Não, nunca! em toda a extensão do ensaio republicano entre nós, nunca se submergiu tão completamente a honra deste regímen.
Aliás, não lhe escasseiam na crônica fastos lastimosos e pudendos. Atravessamos, em 1894, a ditadura plena: o governo da espionagem, do cárcere e do fuzil, com o lar doméstico entregue às buscas policiais, o erário ao saque dos cortesãos, o crédito público às emissões clandestinas, a vida humana ao espingardeamento, a educação de nossos filhos ao espetáculo de todos os crimes, ao comércio de todas as corrupções. No começo, foi para vencer. Em seguida, para exterminar os vencidos. De 13 de março a 30 de julho as ilhas da nossa baía presenciaram a execução de centenas e centenas de homens, marinheiros da nossa esquadra, que os chora, confiados pelos seus capitães, na hora da rendição, à santidade das leis da guerra e imolados pela vitória truculenta ao apetite dos seus instintos. Durante esse período lutuoso o país inteiro, assombrado, assistira a tragédias como as do Paraná, onde o caminho de ferro conduzia aos espigões das serranias as vítimas do rancor homicida, para as sepultar nos despenhadeiros, fuzilando-as na queda. Tivemos, em março de 1897, a demagogia acompadrada com a autoridade, no Rio de Janeiro, destruindo prelos, armando queimadoiros nas praças, organizando a morte, executando as suas sentenças capitais à cara do governo, na sua capital. Viu-se, pouco mais tarde, nos sertões da Bahia, sobre os restos do fanatismo aniquilado, a liquidação pela degola, pelo petróleo, pela trucidação de mulheres e crianças. Nos sertões de S. Paulo a lei de Lynch, alistada ao serviço dos partidos, consumou impunemente, com a notória proteção dos interesses dominantes, uma das mais horrendas cenas de sangue registradas nos anais da nossa ferocidade. Nem as mais altas situações do poder e da força evitaram a sina tenebrosa destes anos de retrocesso: um ministro da Guerra, marechal do exército, cai assassinado numa praça de guerra, defendendo contra o ferro de um assassino político o peito do chefe da nação.
Juntem, porém, condensem, espremam todos esses excídios, todas essas cruezas, essas ignomínias todas: a essência da mistura ensangüentada e purulenta não conterá, em germens de maldade e baixeza, insânia e barbaria, um produto comparável ao caso inominável da Rua Monte Alegre. A tirania de 1893 a 1894 era a expressão das tendências nativas à lei marcial nas repúblicas americanas, oscilantes sempre entre Rosas, Balmaceda e Porfírio Díaz. A mazorca de 1897 representava a expansão da canalha, utilizada pelos costumes de uma parcialidade que a guerra civil cevara nos prazeres da força. O morticínio de Canudos foi a embriaguez de um triunfo militar sem freios divinos, ou humanos. Araraquara, o selvagismo da polícia renascente das senzalas, amparada nos interesses de facção. No atentado, enfim, um governo fraco e titubeante expiava a sua condescendência com as ramificações civis e militares da reação sanguinária que cruentava a metrópole, e ameaçava a Bahia. Em todos esses lances eternamente sinistros, os partidos bebem sangue, e chafurdam em torpezas, com a autoridade pública encambulhada às suas orgias. Mas ainda esta não fora buscar nos piores antros da demência e da bruteza idéias e instrumentos, para atacar a sociedade no culto dos seus sentimentos mais sagrados, na substância das suas instituições fundamentais.
Senão, vede esta cena. É um ancião em sua casa. Ele, setuagenário, enfermo. Ela, sagrada pelas garantias constitucionais. Estas não a protegem. No lar invadido pelos aguazis o ancião, coberto pelas suas cãs, envolvido no seu nome venerando, rodeado da família em agonia, recusa-se, apoiado em todas as leis do país, a cumprir uma ordem grosseiramente arbitrária. Arrastem este homem! ruge então o chefe da malta. Melhor diria: Tanjam-me este cão! O que se seguiu seria o mesmo. A esposa, um filho, um amigo interpõem-se. A santa matrona abraça o velho companheiro de seus dias. Mas já os paus se levantavam. Descem os murros e estadulhos sobre os três amparadores da vítima, naquele momento verdadeiramente augusta. Não se forra a senhora aos ultrajes e bordoadas da récua oficial. Atordoada com um soco à nuca pelo punho de um dos bandidos legais, arrebatam-lhe dos braços o marido, que desce de rastos escada abaixo, e vai ter a cabeça despedaçada de encontro ao batente férreo do portão, quando a filha, respeitável consorte de um militar, de um mestre da mocidade militar, chega a ponto de preservar com as mãos a fronte do pai. Martírio que recorda o de Cristo nas escadas de Pilatos. As punhaladas de um soldado ao seio da heroína não suplantam o amor filial, que lhe dá forças, para conquistar aos esbirros um lugar no carro, onde, sem chapéu, em desalinho, roto, enlameado das quedas e das mãos sórdidas da vilanagem, atravessa as ruas o varão insubmisso na majestade de um apóstolo entre selvagens, enquanto os mais, o amigo colhido nas malhas do cerco, um filho maior do ilustre brasileiro, outro, criança ainda, sorvendo ali o amor da república, estilado assim às gerações novas, depois de empurrados a trambolhões pelos degraus de pedra, palmilham a pé, envolvidos no destacamento, ladeiras e ruas, até à Central. E ali ainda encontra um magistrado*, da linhagem dos juízes de Jesus, que, diante desse espetáculo, sanciona o escândalo com o escárnio, interrogando o supliciado, apresentando-lhe autos para subscrever, oferecendo-lhe de jantar, e confessando na sua vítima o seu primeiro benfeitor.
Misericórdia, Senhor, que nos abandonaste! Nada nos ficou da tua lei, nem da tua imagem. Perdemos todos os sentimentos humanos, desde o patriotismo até à piedade, desde o respeito do próximo até ao de nós mesmos, desde a consciência até à vergonha. Todas as noções da ordem, da solidariedade, do cristianismo se apagaram. Labutamos na cratera de um inferno. Os depositários da autoridade empunharam o facho e a picareta. Aos seus repetidos golpes foram desmoronando todas as tradições, todos os prestígios, todas as inviolabilidades sociais, os verdadeiros esteios e contrafortes de todos os regímens que não confiam no papel das constituições. Entre as ruínas, sobre as quais o céu enoita, havia apenas um refúgio para os espíritos, um presídio da civilização, o derradeiro apelo do futuro. Era o respeito da mulher, a santidade do pai entre seus filhos, a veneração da família.
Acabou-se. Acabou-se ao contacto destes dias, infinitamente mais negros que o sítio e a ditadura. Na capital da República, tendo por moldura e relevo o mais estrondoso aparato administrativo, testemunhou a nação inteira a violação de todas as nossas casas, o suplício afrontoso de todas as nossas mulheres, de todas as nossas mães, de todas as nossas filhas. Certo que não há de sentir assim o presidente da República, chefe de família também, pai e esposo. Mas nós daqui asseguramos ao Sr. Campos Sales, asseguramos-lhe com a pena molhada em lágrimas, que todos os homens de bem, anteontem, se sentiram padecer com o Dr. Andrade Figueira, e viram, no seio de suas filhas, na cabeça de suas esposas, as pisaduras e os vergões dos ultrajes, das sevícias infames infligidas pelos serviçais do chefe de Polícia, do ministro da Justiça e do presidente da República àquelas duas mulheres heróicas, santificadas hoje com um altar em todas as casas brasileiras. A multidão desencadeada nos dias funestos de delírio popular ainda encontraria nesta terra um dique: a porta do asilo do cidadão e a honra dos nossos lares. O governo acaba de quebrá-lo.
E ainda falam em conspiração? Há necessidade, acaso, de conspirar contra isso? Essa gente está cega. Ela é que inaugurou a conspiração em todas as consciências. E dessa ninguém se livra. Não são os homens, os interesses, os partidos, que conspiram. São os corações que se conspiram. Quiseram fundar o terror: conquistaram o horror. Presentemente, onde houver, entre nós, um homem com a sua companheira, um pai no meio de seus filhos, estará pactuada a conspiração da prece com o céu. Vós não credes. Mas Deus há de ensinar-vos a cair de joelhos no seu dia.