LII


S. JORGE


N'outros tempos havia um homem que era casado mas que não tinha filhos e isto lhe dava motivo de grande desgosto. Tinha elle por costume ir pescar para se distrahir de suas penas. Succedeu que um dia lhe viesse na rede só um peixe e quando lhe ia tocar disse-lhe o peixe: «Não me mates.» O bom homem tornou a deitar o peixe na agua, mas no dia seguinte succedeu-lhe o mesmo quando foi pescar. Passaram-se tres dias e ao fim d'elles tornou o mesmo peixe a apparecer na rede e então disse ao pescador: «Mata-me, e faz de mim seis postas; duas dal-as-has a tua mulher; duas á tua égua e as outra duas enterra-as atraz da porta do teu quintal.»

Fez o homem tudo quanto o peixe lhe disse e ao fim de nove mezes a mulher deu á luz dois meninos; passado tempo a égua teve dous formosos cavallos e atraz da porta do quintal nasceram duas lanças, que significavam que os dous meninos haviam de ser guerreiros.

Chegados que foram os meninos á edade em que haviam de servir o rei, chamou-os o pae e disse-lhes: «Ide, servir a patria e sede valentes guerreiros; aqui tendes dois bellos cavallos e duas lanças que nunca devem quebrar.»

Partiram os dois irmãos e o mais velho, que se chamava Jorge, disse ao mais novo: «É mister que nos separemos e ao fim de um anno havemos de reunirmo-nos para contar os nossos feitos. Aqui tens este ramo de manjericão; quado o vires murcho vae á minha procura, pois é porque eu corro perigo.» Separaram-se os dois irmãos; Jorge foi assentar praça e o outro foi correr terras.

Chegando á corte ouviu dizer que havia grande terror n'aquella terra por causa d'uma grande bicha de sete cabeças que vinha muitas vezes á cidade e já tinha matado muita gente e até se receava que ella fosse ao palacio do rei. Até aquelle dia não tinha apparecido ainda quem fosse tão destemido que se atrevesse a luctar com tal dragão; apesar do rei ter mandado annunciar que quem lhe apresentasse uma das cabeças da bicha casaria com a princeza sua filha. Jorge disse então que se Deus o ajudasse iria matar o dragão. Foi confiado na divina providencia esperar que a bicha saisse da mata onde habitava e depois de luctar com ella espetou-lhe a lança no pescoço e logo a bicha espirou á sua vista. Apregoou-se este feito na cidade e logo o rei ordenou que fosse Jorge á sua presença que o queria nomear general das armas e dar-lhe a sua filha em casamento.

No entanto andava o irmão de Jorge de terra em terra em busca de aventuras e um dia notou que o ramo de manjericão estava murcho e foi logo ter á terra onde estava Jorge, pois receava que elle corresse perigo. Chegado lá logo o encontrou e elle lhe contou tudo quanto tinha passado e como o rei o queria fazer general e dar-lhe a sua filha em casamento, e disse-lhe mais ainda: «Meu irmão, tu sabes perfeitamente que eu em virtude dos votos que fiz não posso casar-me; vae pois tu ter com o rei, apresenta-lhe esta cabeça que é uma das sete que tinha a bicha que eu matei e como tu és muito parecido commigo o rei julgará que sou eu e dar-te-ha a sua filha em casamento, e depois d'isto concluido dirás ao rei que me faça general, pois desejo ganhar fama pelas armas.» Tudo assim se fez e Jorge fez taes façanhas pela patria e foi sempre tão virtuoso que mereceu depois da sua morte ser canonisado.

(Coimbra.)