Era de uma vez um rei que era muito jogador e tinha por costume jogar com o seu creado particular. Um dia em que já tinha perdido muito ao jogo, jogou a propria coroa e o creado ganhou-a. Vendo-se o creado de posse da coroa não cabia em si de contente, mas pouco tempo lhe durou o contentamento, pois quando elle menos o esperava, vieram duas pombas e roubaram-lhe a coroa, levando-a nos bicos.
Contou o creado isto ao rei e este disse-lhe: — «Se tu fores capaz de me restituires a coroa dar-te-hei a minha filha em casamento.»
Chamava-se a filha do rei Branca-flor e tanto ella como a rainha sua mãe eram feiticeiras. A mãe podia fazer quanto quizesse desde a madrugada até á meia noite e Branca-flor podia usar dos seus poderes de noite e de dia.
Quando Branca-flor soube da perda da coroa, transformou-se n’uma pomba e fugiu do palacio, com tenção de voltar só quando seu pae a tivesse de novo em seu poder.
Partiu o creado do rei em busca das pombinhas que tinham levado a coroa e como passasse muito tempo sem as encontrar foi ter ao reino da chuva para ver se ali lhe davam noticias d’ellas. Chegado lá, encontrou uma velhinha que lhe disse ser mãe da chuva, e como elle lhe dissesse o que pretendia, mandou-o entrar para casa e esperar que viesse a filha. Passados poucos momentos chegava ella e disse logo: — «Senhora mãe, aqui entrou gente pois cheira-me a sangue humano.» Respondeu-lhe a mãe: — «Não te enganas, minha filha; está aqui um creado do rei que deseja que lhe digas se viste duas pombinhas que levavam uma coroa real nos bicos.» Respondeu a chuva: — «Não as vi, mas talvez o meu compadre vento as visse, pois esse quasi sempre entra em toda a parte.»
Foi o creado ter ao reino dos ventos; esperou que o rei dos ventos entrasse em casa e logo sentiu o grande barulho que elle fazia. Da mesma forma que a chuva, assim elle respondeu, acrescentando mais: — «A mim tapam-me todos os buracos e janellas, por isso nada sei d’essas pombas, mas o sol com certeza ha de saber, pois as aves gostam todas muito do sol.»
Partiu o creado para o reino do sol e n’estas viagens iam-se passando annos, pois elle tinha de atravessar ares e nuvens para ver se encontrava o que desejava. Chegado ao reino do sol logo este lhe appareceu e lhe disse: — «As pombas que procuras estão no reino dos passaros; agora estão ellas fazendo os seus ninhos dentro da coroa que te roubaram; monta no meu cavallo e parte para lá; espera que as pombas saiam, tira a coroa e logo o rei dos passaros te offerecerá as suas azas para te conduzir ao palacio do rei teu amo.»
Montou o creado no cavallo do sol e tudo se passou como elle tinha dito. Chegado ao palacio do rei com a coroa, disse-lhe o rei: — «Não te posso já dar a minha filha, porque ella anda encantada n’uma pomba, mas se tu quizeres casar com ella has de primeiro fazer o que te vou ordenar. Vês aquelle campo que está em frente d’este palacio?» — «Vejo, real senhor.» — «Pois bem; ordeno-te que de hoje até amanhã o vás semear de trigo, e que o faças crescer, que o ceifes, lhe tires a farinha, cozas o pão e m’o apresentes aqui prompto.»
Foi-se o creado muito triste por lhe parecer impossivel fazer tantas cousas; eis que de repente lhe appareceu Branca-flor e lhe disse: — «Sei de tudo que meu pae te ordenou; não te dê cuidado que tudo se ha de arranjar.» De repente achou-se o campo semeado de trigo, d’ai a pouco tempo foi ceifado por Branca-flor e pelo creado; depois prepararam o trigo para ser moido, amassaram o pão e cozeram-no. Branca-flor ordenou ao creado que levasse os taboleiros de pão a seu pae e fosse sempre apregoando: — «Quem quer pão quente, quem quer pão quente!»
Maravilhou-se o rei quando viu tudo prompto e perguntou ao creado: — «Por aqui andou Branca-flor?» — «Nem eu vi Branca-flor, nem ella me viu a mim.» — «Pois bem; já que tivestes tanto poder, não te darei minha filha sem que tu me tragas para perto do meu palacio aquellas grandes pedreiras que se avistam acolá ao longe.»
Foi-se o creado muito triste e logo lhe appareceu Branca-flor e lhe disse: — «Nada te dê cuidado, mas que meu pae nunca saiba que sou eu que te valho.»
Pela manhã quando o rei acordou achou o palacio rodeado das pedreiras; então perguntou ao creado: — «Por aqui andou Branca-flor?» — «Nem eu vi Branca-flor, nem ella me viu a mim.» Disse-lhe então o rei: — «Ainda te não dou minha filha sem que primeiro tragas o mar para a frente do meu palacio.»
Appareceu Branca-flor ao creado e disse-lhe: — «Toma este vidro que contém sangue que eu agora mesmo tirei d’este braço; irás derramando gotas d’elle em volta do palacio e logo verás o mar rodeal-o; tem porém, muita cautela não deites nenhuma gota de sangue em ti, porque ser-te-ha isso muito perigoso.»
Andou o creado durante a noite deitando o sangue em volta do palacio e ao mesmo tempo via que o mar crescia, e quando ia a amanhecer, já o palacio formava uma ilha e Branca-flor mandava prender os navios ás janellas do palacio.
O creado quando andava deitando o sangue esqueceu-se da recommendação de Branca-flor e chegou o sangue a um dedo e logo este lhe caiu.
De madrugada, quando o rei acordou, viu feito tudo que tinha ordenado ao creado e então a rainha disse-lhe: — «Não é possivel que deixasse d’andar por aqui Branca-flor. Veiu o creado e respondeu: — «Nem eu vi Branca-flor, nem ella me viu a mim.»
Vendo o rei que nada já podia ordenar que não fosse feito, disse ao creado: — «Casarás com minha filha logo que ella volte a palacio.»
N’esse mesmo instante Branca-flor a voltar. Então o rei perguntou-lhe se era da vontade d’ella casar com o seu creado particular, e ella respondeu que sim. Casaram mesmo n’esse dia e Branca-flor perdeu o encanto, mas não o poder de feiticeira.
Quando os noivos foram á noite para se deitar, reparou Branca-flor que sobre o seu leito estava suspensa por um cabello uma espada desembainhada, então disse ella ao seu marido: — «Vês esta espada? — «Vejo.» — É a prova de que meu pai nos quer matar; é preciso fugir, mas não o podemos fazer antes da meia noite e nem depois, porque até á meia noite pode minha mãe usar do seu poder de feiticeira e saberia para onde iamos, e ao dar da meia noite, virá meu pai matar-nos. Não devemos, pois, ao dar meia noite ter já fugido, mas devemos partir então. Vae aparelhar os cavallos que andam tanto como o pensamento e ninguem nos poderá alcançar; se fossemos nos que andam tanto como o vento, era máo, porque não andam tanto como os outros.»
Enganou-se o creado e aparelhou os cavallos que andavam tanto como o vento e Branca-flor sem reparar n’isso, partiu mais elle á hora que estava destinada.
Quando o rei foi ao quarto d’elles para os matar, viu que tinha sido logrado e então a rainha disse-lhe: — «Antes da madrugada não partas, porque estou sem o meu poder; mas logo que amanheça, manda aparelhar os cavallos que andam como o pensamento e eu farei com que tu alcances os fugitivos.»
Partiu o rei de madrugada e logo avistou os noivos muito ao longe e Branca-Flor tambem avistou seu pae e então disse a seu marido: — «Meu pae segue-nos, já o avisto ao longe; mas não te dê cuidado; os cavallos se transformem em terra, os arreios n’uma horta, eu numa alface muito repolhuda e tu serás o hortelão; meu pae ha de perguntar-te: viram por aqui Branca-Flor? e tu responderás: se quer alface é a 20 reis cada uma.»
No mesmo instante tudo se transformou como Branca-Flor tinha ordenado. Chegou o rei e perguntou ao hortelão por Branca-Flor e elle deu a resposta que ella lhe tinha ensinado. Renovou o rei a pergunta e o hortelão dando sempre a mesma resposta.
Caminhou o rei para deante sempre em busca dos fugitivos e estes, quando viram que elle já ia longe, transformaram-se outra vez no que eram e partiram, sempre correndo. Quando iam já muito longe tornaram a avistar o rei e então disse Branca-Flor: — «Lá vejo outra vez o meu pae, mas não te dê cuidado isso; que os cavallos se transformem n’uma ermida; os arreios em altar, eu n’uma santa e tu serás o sachristão, que estarás á porta a tocar á missa.»
Logo tudo se transformou e o sacristão foi para a porta da ermida tocar á missa. Chegou o rei e perguntou: — «Viste por aqui Branca-Flor?» — «Se quer ouvir missa, estou a tocar a ella.» — «Não pergunto por missa, mas sim por Branca-Flor e por seu marido, que deviam ter passado por aqui a cavallo.» O sachristão respondia sempre o mesmo.
Entrou o rei na ermida; viu a santa e pareceu-lhe que ella se assemelhava a Branca-Flor, mas como nada mais soubesse partiu novamente em busca d’ella.
A ermida, o altar, a santa e o sachristão tornaram outra vez ao que eram e partiram correndo sempre com receio de serem encontrados. Mas o rei, que não descançava, avistou-os novamente e ella então disse ao marido: — «Que os cavallos se façam n’um mar, os arreios n’um barco, tu no barqueiro e eu serei uma tainha, que andarei saltando em volta do barco.»
Chegou o rei e perguntou ao barqueiro: — «Viste por aqui Branca-Flor? — «Se quer embarcar agora, é maré.» E a tainha sempre saltando, ora no bordo do barco, ora na agua.
Vendo o rei que nada tinha conseguido do que buscava, voltou para o palacio a contar tudo á rainha e esta disse-lhe: — «Olha, a horta que tu viste eram os cavallos e os arreios; o hortelão o teu genro e a alface Branca-Flor. A ermida, que viste, eram outra vez os cavallos, a santa Branca-Flor e o sachristão o marido d’ella. O barco, o barqueiro e a tainha eram tambem elles; mas eu vou já lá, pois agora estou com todos os meus poderes, que são maiores do que os da nossa filha e veremos como isto ha de ser.»
Foi a rainha á borda do mar e encontrou ainda tudo como o rei lhe tinha dito e então disse: — «Volte tudo ao que era e já que não posso mais sobre minha filha ordeno-lhe que se esqueça inteiramente de que é casada e que seu marido se esqueça tambem d’ella e que nunca mais se tornem a lembrar do que passaram.»
No mesmo instante tudo se cumpriu: esqueceram-se inteiramente um do outro. Branca-Flor voltou para a casa de seu pae e o marido foi correr terras. Passaram-se annos sem que se lembrassem mais um do outro e n’este tempo morreu a rainha e o rei, e Branca-Flor como se visse só resolveu casar-se. Estava já destinado o dia para a boda quando ao marido de Branca-Flor foram dizer o que estava succedendo e elle então começou a recordar-se do que tinha passado e resolveu partir para o palacio, onde Branca-Flor estava para casar.
No caminho encontrou um casal de pombas que lhe contaram mais por miudo tudo o que estava para succeder e se ofereceram para o auxiliar em tudo que elle precisasse.
Chegado que foi ao palacio de Branca-Flor, offereceu-se para creado e foi logo acceite, pois como a princeza estava para casar precisava de creados.
Estavam já todos á mesa, principes, princezas e mais pessoaes reaes que tinham sido convidados para assistir ao casamento e os noivos na cabeceira da mesa, ricamente vestidos e com muitas joias e brilhantes. O novo creado tinha preparado um grande bolo para a noiva e andava servindo á mesa; á sobremesa partiu-se o bolo e logo sairam de dentro um pombo e uma pomba que se foram banhar n’um vaso d’agua que estava no centro da mesa e depois de banhados collocaram-se ao lado de Branca-Flor e o pombo perguntou á pomba: — «Olha lá, não te lembras quando teu pae perdeu a coroa ao jogo e tu a ganhaste e depois vieram duas pombas e a roubaram? Respondeu a pomba: — «Não me lembra nada.» E assim o pombo foi recordando á pomba tudo quanto Branca-Flor tinha passado e mais o marido; e ao passo que a pomba dizia que se ia recordando, ia-se Branca-Flor recordando de tudo e no fim do jantar levantou-se da mesa e disse: — «Recordo-me de tudo e, se ainda vive meu marido que venha, pois só a elle quero.»
N’isto fugiram os pombos e o creado que andava a servir á mesa perguntou a Branca-Flor se o conhecia; ella então, dando-lhe um abraço, disse: — «Só tu serás meu esposo e a coroa de meu pae, que tambem já te pertenceu, será outra vez tua, pois tu serás o rei d’estes estados.»
Retirou-se o segundo noivo de Branca-Flor muito triste, mas louvando a resolução d’ella.
(Coimbra.)