gilgámesh (iškar Gilgāmeš): da boca (ša pî) de Sîn-lēqi-unninni, [exorcista]”.[2] É claro que falar de autoria requer todas as precauções necessárias quando lidamos com o mundo antigo, da mesma forma, por exemplo, como devemos nos precaver ao afirmar que Homero é o “autor” da Ilíada. Todavia, se há uma grande possibilidade de que este que se chamou de Homero fosse antes um “aedo”, tendo em vista as peculiaridades de composição oral dos poemas, no caso de Sîn-lēqi-unninni temos uma certeza: trata-se de um escriba.[3]

A versão da “gesta” de Gilgámesh que a ele se deve, como acontece com relação a ciclos poéticos semelhantes, não constitui uma obra “original” (no sentido moderno), pois trabalha ele com uma tradição em sumério e acádio que já contava, em sua época, com mais de meio milênio, mas, diferentemente de Homero, não na forma de tradição oral, mas de escrita. Isso adquire, no presente caso, como no de outros textos, um aspecto decididamente concreto: a versão clássica identifica-se por uma série de doze tabuinhas de argila escritas na frente e no verso, o que se nomeia, como vimos, como iškar Gilgāmeš, o termo iškaru(m) apresentando esse uso especializado, como em iškar Etana (série de Etana), iškar mašmaššūti (série de encantamentos) etc. Portanto, é lidando com essa tradição escrita que Sîn-lēqi-unninni, ele próprio um escriba, compõe a sua versão do poema, a mão do “poeta” – ou propriamente “escritor” – deixando-se perceber sobretudo pela profundidade que imprime ao que se conta, ao trazer para primeiro plano a pergunta sobre a mortalidade do homem, que transforma o seu herói, de simples aventureiro, num verdadeiro sábio.[4]

Esse traço que define o poema clássico manifesta-se já no primeiro verso, sha naqba imuru, que é, aliás, o título da obra (conforme usual na tradição escriturística das línguas semitas), admitindo-se duas leituras – uma primeira, mais horizontal, “Ele tudo viu”, a segunda, mais vertical, “Ele o abismo viu” – já que o termo naqbu comporta tanto o significado de ‘tudo’ quanto nomeia o abismo subterrâneo de águas, cujo nome próprio é Apsû, donde provêm as fontes e que é a morada do deus Ea, cujo apanágio principal é a sabedoria. Diante desse dupla possibilidade, na tradução optei pela segunda, levando em conta, inclusive, que o segundo hemistíquio do mesmo verso esclarece que Gilgámesh viu “o fundamento da terra” (išdi mati):[5]

Ele o abismo viu, o fundamento da terra,
Ele - - - - conheceu, ele sabedor de tudo,
Gilgámesh o abismo viu, o fundamento da terra,
Ele - - - - conheceu, ele sabedor de tudo. (1, 1-4)[6]

Deve-se, contudo, admitir que as duas opções de leitura são possíveis, pela relação que se estabelece entre esse “ver” e o tema da viagem, o que não é incomum em narrativas heroicas, bastando recordar que Ulisses, na Odisseia, é por igual apresentado como alguém que “muito vagou” e “de muitos homens viu as cidades e a mente conheceu” (Odisseia 1, 2-3). Contudo, a leitura vertical do sentido de naqbu parece preferível porque o saber adquirido por Gilgámesh em sua grande viagem tem um sentido não só espacial, como também e sobretudo temporal, já que o principal conhecimento que ele adquire diz respeito ao que existia “antes do dilúvio”:

Ele - - - - da mesma maneira,
De todo saber, tudo aprendeu,
O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu,
Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era.
De distante caminho volveu, cansado e pacificado,
Numa estela pôs então o seu labor por inteiro. (1, 5-10)

Ora, como mais à frente se afirma que ele, Gilgámesh, “repôs os templos arrasados pelo dilúvio” e “instituiu ritos para toda a humanidade” (v. 43-44), essa restauração de templos e ritos, que restabelece os laços entre as eras ante e posdiluviana, parece ser o “todo saber” por ele adquirido e apresenta-se como o seu maior feito, que depende do contato com Uta-napíshti, o qual, com sua mulher, foi o único a sobreviver ao dilúvio na arca que construíra de acordo com as instruções dadas por Ea. A narrativa do dilúvio que Uta-napíshti faz a Gilgámesh na tabuinha 11 de Ele o abismo viu representa, portanto, um ponto de chegada de toda a trama, aquilo que transforma o rei famoso por seus feitos guerreiros no sábio que teve acesso aos segredos dos deuses e da condição humana.

Foi o fato de Ele o abismo viu conter essa narrativa do dilúvio que antecede a da Torah em pelo menos 500 anos que provocou grande interesse desde quando, em 3 de dezembro de 1872, George Smith apresentou essa parte do texto numa conferência na Society of Biblical Archaeology, em Londres. Mais interessante, contudo, que essa relação intertextual a posteriori – o relato da Bíblia não precisando nem parecendo depender diretamente de Ele o abismo viu, mas da vasta tradição mesopotâmica sobre o dilúvio de que este também se origina[7] – mais importante que isso é observar como o poema de Sîn-lēqi-unninni incorpora a narrativa do dilúvio, tomando-a de outro poema mais antigo, o chamado Atrahasis (Supersábio), cujo tema são as origens da humanidade.[8]

Mas o que mais interessa é o fato de que tomar uma parte de outro texto não contradiz em nada a técnica de composição babilônica e, em especial, a do próprio Sîn-lēqi-unninni, que, em Ele o abismo viu, incorporou de modo variado também a versão arcaica da saga de Gilgámesh, intitulada Proeminente entre os reis (šutur eli šarri). Isso fica suficientemente claro quando, no proêmio, se procede a uma espécie de poemofagia explícita – e com o neologismo o que pretendo é sublinhar que não se trata da antropofagia oswaldiana, nem propriamente das técnicas de intertextualidade a que estamos acostumados, em que sempre se supõe alguma digestão e ruminação, mas propriamente de engolir o poema anterior, sem mastigá-lo e digeri-lo, deixando-o como que exposto no fundo da garganta.

De fato o proêmio mostra duas partes: a primeira, que inicia com os versos acima citados, estende-se até o verso 28 e deve ser da autoria de Sîn-lēqi-unninni; a segunda se abre com o primeiro verso da versão antiga – Proeminente entre os reis – estendendo-se até o verso 62. O tom de ambas é em algo diverso. Na primeira parte, Gilgámesh é louvado por seus feitos enquanto os de um rei sábio que, para realizá-los, não se furtou a inúmeros trabalhos e penas; já a segunda parte opta por explorar uma visão mais grandiosa do herói e de suas façanhas.

Na parte nova do poema há dois grandes feitos atribuídos a Gilgámesh, o primeiro deles sendo a construção do templo de Ánu e Ishtar (o Eanna), bem como das muralhas de Úruk, para cuja comprovação da grandeza se convida o próprio leitor:

Ele fez a muralha de Úruk, o redil,
E o sagrado Eanna, tesouro purificado.

Vê sua base: é como um fio de lã,
Olha seus parapeitos que ninguém igualará.
Toma a escadaria, que há ali desde o início,
Aproxima-te do Eanna, residência de Ishtar,
O qual nem rei futuro nem homem algum igualará. (v. 11-17).

O segundo grande feito é a inscrição, pelo próprio protagonista, em tabuinha de lápis-lazúli, do relato que o leitor lê – de novo, portanto, usa-se do poderoso recurso de envolver e comprometer o recebedor com o que se conta.[9] Assim, prossegue o narrador:

Busca o cofre de cedro,
Rompe o ferolho de bronze,
Abre a tampa do tesouro,
Levanta a tabuinha lápis-lazúli, lê
O que Gilgámesh passou, todos os seus trabalhos (v. 24-28),

o que se segue imediatamente, em nova demonstração da perícia de composição de Sîn-lēqi-unninni, sendo, ao que parece, o proêmio encomiástico do poema antigo:

Proeminente entre os reis, herói de imponente físico,
Valente rebento de Úruk, touro selvagem indomável:
Vai à frente, é o primeiro.
Atrás vai e protege os irmãos.
Margem firme, abrigo da tropa,
Corrente furiosa que destroça baluartes de pedra.
Amado touro de Lugalbanda, Gilgámesh perfeito em força,
Cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun.[10]

Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:
Abriu passagens nas montanhas,
Cavou cisternas nas encostas do monte,
Cruzou o mar, o vasto oceano, até o sol nascente,

Palmilhou os quatro cantos, em busca da vida,

Chegou, por sua força, ao remoto Uta-napíshti,
Repôs os templos arrasados pelo dilúvio,
Instituiu ritos para toda a humanidade.

Quem há que a ele se iguale em realeza
E como Gilgámesh diga: este sou eu, o rei?
A Gilgámesh, quando nasceu, renome lhe deram:
Dois terços ele é um deus, um terço é humano.

A efígie de seu corpo, Bélet-íli a desenhou,
Realizou sua forma Nudímmud. (1, 29-50)[11]

A propósito desses recursos poéticos (e penso aqui a poética em seu sentido forte, ou seja, enquanto poiética, carpintaria) recorde-se que, diferentemente do que encontramos em Homero, a glória de Gilgámesh é por igual a glória da memória escrita, numa civilização que aprendera a escrever desde o terceiro milênio anterior a nossa era. Isso se expressa não só pelo recurso de apresentar a narrativa como o registro escrito pelo próprio herói numa tabuinha preservada num cofre, como por trazer-se o poema anterior, inscrito em tabuinhas de argila, para o interior do poema mais novo, como se este, o texto mais recente, fosse o próprio cofre de cedro que contém o texto anterior. O admirável em tudo isso é como há uma perspectiva temporal que atravessa a sincronia do presente de quem escreve e de quem, em tempos diferentes, lê, uma como que consciência longuíssima do tempo, possível de ser acessada justamente porque se dispõe de uma também longa tradição escrita.


Com esse amplo enquadramento, a narrativa desdobra-se pelas 11 tabuinhas, distribuída em quatro grandes movimentos que divido assim: a) os excessos do rei Gilgámesh em Úruk, que levam os deuses a criar para ele um par heroico, Enkídu; b) os feitos de ambos, compreendendo a morte de Húmbaba, guardião da floresta de cedros, e do touro do céu, enviado pela deusa Ishtar contra Úruk, por Gilgámesh ter repelido seu assédio amoroso; c) a enfermidade e a morte de Enkídu, que leva Gilgámesh a perambular em busca do segredo da imortalidade, chegando a lugares jamais palmilhados por algum homem, até o encontro com Uta-napíshti; d) o retorno do herói a Úruk, cansado e pacificado por saber que a morte é o lote inelutável do homem.

Tomando mais uma vez como parâmetro de comparação os poemas homéricos, observa-se que aqui, ainda que o texto seja menos longo, a ação se apresenta menos concentrada. Não é possível, por exemplo, calcular por qual período de tempo ela se desenrola, ao contrário do que se pode fazer com relação à Ilíada e à Odisseia, em que a marcação do passar dos dias constitui um poderoso recurso de verossimilhança, a recuperação de feitos que ultrapassam a moldura principal sendo posta na boca de personagens. Em Ele o abismo viu a única narrativa enquadrada é a do dilúvio, o resto ficando por conta do narrador principal. Ora, tudo isso poderia levar a um texto um tanto quanto frouxo, não fosse justamente a presença de elementos que dão firme coesão à narrativa, os quais passo a analisar, nomeadamente a relação dos feitos heróicos com o sexo, a vida civilizada e a morte, enquanto os traços que definem a condição humana.

Pode parecer que essas linhas de força carecem de conexão, mas é justamente na forma como elas se enredam umas nas outras que acredito repousa toda a “lógica” do poema. Vou adotar um método de exposição capaz de, ao mesmo tempo, acompanhar os três primeiros movimentos narrativos a que fiz referência e, o que espero, também demonstrar a função sintática das citadas linhas de força.

A ação se abre apresentando, como pano de fundo, os excessos de Gilgámesh como rei de Úruk. Conforme o texto, ele, Gilgámesh,

Pelo redil de Úruk perambula,
Mandando como um touro selvagem altaneiro.
Não tem rival se levanta seu taco,
Pela bola os companheiros levantam.[12]

Assedia os jovens de Úruk sem razão,
Não deixa Gilgámesh filho livre a seu pai.
Dia e noite age com arrogância
Gilgámesh rei —— uma multidão guia.

Ele, o pastor de Úruk, o redil,
Não deixa Gilgámesh filha livre a sua mãe. (...)
Poderoso, magnífico, sapiente,
Não deixa Gilgámesh moça livre a seu noivo. (v. 1, 63-75)

São dois os aspectos que configuram a arrogância do herói: de um lado, os feitos esportivos, representados por disputas em jogos com bola e taco, para os quais são desafiados os jovens de Úruk, o que constitui uma forma mitigada de ação heroica; de outro, o que os medievalistas chamam de jus primae noctis, ou seja, o direito do rei de dormir a primeira noite com as noivas.[13] Mesmo que em Ele o abismo viu o último aspecto seja apenas sugerido, em Proeminente entre os reis a referência é explícita, já que se afirma que

com a esposa prometida ele faz sexo,
ele antes,
o marido depois”[14]

O primeiro movimento então principia com as reclamações que a “filha do guerreiro” e a “esposa do jovem” dirigem às deusas (1, 77-78), sendo em seguida atendidas por Ánu (o Céu), que ordena à deusa-mãe, Bélet-íli ou Arúru, que crie um par para Gilgámesh:

Tu, Arúru, fizeste a raça humana!
Agora faze o que se disse:

Que um coração tempestuoso se lhe oponha,
Rivalizem entre si e Úruk fique em paz! (1, 95-98)

Assistimos então à criação de Enkídu, na forma comum nas tradições do Oriente Médio, isto é, usando argila como material:

Arúru, isso quando ouviu,
O dito de Ánu concebeu no coração.
Arúru lavou as mãos,
Pegou de argila e jogou na estepe:

Na estepe a Enkídu ela criou, o guerreiro,[15]
Filho do silêncio, rocha de Ninurta,[16]
Pelos sem corte por todo o corpo,
Cabelos arrumados como de mulher:

Os tufos do cabelo, exuberantes como Níssaba,[17]
Não conhece ele gente nem pátria,
Pelado em pelo como Shakkan,[18]
Com as gazelas ele come grama.

Com o rebanho na cacimba se aperta,
Com os animais a água lhe alegra o coração. (1, 99-112)


É nesse bebedouro que Enkídu será visto por um caçador, que relata o que viu ao pai, que o aconselha a contá-lo a Gilgámesh. Começa aí a bela sequência que detalha o processo pelo qual Enkídu será humanizado e civilizado, tornando possível que passe a viver em Úruk. Tanto o pai do caçador, quanto Gilgámesh sabem que essa humanização e civilização cabem a uma prostituta, Shámhat, ou seja, é pelo coito com uma mulher que Enkídu abandonará a vida selvagem, compartilhada com os animais, assumindo sua humanidade.[19] Cito extensivamente o episódio, felizmente bem conservado nos manuscritos:

Partiu o caçador, consigo levou a meretriz Shámhat,
Pegaram o caminho, empreenderam a jornada,
No terceiro dia, ao lugar aprazado chegaram.
O caçador e a meretriz de tocaia sentaram-se.
Um dia, um segundo dia no açude sentados ficaram;
Chegou o rebanho, bebeu no açude,
Chegam os animais, a água lhes alegra o coração –
E também ele: Enkídu! Seu berço são os montes!

Com os animais a água lhe alegra o coração.
E viu-o Shámhat, ao homem primevo,
mancebo feroz do meio da estepe.

Este é ele, Samhat! Oferece os seios!
Abre teu púbis e que ele toque teu sexo!
Não tenhas medo, toma seu alento!
Ele te verá e chegará junto de ti:

A roupa estende, deixa-o deitar-se sobre ti,
E faz com esse primitivo o que faz uma mulher:
Seu desejo se excitará por ti,
Estranhá-lo-á seu rebanho, ao que cresceu com ele.

Abandonou Shámhat os vestidos,
Abriu seu púbis e ele tocou seu sexo,
Não teve ela medo, tomou seu alento,
A roupa estendeu, deixou-o deitar-se sobre si,

Fez com esse primitivo o que faz uma mulher
E o desejo dele se excitou por ela.
Seis dias e sete noites Enkídu esteve ereto e copulou com Samhat.
Depois de farto de seus encantos,

Sua face voltou para seu rebanho.
Viram-no, a Enkídu, e se puseram a correr,
Os bichos da estepe fugiram de sua figura:
Contaminara Enkídu a pureza de seu corpo,

Inertes tinha os joelhos, enquanto os bichos avançavam.
Diminuído estava Enkídu, não como antes corria.
Mas agora tinha ele entendimento, amplidão de saber.
Voltou a sentar-se aos pés da meretriz. (1, 167-202)

Observe-se como fica claro o papel que tem o sexo para fazer com que Enkídu deixe o estado de “homem primevo”, que é como traduzo lullû amēlu (1, 177), lullû sendo o termo com que em acádio se designa o ser humano quando, saído das mãos dos deuses, ainda não atingiu um estado pleno de humanidade (o que Bottéro significativamente traduz como “rascunho de homem” e Sanmartín por “quase-homem”, “semi-homem”).[20] Outras tradições, de forma menos explícita, também tomam a sexualidade como um ponto de chegada na evolução do homem de um estágio primitivo para o atual – recorde-se que, em Hesíodo, isso só se dá com a criação de Pandora, o mesmo estando ao menos sugerido na Torah, com a criação de Eva.

Deve-se sublinhar, contudo, que a meretriz tem outro papel importante: ao voltar-se e sentar-se a seus pés, Enkídu passará a ouvir as instruções que ela lhe dará sobre a vida civilizada. São duas etapas, portanto, como anota Reiner: a humanização, promovida pela experiência sexual e cuja confirmação se dá quando Enkídu é repelido pelo rebanho com que antes vivia; a civilização, decorrente dos ensinamentos de Shámhat.[21] Esta última etapa, por seu lado, compreende três desdobramentos: primeiro, os discursos de Shámhat sobre a vida civilizada (em Úruk, diz ela, “os jovens cingem uma faixa” para práticas esportivas, “todo dia acontece um festival” e “retumbam tambores”, “as meretrizes têm elegante forma,/ enfeitadas de encantos, cheias de alegria” e até, “dos leitos, de noite, saem os idosos!, 1, 226-232); em seguida, a introdução de Enkídu num grupo humano não urbano, uma comunidade de pastores, quando pela primeira vez ele experimenta pão e cerveja (“Pão puseram diante dele,/ Cerveja puseram diante dele. (...) Comer pão não aprendera,/ Beber cerveja não sabia”, 2, 44-48); enfim será ele levado a Úruk. Os elementos se acumulam e entrelaçam: sexo, culinária e vida em sociedade. É assim que se faz o homem. É assim que se manifesta o que tem a humanidade de próprio no confronto com os animais que fugiram de Enkídu desde que ele perdera a “pureza” do “homem primevo”.

O entrelaçamento das linhas de força prossegue nos passos seguintes: a chegada de Enkídu em Úruk e o encontro com Gilgámesh se dá quanto do rei dirige-se à câmara nupcial, na ocasião de um casamento, para exercer seu direito à primeira noite. Impedido de fazer isso, os dois heróis se contrapõem em luta. Diz o texto:

Para Gilgámesh, como um deus, um substituto há,
Enkídu a porta da câmara nupcial obstruiu com os pés,

A Gilgámesh a entrada não permitiu –
E pegaram-se à porta da câmara nupcial,
Na rua brigaram, na praça daquela terra,
O batente abalaram, o muro balançaram. (2, 110-114)

A partir de então, tornados amigos, partirão para a realização de seu grande feito heroico – que substitui o assédio desportivo aos jovens de Úruk.[22] Trata-se da grande expedição à floresta de cedros, localizada no Líbano, onde enfrentarão o monstruoso guardião da mata, Húmbaba. Encontramos aí um tema igualmente civilizatório, pois, além de livrar a terra de um ser sem dúvida monstruoso, está presente o interesse na exploração da madeira que se possa retirar da floresta. Ao voltarem a Úruk, trazem eles enormes troncos cortados de árvores, em especial o de uma cuja copa atingia os céus, com o qual fazem uma monumental porta.

O gancho para o episódio seguinte é contudo dado pela própria beleza de Gilgámesh em sua glória de herói. No regresso da expedição vitoriosa contra Húmbaba, diz o narrador, o rei

Lavou-se da sujeira, limpou as armas,
Sacudiu os cachos sobre as costas,
Tirou a roupa imunda, pôs outra limpa,
Com uma túnica revestiu-se, cingiu a faixa:[23]
Gilgámesh com sua coroa se cobriu. (6, 1-5)

Assim engalanado, desperta ele o desejo erótico da deusa Ishtar, que se lhe oferece nestes termos:[24]

À beleza de Gilgámesh ergueu os olhos a rainha Ishtar:
Vem, Gilgámesh, meu marido sejas tu!
Teu fruto dá a mim, dá-me!
Sejas tu o esposo, tua consorte seja eu!

Farei atrelar-te carro de lápis-lazúli e ouro,
As suas rodas de ouro, de âmbar os seus chifres:
Terás atrelados leões, grandes mulas!
Em nossa casa perfumada de cedro entra!

Em nossa casa quando entres,
O umbral e o requinte beijem teus pés!
Ajoelhem-se sob ti reis, potentados e nobres,
O melhor da montanha e do vale te seja dado em tributo!

Tuas cabras a triplos, tuas ovelhas a gêmeos deem cria,
Teu potro com carga à mula ultrapasse
Teu cavalo no carro majestoso corra,
Teu boi sob o jugo não tenha rival! (6, 6-21)

Gilgámesh tem uma reação violenta ao assédio divino, expressando-se em termos duros e ao mesmo tempo saborosos, que me permito citar por extenso:

Gilgámesh abriu a boca para falar,
Disse à rainha Ishtar:
Se eu contigo casar,
—— o corpo e a roupa?

—— o alimento e o sustento?
Far-me-ás comer manjar digno de um deus?
Cerveja far-me-ás beber digna de um rei? (...)

Quem —— contigo casará?
Tu —— que petrificas o gelo,
Porta pela metade que o vento não detém,
Palácio que esmaga —— dos guerreiros,
Elefante —— sua cobertura,
Betume que emporca quem o carrega,

Odre que vaza em quem o carrega,
Bloco de cal que —— o muro de pedra,
Aríete que destrói o muro da terra inimiga,

Calçado que morde os pés de seu dono.

Qual esposo teu resistiu para sempre?
Qual valente teu aos céus subiu?
Vem, deixa-me contar teus amantes:
Aquele da festa —— seu braço;

A Dúmuzi, o esposo de ti moça,
Ano a ano chorar sem termo deste;
Ao colorido rolieiro amaste,
Nele bateste e lhe quebraste a asa:
Agora fica na floresta a piar: asaminha!;[25]

Amaste o leão, cheio de força:
Cavaste-lhe sete mais sete covas;
Amaste o cavalo, leal na batalha:
Chicote com esporas e açoite lhe deste,

Sete léguas correr lhe deste,
Sujar a água e bebê-la lhe deste,
E a sua mãe Silíli chorar lhe deste;
Amaste o pastor, o vaqueiro, o capataz,

Que sempre brasas para ti amontoava,
Todo dia te matava cabritinhas:
Nele bateste e em lobo o mudaste,
Expulsam-no seus próprios ajudantes
E seus cães a coxa lhe mordem;

Amaste Ishullánu, jardineiro de teu pai,
Que sempre cesto de tâmaras te trazia,
Todo dia tua mesa abrilhantava:
Nele os olhos puseste e a ele foste:

Ishullánu meu, tua força testemos,
Tua mão levanta e abre nossa vulva!
Ishullánu te disse:
Eu? Que queres de mim?
Minha mãe não assou? Eu não comi?
Sou alguém que come pão de afronta e maldição,
Alguém de quem no inverno a relva é o abrigo? –
Ouviste o que ele te disse,

Nele bateste e em sapo o mudaste,
Puseste-o no meio do jardim,

Não pode subir a ——, não pode mover-se a ——.
E queres amar-me e como a eles mudar-me! (6, 22-79)

É essa recusa e esses termos que levam a deusa a subir aos céus e pedir a seus pais, Ánu e Antum, que lhe deem o touro do céu, a fim de que Úruk seja devastada. Assim então se arma a cena para novo feito heroico dos dois amigos: conduzido o touro por Ishtar,

À terra de Úruk quando ele chegou,
Secou árvores, charcos e caniços,
Desceu ao rio, sete côvados o rio baixou.

Ao bufar o Touro a terra fendeu-se,
Uma centena de moços de Úruk caíram-lhe no coração;
Ao segundo bufar a terra fendeu-se,
Duas centenas de moços de Úruk;

Ao terceiro bufar a terra fendeu-se,
Enkídu caiu-lhe dentro até a cintura:
E saltou Enkídu, ao Touro agarrou pelos chifres. (6, 116-125)

Sempre em consequência da cooperação dos dois amigos, o touro é trucidado e à própria Ishtar não restará mais que o papel de carpideira:

Chegou Ishtar sobre o muro de Úruk, o redil,

Dançou em luto, proferiu um lamento:
Este é Gilgámesh, que me insultou, o Touro matou!
E ouviu Enkídu o que disse Ishtar,
Rasgou a anca do Touro e em face dela a pôs:

E a ti, se pudera, como a ele faria:
Suas tripas prendesse eu em teus braços!
Reuniu Ishtar as hierodulas, prostitutas e meretrizes,
Sobre a anca do Touro em luto a carpir. (6, 151-159)

Como o início da tabuinha seguinte, a sétima, se perdeu, não sabemos o que desencadeia o terceiro movimento, que trará à cena a questão da morte, sendo razoável supor que os deuses decretaram a morte de Enkídu em razão da morte do touro, consequência, recorde-se, da recusa ao assédio erótico de Ishtar. Depois das cenas heroicas da expedição contra Húmbaba e, principalmente, do movimentado e mesmo cômico episódio envolvendo Ishtar, tem início uma sequência de entrechos lúgrubes: primeiro, as lamentações de Enkídu no leito de morte e o consolo que tenta lhe transmitir Gilgámesh; em seguida, a lamentação de Gilgámesh após a morte do amigo.

Como estou buscando fazer ver o modo como as linhas de força se entrelaçam, dos lamentos de Enkídu saliento três momentos: a maldição que ele lança contra a porta feita com a mais soberba das árvores que fora trazida por ele da floresta de cedros – o que poderia ser interpretado como a maldição da vida heroica por ele assumida; a maldição contra o caçador que o vira pela primeira vez entre os animais, provocando que deixasse a condição de lullû para tornar-se plenamente humano – o que não deixa de ser a maldição da condição humana por ele assumida; finalmente, a maldição contra a prostituta Shámhat, que fizera dele não apenas humano, mas civilizado – a maldição estendendo-se, portanto, à civilização e a seus requintes. Vou citar apenas o que se refere a Shámhat, mesmo que o texto comporte muitas lacunas:

Depois de ao caçador amaldiçoar de todo coração,
À meretriz Shámhat de coração maldizer ele decide:

Vem, Shámhat, o fado fixar-te-ei,
E o fado não cessará de era em era!
Amaldiçoar-te-ei com grande maldição
E logo célere minhas maldições te aflijam a ti!

Não te faças casa que te agrade,
Não residas —— de teus jovens,
Não te assentes na câmara das moças,
À tua bela veste o chão corroa,

Tua roupa de festa o bêbado com poeira suje,
Não adquiras casa de —— e coisas belas (...)

—— boa mesa, dom do povo, não se ponha em tua casa,
Teu leito que encanta seja um banco,
O cruzamento da estrada, teu domicílio,
Ruínas sejam onde dormes, a sombra da muralha, o teu posto,

Cardo e abrolho descasquem teus pés,
O bêbado e o sedento batam-lhe a face,
—— que te processe e te acuse,
O teto de tua casa não revista o construtor (...)

Porque a mim, puro, enfraqueceste:
A mim, puro, enfraqueceste na minha estepe! (7, 100-131)

Sucede então a cena extraordinária em que o próprio deus Shámash, o Sol, que é o protetor de Gilgámesh durante todo o poema,[26] interfere diretamente na ação, em defesa da prostituta:

Shámash ouviu o que disse sua boca
E súbito uma voz do céu gritou-lhe:

Por que, Enkídu, a meretriz Shámhat amaldiçoas?
Ela te fez comer manjar digno de um deus,
Cerveja te fez beber digna de um rei,
Vestiu-te com amplas roupas

E o belo Gilgámesh por amigo conquistar te fez.
Agora, Gilgámesh, teu amigo, teu irmão,
Far-te-á deitar em amplo leito,
Em leito respeitoso deitar te fará,

Far-te-á sentar em sede tranquila, sede a sua esquerda,
Os príncipes da terra beijarão teus pés,
Fará chorar-te o povo de Úruk, fará gemer por ti,
Ao povo exuberante fará encher-se por ti de pêsames.

E ele, depois de ti, suportará as grenhas de cadáver,[27]
Vestirá pele de leão e vagará pela estepe. (7, 132-146)

Observem que belo discurso: a meretriz não merece as maldições, pois foi ela quem introduziu Enkídu nos prazeres da civilização, fez com que se tornasse ele amigo de Gilgámesh e, o que é agora o mais importante, em consequência de tudo isso, é também por causa dela que ele terá uma morte digna, honrada e pranteada. Dizendo de outro modo: caso Enkídu tivesse permanecido entre os animais, teria uma morte, como a deles, incógnita e desassinalada. Ele, no leito de morte, está fazendo o duro aprendizado de que, diferentemente do que se passa com os deuses, a morte é o fado do homem, mas um fado que os homens, com os rituais de luto, podem tornar nobre. Se até então, como se depreende das três maldições, tudo se resumia ao contraste entre o homem civilizado (impuro) e os animais (puros), com a perspectiva da morte novo contraste se estabelece, entre o homem (mortal) e os deuses (imortais).

O que se segue a essa consciência de que é melhor a impureza de ser humano é não a reversão da maldição lançada contra a prostituta, pois, uma vez proferida, não tem como ser eliminada, mas a sobreposição a ela de uma bendição:

Vem, Shámhat, o fado fixar-te-ei,
A boca que te amaldiçoou volta atrás a bendizer-te!

O general e o príncipe te amem,
Quem esteja a uma légua bata na coxa,
Quem esteja a duas léguas sacuda os cachos,
Não se atrase o soldado em o cinto desatar!
Leve-te obsidiana, lápis-lazúli e ouro,
Brincos preciosos ele te leve!
A moço de boa casa, com celeiros cheios,
Ishtar, hábil, te apresente:
Por tua causa ele abandone a mãe de sete filhos, sua esposa! (7, 148-161)

Observe-se como a bênção da prostituta tem como foco aquilo que ela oferece, os prazeres do sexo. Para entender o alcance do que se tem em vista, é preciso considerar que o sexo, como uma esfera do que há de mais sagrado no mundo, é justo o contraponto da morte. De um lado, por sua relação com a procriação, que permite que mesmo o indivíduo perecendo, a humanidade sobreviva – o que decorre de uma simples observação de como o mundo se estrutura em ciclos de vida-morte-vida etc. Outro aspecto, contudo, não menos importante, até porque a prostituição sagrada, na Babilônia, não supunha a maternidade, é que no sexo há um aspecto festivo, trata-se de um dos prazeres que faz com que valha a pena ser humano e viver com civilidade. Como a Enkídu ensinara Shámhat, e vale a pena repetir, tomando Úruk como paradigma da civilização, lá é onde “os jovens cingem uma faixa”, “todo dia acontece um festival”, “retumbam tambores” e “as meretrizes têm elegante forma,/ enfeitadas de encantos, cheias de alegria” (1, 226-231).

Não tenho como percorrer com o detalhe desejável os lamentos e a perambulação de Gilgámesh em luto pela perda do amigo, que constitui o último movimento do poema e seu clímax. Resumindo, após constatar que Enkídu voltara a ser poeira e argila, sai o rei para a longa viagem em busca do segredo da imortalidade. Nesse percurso, atravessa a caverna por onde o Sol passa a cada noite e atinge o outro lado, à beira do mar, onde vive uma taberneira, que o instruirá como atravessar as águas da morte para o encontro desejado com Uta-napíshti. Vou me concentrar apenas na motivação da viagem e na resposta que à angústia existencial de Gilgámesh lhe fornecem a taberneira e Uta-napíshti.

No primeiro momento, é a taberneira que pergunta a Gilgámesh por que, sendo herói, vaga ele pelo mundo naquela condição desgraçada:

Se tu e Enkídu sois os que o guarda matastes,
Tocastes Húmbaba, que a floresta de cedros habitava,
Na passagem dos montes matastes leões,

O touro pegastes e o touro matastes que do céu desceu,
Por que consumidas te estão as bochechas, cavada tua face,
Desafortunado teu coração, aniquilada tua figura?
Há luto em tuas entranhas,

À de quem chega de longe tua face se iguala,
Com frio e calor está queimada tua face,
E uma face de leão te tendo posto vagas pela estepe (10, 36-45),

obtendo como resposta:

Por que consumidas não me estariam as bochechas, não cavada a face,
Não desafortunado o coração, não aniquilada a figura,
Não haveria luto em minhas entranhas,
À de quem chega de longe minha face não se igualaria,

Com frio e calor não estaria queimada minha face,
E uma face de leão me tendo posto não vagaria eu pela estepe?
Ao amigo meu, mulo fugido, asno dos montes, pantera da estepe,
A Enkídu, amigo meu, mulo fugido, asno dos montes, pantera da estepe,

Ao amigo meu que – o amo muito! – comigo enfrentou todas as penas,
A Enkídu, amigo meu que – o amo muito! – comigo enfrentou todas as penas,
Atingiu-o o fado da humanidade!
Por seis dias e sete noite sobre ele chorei,

Não o entreguei ao funeral
Até que um verme lhe caiu do nariz. (10, 47-60)

Na versão antiga encontra-se uma bela resposta da taberneira Siduri à dor de Gilgámesh, que não foi aproveitada no poema de Sîn-lēqi-unninni, mas vale a pena considerar. Muitos comentadores aproximaram-na do hedonismo e carpe diem dos poetas gregos e romanos, no sentido de que aponta para uma espécie de moderação em aceitar a condição humana:[28]

Gilgámesh, por onde vagueias?

A vida que buscas não a encontrarás:
Quando os deuses criaram o homem,
A morte impuseram ao homem,
A vida em suas mãos guardaram.

Tu, Gilgámesh, repleto esteja teu ventre,
Dia e noite alegra-te tu,
Cada dia estima a alegria,
Dia e noite dança e diverte!

Estejam tuas vestes limpas,
A cabeça lavada, com água estejas banhado!
Repara na criança que segura tua mão,
Uma esposa alegre-se sempre em teu regaço:

Esse o fado da humanidade. (OB, VA, 3, 1-15)

Em Ele o abismo viu, o que aconselha Uta-napíshti segue na mesma direção. Diz ele a Gilgámesh:

Da humanidade, como caniço no pântano, se lhe ceifa o nome:
O moço belo, a moça bela,
Logo —— deles leva a morte.
Não há quem a morte veja,
Não há quem da morte veja a face,
Não há quem da morte a voz ouça,
A furiosa morte ceifa a humanidade.

Chegada a hora, construímos uma casa,
Chegada a hora, fazemos um ninho,
Chegada a hora, os irmãos compartilham,

Chegada a hora, rixas há na terra.

Chegada a hora, o rio sobe e traz a enchente,
A libélula flutua no rio,
Sua face olha em face o sol:
Logo a seguir não há nada. (...)

Os Anunnaki, grandes deuses, reunidos,
Mammitum, que faz os fados, com eles um fado fiou:
Dispuseram morte e vida,
Da morte não revelaram o dia. (10, 301-322)

Em resumo, a busca de Gilgámesh pela vida sem fim levou a nada. É preciso corrigir: levou sim a muito, ao aprendizado que faz de um simples herói um herói sábio, aprendizado que podemos entender se resume magnificamente na bela imagem da libélula levada pelas águas, metonímia de tudo que é efêmero sob o sol, mas nem por isso deixa de contemplar o sol. Nesse sentido, Ele o abismo viu poderia ser entendido, pelo menos em parte, como um representante da chamada literatura sapiencial tão comum no Oriente Médio, de que conhecemos exemplares sumérios, acádios e hebraicos.[29] Aparentemente desesperado – e quem já não experimentou a angústia de Gilgámesh diante da brevidade da vida? –, na verdade ele ensina ao leitor o segredo da libélula. Nas palavras da taberneira: goza dos prazeres da comida, da música e da civilização, faz amor, alegra-te com os filhos – e não te atormente a morte, que é só o fado do homem.

Como incisivamente escreveu T. S. Eliot, em Fragmentos de um agón, demonstrando a atualidade de um saber que atravessa mais de três milênios,

Birth, and copulation, and death.
That’s all, that’s all, that’s all,
o que podemos traduzir assim:
Nascer, copular, morrer:
Isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Texto e traduções:

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  1. O trabalho é uma tradução comentada, de que a primeira parte (a primeira tabuinha) se encontra publicada no volume 10 (2014) da revista Nuntius antiquus.
  2. Cf. Lambert, A catalogue of texts and authors. A expressão "da boca de (ša pî)..." é um modo de indicar aquele a quem se deve a versão em causa, equivalendo a “segundo...”
  3. Note-se que Sîn-lēqi-unninni é reivindicado como ancestral por muitos escribas de Úruk, ou seja, trata-se do epônimo de toda uma categoria de intelectuais – num processo semelhante ao que se dá com os Homeridas e Homero, na Grécia (cf. Lambert, Cuneiform texts of the Metropolitan Museum of Arts, p. XVII; Lambert, Ancestors, Authors and Canonicity, p. 13).
  4. Maier é enfático: "Nessa longa, em sua maior parte anônima tradição [sobre Gilgámesh], faz sentido dizer que encontramos um autor? Minha resposta é sim” (Maier, Gilgamesh: anonymus tradition and authorial value, p. 87-88). Também conforme George, The Epic of Gilgamesh: thoughts on genre and meaning, não seria errôneo dizer que Sîn-lēqi-unninni é de fato “escritor”. Ao contrário da maioria dos comentadores, Tigay considera que Sîn-lēqi-unninni seria o autor da chamada versão babilônica antiga, em que se processa a “importante reviravolta” na tradição escrita do poema, ou seja, o tratamento grandioso da saga de Gilgámesh, centrado na questão da mortalidade do homem (cf. Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 12). De fato, pelo pouco que conhecemos dessa versão, é nela que pela primeira vez a saga ganha uma trama concatenada. O mesmo Tigay reconhece, contudo, que a versão clássica dá um outro passo importante: deslocar a grandeza de Gilgámesh dos feitos para a aquisição de conhecimento, incluindo a questão da morte como lote inelutável do homem (para um resumo das características da versão clássica, Tigay, The evolution, p. 109)
  5. Minha opção em verter naqbu por ‘abismo’ leva em conta as razões apresentadas por Silva Castillo (Nagbu, p. 219-221 e La estructura literaria como guía para la traducción). Para a tradução do segundo hemistíquio (išdi mati) como “o fundamento da terra”, baseio-me também em Silva Castillo (Išdi mati, The fondations of the Earth). Considerando que naqbu é “não só o ‘abismo de águas’, mas também a ‘fonte’ de sabedoria onde Ea habita no Abzu” (Apsû), Leeuwen anota que o termo “refere-se não só ao abismo de águas que Gilgámesh sonda, mas também à sabedoria que ele adquire por meio de sua investigação” (Leeuwen, Cosmos, temple, house, p. 73).
  6. A poesia semítica, incluindo a escrita em acádio, não tem métrica fixa nem usa de rima. O ritmo decorre de o verso, em geral, supor uma divisão em duas partes, marcada tanto em termos de fala quanto de sentido, como em ša naqba imuru / išdi mati (“Ele o abismo viu/ o fundamento da terra”). Exploram-se também muitos recursos paralelísticos, incluindo assonâncias e repetição de palavras, de versos ou mesmo de cenas. Esses efeitos foram buscados na tradução. Os locais marcados com ---- indicam pontos em que o texto cuneiforme inscrito nas tabuinhas de argila se encontra danificado, impossibilitando a leitura. Observe-se que em alguns lugares (como em 2, 97) é o próprio escriba que anota “texto quebrado”, ou seja, o manuscrito que lhe serviu de base para produzir sua cópia já se encontrava corrompido na própria Antiguidade.
  7. Ver Heidel, The Gilgamesh epic and Old Testament parallels, p. 224-269.
  8. A tradição relativa ao dilúvio (abūbum) é bastante característica da Mesopotâmia (ver Agostino, Gilgameš o la conquista de la imortalidad, p. 169-185). Na produção acádia, o relato clássico do cataclismo encontra-se no poema antropogônico intitulado Atra-hasīs (Supersábio), cujo manuscrito mais antigo é assinado pelo copista Kasap-Aya, que executou o trabalho sob o reinado de Amim-ṣadûqa (1646-1626 a. C.), cf. Bottéro e Kramer, Lorsque les dieux faisaient l’homme, p. 528-529. Tudo leva a crer que Sîn-lēqi-unninni se valeu desse texto na tabuinha XI, pondo o relato na boca de Ūta-napišti, ainda que Silva Castillo, La estructura literaria como guía para la traducción, p. 14, considere o episódio do dilúvio uma “interpolação tardia”.
  9. Era costume dos reis registrar numa estela (narû) algum acontecimento importante de seu reinado, visando a torná-lo público (cf. 1, 10). Um narû pode ter ainda o valor de documento jurídico, pode marcar uma fronteira ou ser a “pedra fundamental” (feita realmente de pedra ou então de prata, ouro ou bronze) de um templo, enterrada nas fundações ou posta em seu interior (cf. SEG, p. 109). Considerando-se o que se diz nos v. 24-28, que marcam o fim da introdução ao poema, parece que se quer dar a entender que se trata da última hipótese. Cumpre todavia recordar que, longe de pretender um valor documental, a referência à inscrição constitui um recurso poético que provavelmente deveria ser percebido enquanto tal pelo leitor (cf. Oppenheim, Mesopotamia, p. 258, apud Dickson, The wall of Úruk, p. 27), ao qual o texto se dirige explicitamente.
  10. Lugalbanda é considerado, na tradição dominante, o pai de Gilgámesh. Trata-se de um rei de Úruk divinizado, herói do poema sumério que leva seu nome. A expressão rīmu ša Lugalbanda dá margem, talvez intencionalmente, a vários entendimentos, tendo em vista a existência de termos homófonos ou quase: rīmu, ‘touro selvagem’; rīmu, ‘dom’ dos deuses; rîmu, ‘amado’ (cf. CDA, s. v.). Minha tradução (“amado touro”) buscou preservar a mescla de sentidos possível. A mãe de Gilgámesh é Nínsun, deusa tutelar de Gudea e Lagash, filha dos deuses Ánu e Uras. Seu epíteto é “Vaca-Selvagem” (rīmat).
  11. Bélet-íli significa Senhora dos Deuses. Este é o nome sumério da grande Deusa-Mãe, correspondente a Arúru. Nudímmud é um dos nomes do deus Ea (também chamado de Enki).
  12. Trata-se de trecho de leitura duvidosa (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 786-786). A referência parece ser ao jogo com pukku (bola) e mukkû (taco), em que Gilgámesh se destaca (cf. o que se afirma em 12, 4-5). Observe-se a estratégica repetição do verbo ‘levantar’ (tebû), aplicado tanto ao taco de Gilgámesh quanto aos próprios companheiros nos esportes.
  13. Sobre quais seriam os excessos, ver Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, cap. 9, “The oppression of Uruk”, p. 178-191, em resumo: a) nada indica que a opressão do rei diga respeito à imposição de algum tipo de corveia aos habitantes da cidade, como se propôs inicialmente;
    b) parece que uma parte da opressão refere-se ao constante desafio do rei aos jovens para disputas atléticas (o que se afirma claramente na tradução hitita do poema: “diariamente os moços de Úruk ele supera”, 1, 1, 11b-13 a);
    c) não há dúvida de que o segundo aspecto da opressão é constituído pelo jus primae noctis. Assim, são dois os aspectos destacados – aliás, mencionados na queixa que os habitantes de Úruk dirigem aos deuses: de um lado, proezas físicas; de outro, proezas sexuais. Recorde-se que a inadequação ao ambiente civilizado (e doméstico) de heróis que realizam trabalhos que exigem grande vigor físico é tematizada em diferentes tradições antigas. Um exemplo disso se encontra nos mitos gregos sobre Héracles: na peça de Eurípides, que analisei em A (des)construção do herói, ao regressar para casa depois do último trabalho heroico, ele termina não só por destruir o palácio, quanto por matar a esposa e os filhos; seu primeiro feito, a morte do leão de Citéron, com cuja pele passa a cobrir-se, durou cinquenta dias, durante os quais dormiu com as cinquenta filhas do rei Téspis (cf. Apolodoro, Biblioteca 2, 4, 10). Na tradição israelita, Sansão é por igual um exemplo desse tipo de herói cuja força condiz pouco com o espaço urbano e doméstico (ver Mobley, The wild man in the Bible and the ancient near East).
  14. aššat šimātim irahhi/ šu pānānuma/ mūtum warkānu (P, 4, 32-34, apud Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 182-184).
  15. Enkídu é um nome sumério cuja forma mais antiga é en.ki.dùg; aparece em geral na documentação acádia como en-ki-du e raramente como en-ki-tu (supondo-se que a penúltima sílaba fosse longa na poesia babilônica: Enkīdu); na tradução do poema para o hitita, o nome apresenta ainda a forma en.gi.du ou en.ki.ta mais terminação de caso. O sentido do termo em sumério é ‘senhor do lugar agradável’, a proposta de que pudesse significar ‘Enki o criou’ (equivalente ao acádio Eabāni, ‘Ea o criou’) mostrando-se inconsistente, ainda que se admita que, no final do segundo milênio, possa ter sido interpretado dessa forma, de acordo com o gosto por etimologias então em curso (cf. Worthington, On names and artistic unity in the standard version of the Babylonian Gilgamesh Epic, p. 409-414, teria sido Shámhat, a prostituta, que teria, no verso 174 abaixo, nomeado Enkídu, seu nome sendo de início uma exclamação com o significado de “feito por Enki!” ou algo semelhante). Enkídu aparece como companheiro de Gilgámesh desde os textos em sumério, em que se registram duas tradições divergentes: numa ele é chamado de ‘servo’ de Gilgámesh (este sendo considerado o lugal, isto é, o rei de Enkídu); noutra, especialmente concernente à morte de Gilgámesh, ele é referido como um amigo precioso. Enkídu não aparece fora do ciclo de Gilgámesh, a não ser num encantamento babilônico antigo (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 138-144). Reconhece-se que um traço distintivo do poema de Sîn-lēqi-unninni (tão importante quanto a exploração da temática da mortalidade) é o papel nele atribuído a Enkídu como efetivo companheiro e igual de Gilgámesh (cf. Sasson, The composition of Gilgamesh Epic, p. 265-266).
  16. No segundo hemistíquio, lê-se kișir dninurta (força de Ninurta), o termo kișrum significando ‘nó’, ‘amarração’ com junco, com corda; ‘concentração’, ‘grupo’, ‘aglomeração’, ‘aglomerado’; aplicado a montanhas (kișrāt šadî, ‘montanha de pedras’), ‘rocha’, ‘pedra’; determinado por um nome divino, como aqui, kișir significa ‘fortalecido’, ‘sustentado’ por um deus (cf. kașāru(m), ‘amarrar’, ‘dar um nó’, ‘juntar’, ‘reunir’). Como está em causa o deus Ninurta, a expressão indica que é ele quem dá consistência e sustentação a Enkídu. Ninurta era associado a grandes feitos guerreiros, especialmente em combates singulares contra um rival valoroso – como caberá também a Enkídu enfrentar Gilgámesh. Minha tradução por “rocha de Ninurta” leva em conta a nova ocorrência de kișrum, aplicado pelo caçador a Enkídu, no v. 125.
  17. A imagem alude ao grão "cabeludo" da cevada madura, a deusa Nísaba (Níssaba ou Nídaba) tendo o “cabelo de cevada amarrado em grossos feixes” (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 785-786, em que se apresentam exemplos relativos à deusa). Nisaba estava tradicionalmente relacionada com esse cereal e, posteriormente, também com a contabilidade e a escrita. O pictograma que a representava desde a época suméria era uma espiga de cevada, sendo cultuada desde a época dinástica antiga e considerada irmã de An e Úrash. Fazia parte do panteão de Lagash, onde era tida por irmã de Enlil e esposa de Haya. Em época posterior, por sua relação com a escrita, foi considerada esposa do deus-escriba Nabû. Como termo comum, nissabu/nissaba significa ‘cevada’ (CDA, s.v.).
  18. Shakkan é o senhor dos animais, deus do gado, que se representava nu em pelo. A expressão lubuti labiš kima Šakkan (vestindo veste como a de Shakkan) indica que Enkídu se cobre não mais que com os pelos do próprio corpo, como não poderia deixar de acontecer no período em que vive na companhia dos animais, sem conhecer gente nem cidade. Ainda que alguns comentadores estranhem a referência a “veste”, aventando a possibilidade de que ele trouxesse algum tipo de vestimenta, parece claro que se encontra efetivamente nu se atentarmos para o fato de que, mais à frente, será ele vestido, pela primeira vez, pela meretriz: cf. 2, 34, ilbaš libšam, “vestiu uma veste” (cf. Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 200). Ao traduzir a expressão por “pelado em pelo”, pretendo também manter algo da aliteração a que a ocorrência de objeto direto interno dá margem em lubuti labiš (cf. labāsu labiš, ‘vestir uma veste’).
  19. Shámhat é uma personagem-chave no relato. Não tem razão Bailey, Initiation and primal woman in Gilgamesh and Genesis 2-3, p. 140, quando afirma que se trata de personagem anônima e, portanto, mal delineada, tendo em vista que šamhatum significa ‘prostituta’ (trata-se de adjetivo com o sentido de ‘voluptuoso’, termo derivado de šamhu(m), ‘luxuriante’, ‘viçoso’, quando aplicado a vegetação e pessoas, do verbo šamāhu(m), ‘crescer’, ‘florescer’, ‘atingir uma extraordinária beleza e estatura’). Que Shámhat não seja um nome próprio constituiu um entendimento outrora comum: assim Sanmartín, Epopeya de Gilgameš, p. 36-38, o traduz como “moça”. Ora, nos versos 162 e 167, a partir dos quais este é reconstituído, lê-se harimtu fšam-hat, o primeiro termo tendo já o significado de ‘prostituta do templo’ (derivado de harāmu, ‘separar’, no sentido de que se trata de mulheres que viviam isoladas num recinto determinado do templo), não sendo razoável supor que o segundo signifique a mesma coisa em vez de tratar-se de um nome próprio que evidentemente joga com os sentidos derivados de šamāhu (m), apontando para o viço e a voluptuosidade da mulher, considerada, conforme George, como “a prostituta por excelência”. Saliente-se que esse nome aparece como próprio em outros documentos (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 148). A propósito da nomeação de Shámhat por Enkídu como um importante recurso narratológico, ver Worthington, On names and artistic unity in the standard version of the Babylonian Gilgamesh Epic, p. 406-409. Observe-se que desde a descrição feita por Heródoto da prostituição nos templos da Babilônia (cf. Histórias 1, 199), muito se tem especulado sobre o estatuto dessas hierodulas. Pelo que hoje se sabe, parece que as harimtu constituíam uma das classes de mulheres ligadas aos templos (cf. Lerner, The origin of prostitution in ancient Mesopotamia, p. 244, provavelmente a mais baixa dentre todas, constituída por “filhas de escravas” que ficavam “sob a supervisão de um funcionário de nível inferior”). O texto não diz nada sobre a condição de Shámhat, mas George anota que, “enquanto um centro do culto a Ishtar, deusa do amor sexual, Úruk era uma cidade bem conhecida pelo número e beleza de suas prostitutas”, muitas delas empregadas no templo de Nínsun e da própria Ishtar; uma vez que ela conduz Enkídu ao templo de Ánu e desta última deusa, é de supor-se que estivesse ligada justamente a ele (George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 148).
  20. Conforme observa Mobley, The wild man in the Bible and the ancient near East, p. 223, “a tradição do homem selvagem (...) tem em Enkídu, o selvagem estranho à cultura urbana, seu protótipo”. Em Enkídu se encontrariam os sete traços próprios da figura literária do “homem selvagem”: a) o ser monstruoso que tem relações com a cultura urbana e nela interfere (por exemplo, enquanto Gilgámesh tem uma ação civilizadora abrindo cisternas, cf. 1, 39, o caçador afirma que Enkídu tapa de novo os buracos por ele abertos em 1, 130, ou seja, elimina as marcas de civilização impostas à paisagem); b) o bárbaro rural (a oposição é clara: enquanto o hábitat de Gilgámesh é Úruk, Enkídu é cria da estepe e dos montes); c) o remanescente da humanidade primeva (cf. a expressão lullâ amēla, "homem primevo”, e Veenker, Syro-Mesopotamia, p. 165-166, segundo o qual “Enkídu representa o homem primevo ou original, exatamente como Adão, na Bíblia”); d) o domador de monstros (considerando-se que, com Gilgámesh, ele vence Húmbaba e o touro celeste); e) o xamã (tendo em vista a exegese dos sonhos de Gilgámesh que ele provê na tabuinha 2); f) o duplo (ele foi criado para ser o igual de Gilgámesh, o que os sonhos do rei confirmam em 1, 245-295); g) o deuteragonista (o “homem selvagem” atua em geral não como protagonista, mas como auxiliar, tal como na relação entre Gilgámesh e Enkídu).
  21. Reiner, City and bread baked in ashes, p. 118.
  22. Uma questão que tem sido debatida é a da natureza sexual ou não das relações entre Enkídu e Gilgámesh, tendo em vista que, nos sonhos pressagos narrados pelo herói a sua mãe, a deusa Nínsun, na tabuinha 1, ele declara, primeiro tendo sonhado com uma pedra que caiu do céu, que “A ela amei como esposa, por ela me excitei,/ Peguei-a e deixei-a a teus pés/ E tu a uniste comigo” (1, 256-258), o que se repete na narrativa do segundo sonho, com um machado (1, 283-285). A deusa esclarece que a pedra e o machado simbolizam o amigo que está para chegar e confirma que ele, Gilgámesh, o amará como uma esposa, por ele se excitará e com ele se unirá. Alguns comentadores consideram que dados como esses sugerem que a amizade entre os dois heróis envolve relações sexuais, embora isso nunca fique explícito no poema. A esse respeito, Renger, Heroes and their pals, p. 77-78, com base na comparação entre Gilgámesh e Enkídu, Davi e Jônatas, Aquiles e Pátroclo, propõe os seguintes traços como característicos de tais pares de amigos: a) trata-se de uma “forte amizade entre duas e não mais que duas pessoas”, os dois sendo do sexo masculino e formando “não somente um par, mas um par relativamente isolado: os dois não se juntam jamais a um terceiro, não há rivais, não há outros pares nem relações com mulheres”; b) a relação, “sejam quais forem suas características sentimentais, sempre tem um foco externo (...) na realização de gloriosos feitos ou no cumprimento de finalidades políticas”; c) os pares apresentam uma “assimetria estrutural, que consiste numa distribuição desigual de precedência entre seus membros e num tratamento diferente dos mesmos na narrativa”, um deles aparecendo como mais importante que o outro: Aquiles com relação a Pátroclo; Davi em face de Jônatas; Gilgámesh diante de Enkídu. No último caso, continua o mesmo autor (p. 81), “a afeição de Gilgamesh por seu amigo é descrita em termos apropriados para relações tanto com parentes, quanto com objetos de desejo sexual”. Enkídu é comumente chamado de “irmão” (ahu) de Gilgamesh, enquanto o sentimento deste pelo companheiro “é explicitamente modelado em termos de atração sexual” (como no caso dos sonhos premonitórios já referidos e, após a morte de Enkídu, no modo como Gilgámesh o pranteia como “uma viúva” e vela seu corpo como se fosse “uma noiva”). Conclui-se que “a base para essas analogias com parentesco e objetos de desejo sexual parece estar no fato de que a amizade de Enkídu permite a Gilgamesh experimentar um gosto proléptico dos prazeres decorrentes da sociabilidade humana, incluindo casamento e paternidade”. Saliente-se, enfim, que o verbo usado nos versos citados acima, habābum (cf. elišu ahbub, “por ele me excitei”), é o mesmo que aparece nos versos 1, 186 e 193, também já citados, para descrever o último estágio do contato anterior ao coito entre Enkídu e Shámhat. Trata-se, portanto, de uma linguagem altamente erótica.
  23. Lavar-se e mesmo enfeitar-se após um feito heroico constitui um comportamento codificado, que Gilgámesh repetirá, por exemplo, após a morte do touro do céu, nessa mesma tabuinha. A função parece ser análoga à observada por Seri com relação ao Enūma elish, onde, após o entrecho em que se arrolam os feitos de Marduk como guerreiro e demiurgo, há “uma passagem que descreve como ele unge seu corpo com óleo de cedro, põe em si mesmo vestimentas principescas, cinge-se com uma tiara e pega atributos régios como o cetro e o báculo” devendo-se considerar que “o limpar-se e mudar de roupa denotam uma mudança pessoal” (Seri, The role of creation in the Enūma eliš, p. 16). Ainda que Seri não se refira especificamente a este entrecho (remetendo a outros pontos do poema, nomeadamente a 2, 34-35 e 8, 63-64), o importante é ter em vista que ele constitui um autêntico marcador narrativo cuja função é não só destacar uma mudança na personagem (Gilgámesh acaba de firmar-se definitivamente como rei e herói), mas também e principalmente a passagem para um novo desdobramento da própria narrativa.
  24. Para uma análise dessa passagem, ver ABUSCH, Ishtar’s proposal and Gilgamesh’s refusal.
  25. O nome do pássaro é, em acádio, allallu, não se sabendo exatamente qual seja. Conforme a documentação antiga, trata-se de ave migratória que usualmente não se vê no mês de Addaru (o décimo segundo mês do calendário babilônico), tem uma aparência multicolorida, asa característica e um grito interpretado como kappī (“minha asa”). Com base nisso, Thompson propôs sua identificação com o rolieiro, da família de aves coraciformes, muito comum na Europa, África e Oriente Médio (cf. CAD, s.v.; este é também o entendimento de Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 135, que traduz al-la-la por ‘roller bird’).
  26. Šamaš é o deus Sol (em sumério Utu), sob cuja especial proteção se colocava a primeira dinastia real de Úruk, que pretendia dele descender. De acordo com a lista de reis sumérios, Meski’ang-gasher era filho de Utu, tendo sido o senhor e rei no Eana durante 324 anos; foi sucedido por seu filho Enmerkar, o fundador de Úruk, que reinou 420 anos; sucedeu-o Lugalbanda, o pastor, cujo reinado durou 1.200 anos; em seguida veio Dúmuzi, o pescador, que reinou 100 anos; então é a vez de Gilgámesh, filho de um fantasma (lil2-la2), senhor de Kulaba, que reinou 126 anos. A sucessão épica a essa paralela, presente sobretudo nos poemas dedicados a Enmerkar e Gilgámesh, apresentase assim: (a) Utu (o Sol) e Ninsumun (a Senhora Vaca Selvagem) geram (b) Enmerkar, o fundador de Úruk, marido de Inana, com a qual gera (c) Lugalbanda, filho de Enmerkar e também marido de Inana, de quem gera (d) Gilgámesh, filho de Lugalbanda, também marido de Inana, o construtor da muralha de Úruk. Como assevera Woods, Sons of the Sun, p. 80, “a proeminência do deus Sol é um dos poucos temas básicos que dá coesão ao amplamente desconectado e heterogêneo grupo de poemas que toma os feitos legendários da primeira dinastia de Úruk como seu tema. O patrocínio do deus Sol aos reis de Úruk nos textos literários é deveras destacável em vista das práticas cultuais no mundo real, pois, havendo escassas evidências de um culto devotado a esse deus em Úruk, apenas eles sugerem que tal divindade era objeto de especial veneração na cidade”.
  27. Em sinal de luto, Gilgámesh deixará de cortar os cabelos.
  28. Para uma acurada análise dessa fala, inclusive do ponto de vista formal, Abusch, Gilgamesh’s request and Siduri denial (partes I e II).
  29. Nota da transcrição: o PDF indica uma referência neste ponto, cujo texto não encontra-se no arquivo.