Contos Populares Portuguezes/Mais vale quem Deus ajuda que quem muito madruga
Eram uma vez dois almocreves e iam a dizer um para o outro: — «Qual vale mais, quem Deus ajuda ou quem muito madruga?» Um dizia que era quem Deus ajudava, outro que era quem muito madrugava. Foram mais abaixo e encontraram o diabo a cavallo e perguntaram-lhe: — «Oh senhor! qual vale mais quem Deus ajuda ou quem cedo madruga?» O diabo respondeu: — «Quem cedo madruga.»
O almocreve que dizia que mais valia quem cedo madruga disse para o outro que lhe désse o burro com as fazendas que tinha apertado, mas este disse-lhe: — «Deixa-me ir mais abaixo.» Foram mais abaixo e encontraram um homem que lhe disse tambem que mais valia quem cedo madrugava; emfim ninguem lhe disse que mais vale quem Deus ajuda.
O almocreve tomou posso do que era do companheiro e este disse: — «Ai, senhor! Eu agora onde me heide ir recolher que estou aqui desamparado?» E n'isto foi para debaixo d'uns pinheiraes e disse: — «Agora amda não fico aqui; está acolá uma luzinha tão longe a reluzir; vou-me acolá ficar debaixo d'aquella casa.» Foi, mas o que encontrou foi uma mina; metteu-se n'ella e vieram depois os diabos para cima da cima e disseram uns para os outros: — «Está alli um poço novo e andam lá ha um ror de tempo para tirar a agua a fazer barulho com picão e se pegassem e déssem no fundo uma pancada muito pequena, a agua saia logo toda como uma levada; e o dono dá quatro cruzados em prata a quem lhe fizer sair a agua. — Ai, está a filha do rei tão mal; está um ror de medicos á roda d'ella e não a curam; se se pegasse n'uma bacia de leite e se voltasse a princeza de pernas para o ar com a bocca na bacia sahia logo a cobra que ella tem, que lhe faz mal.»
O almocreve, que estava a observar, foi de manhã ter com o dono do poço; desceu ao fundo; deu a pancada e logo saiu a agua. Recebeu os quatro cruzados e foi-se para a terra do rei. Chegou á porta do palacio e disse aos criados que queria fallar ao rei. — «Então você que quer?» — «Digam lá ao rei que eu venho cá dar saude á princeza.» — «Estão lá um ror de medicos e não lhe dão saude e só você é que lhe hade dar saude!…» Mas emfim resolveram-se a ir dizer ao rei que estava ali aquelle homem. O rei chamou-o e elle foi lá acima e começou a apalpar a princeza como medico e mandou vir uma bacia de leite, e mandou pôr a princeza de pernas para o ar com a bocca na bacia de leite, e saiu-lhe de dentro uma cobra e a princeza ficou boa.
O rei tinha promettido dar a princeza a quem a curasse; perguntou ao almocreve se queria casar com ella ou se queria metade do rendimento do rei e um cavallo para andar a cavallo; elle respondeu que queria dinheiro para ficar rico toda a sua vida. O rei assim o fez.
O almocreve depois encontrou o outro que lhe tinha ficado com o burro e elle disse-lhe: — «Ó homem, tu estás tão rico e eu estou tão pobre; tu de cada vez te augmentas mais.» — «Olha, faz como eu fiz; vae para aquelles pinheiraes; está lá uma mina; mette-te debaixo; hão de vir lá os diabos e escuta o que elles disserem.»
O homem assim fez. Os diabos vieram e disseram uns para os outros: — «Ai, que cheira aqui a folego vivo.» E n'isto vieram abaixo e bateram muita bordoada no almocreve que morreu.
Foz do Douro.