Uma vez um rei teve um filho e mandou vêr que sina o menino tinha trazido. A cigana leu a sorte e disse que o principe tinha trazido a sina de ser cornudo. O rei ficou muito desgostoso, e mandou fazer uma torre onde o menino foi encerrado, e alli foi creado, com ordem de nunca sahir d'alli, nem entrar lá mulher nenhuma. O principe cresceu, e, quando se poz moço feito, uma vez perguntou ao pai por que razão elle vivia alli preso. O rei lhe respondeu: «Por nada, meu filho.» Quando foi uma vez o principe pediu ao pai para ir ouvir missa. O rei respondeu: «Pois bem; tu irás commigo ouvir missa, mas ha de ser com a condição de nunca olhares para traz por causa de umas diabinhas.» O moço prometteu e foram. Na volta o rei lhe perguntou: «Então, meu filho, o que viste de mais bonito na missa?» — «Foi o altar, meu pai.» Passou-se.
Outra vez o principe pediu ao rei para ir ouvir missa. O rei consentiu; mas o moço não pôde se conter, e olhou para traz e ficou embebido todo o tempo, olhando para as diabinhas que eram as moças. Chegando em casa, o rei lhe perguntou: «Então, o que viste de mais bonito na missa ?» O moço respondeu: «Foram as diabinhas.» O rei ficou pensativo, e mandou preparar um navio para o filho ir viajar; mas com a condição de nunca saltar em terra senão n'um reino onde não houvesse noticias de seu reino nem de sua familia. O moço seguiu.
Chegando muito longe, n'um reino onde não havia mais noticias da terra d'elle, mandou dous criados á terra comprar mantimentos. Os dous criados partiram; mas quando lá chegaram, ficaram-se esbabacados, vendo um leilão em que se tinha de arrematar um papagaio muito fallador, e que privava os homens de serem cornudos. O lanço já estava muito alto, e nada de se entregar o papagaio.
O principe poz-se a esperar e nada dos criados voltarem. Mandou um outro atraz d'elles, que tambem lá se ficou. Mandou segundo, e nada! Afinal foi elle mesmo, e, conhecendo o motivo da demora, arrematou o papagaio e foi para bordo. Seguiu viagem. Depois foi ter a um reino onde se casou. Desde então o papagaio nunca mais fallou; mettia a cabeça debaixo de uma aza, e vivia alli triste na gaiola. O principe lhe queria muito bem. Uma vez teve de ir vencer umas guerras e recommendou muito á princeza o seu papagaio, e ao papagaio a sua mulher. Partiu.
A princeza tratava muito bem do papagaio e sempre elle triste. Ella nunca chegava á sacada; mas uma vez chegou por acaso e ia passando um moço que a viu e ficou logo muito apaixonado por ella, e voltou para casa muito triste. Uma velha, que costumava ir pedir esmola ao moço, o achando muito triste, lhe perguntou o que era. Elle respondeu que era por ter visto a mulher do principe, que o tinha deixado doente. A velha disse: «Oh! chente! meu netinho! tudo fôra isso!… Eu vou ter com ella e arranjo um modo d'ella lhe fallar.» Largou-se para palacio e foi convidar a princeza para ser madrinha de um baptisado. A moça se desculpou muito, dizendo que não podia ir, porque o principe não estava em casa. Mas a velha tanto importunou que a princeza prometteu: «Pois sim; vou ámanhã de tarde.»
Quando foi no dia seguinte pela tarde, a velha chegou; a princeza se apromptou, e já ia sahindo. Quando passou por baixo da gaiola do papagaio, elle tirou a cabeça de baixo da aza, deu uma gargalhada e disse: «Onde vai, princeza minha senhora, tão bandarranona? Princeza minha senhora, quer ouvir uma historia de seu papagaio?» — «Pois não, meu papagaio!» Então elle disse: «Oh! criadas, vão buscar a cadeira e os travesseiros para princeza, minha senhora, se assentar e se recostar para ouvir uma historia de seu papagaio.» A velha ficou fumando de raiva, e o papagaio começou:
«Uma vez havia um rei que tinha só uma filha, a quem deu ordem que, quando lhe fosse tomar a benção, fosse sempre muito bem prompta, e com as suas joias. Assim fazia a princeza: todas as manhãs, para tomar a benção ao rei, se preparava como si fosse a uma festa. O pai tinha-lhe dito que, no dia em que ella se apresentasse sem os seus adornos, a mandaria prender n'uma torre. Aconteceu, que um principe, que estava para casar lá no seu reino, andava viajando, e, passando pelo reino da princeza, a viu na sacada do palacio, e ficou muito apaixonado por ella.
O principe não achou nunca um meio de fallar com a princeza; mas sabendo do costume que ella tinha de se apresentar para comprimentar ao pai, virou-se n'um passaro, e n'um dia em que ella estava botando as suas joias, entrou pela janella e agarrou uma d'ellas pelo bico e fugiu. — A moça lhe disse: «Me dê a minha joia.» — «Só se casar commigo», respondeu o passaro, e voou. — No outro dia a mesma cousa; no outro o mesmo e assim todos os dias, até que só restava uma joia á princeza para tomar a benção ao pai. O passaro veio e arrancou tambem aquella. A moça seguiu atraz d'elle pedindo o adereço, e o passaro voando… e dizendo: «Só si casar commigo. A moça respondia sempre que não, até que entraram por uma igreja a dentro, isto já muito longe da casa de seu pai. Ahi ainda ella pediu a joia, e o passaro respondeu: «Só si casar commigo.» A princeza disse: «Só si aquelle Santo Christo abaixar o braço e nos casar elle mesmo.» Mal ella acabara de fallar, a imagem abria os olhos, e abençoava o casamento. Ahi o passaro se desencantou n'um bello principe. Seguiram d'alli todos dous. Adiante foram descançar em casa de uma velha, onde a moça pegou no somno. O principe entrou a maginar e a ficar triste, porque já tinha dado a sua palavra de casar com uma outra princeza de outro reino. Deu muito dinheiro á velha, dizendo que quando a moça acordasse, procurando por elle, ella não contasse para que banda elle tinha ido e largou-se n'uma carruagem. A moça, quando acordou e não achou o marido, ficou muito desgostosa e entrou a chorar. A velha alcoviteira a enganou por muito tempo, passeando com ella pelo jardim; mas não havia nada que a consolasse, até que a mesma velha se viu desesperada e lhe disse para que banda o principe tinha tomado. A moça poz-se como uma desesperada a caminhar atraz do marido. Adiante encontrou um carvoeiro muito porco e rasgado, trocou com elle a sua roupa e seguiu. Adiante mais encontrou o carro que ia com o principe, que parou e lhe perguntou: «Oh! meu carvoeiro, você passou em casa de uma velha?» — «Sim, senhor.» — «Viu lá uma moça?» — «Sim, senhor» — «O que fazia ella?» — «Chorava e se lastimava, dizendo: Oh principe ingrato, que te foste e me deixaste!…» O principe, que ouviu isto, ficou com muita pena, e botou o carvoeiro no carro. Todo o caminho foi-lhe perguntando a mesma cousa, e sempre o carvoeiro respondendo o mesmo. Assim foram andando até á terra do principe e sempre elle com o carvoeiro. Chegado o dia de seu novo casamento, sempre elle triste e perguntando a mesma cousa ao carvoeiro. Toda a familia ficou muito desgostosa d'aquillo, e a noiva com muito ciume; mas não tinham o que fazer, porque o principe disse que não podia viver sem o seu carvoeiro. Feito o casamento, quando foram se deitar, o principe, com grande espanto de todos, levou tambem para o quarto o seu carvoeiro. Deitou-se no meio, poz a noiva de um lado e o carvoeiro de outro, e entre ambos o seu alfange. Pegou no somno. O carvoeiro, que o viu dormindo, pegou no alfange e se matou; o principe, que o vê morto, diz: «Meu carvoeiro morto; eu tambem.» E se matou: A moça, que vê isto, diz: «Meu marido morto, eu tambem.» E se matou. No outro dia encontraram aquelle destroço, e foram fazer o enterro. Quando iam estando os corpos na sepultura, chegou um beija-flôr e escreveu nas testas dos tres: «Ninguem desfaça o que Deus fizer…» e deu vida ao principe e ao carvoeiro que se revelou como princeza e ficou vivendo com o seu marido.» O papagaio, quando acabou de contar esta historia, disse á princeza: «Agora princeza minha senhora, já é tarde, e deixe-se de baptisados de velha.» A alcoviteira ficou desesperada com o papagaio, e disse ás criadas que o botassem lá para o terreiro. Ellas o botaram, mas elle gritou tanto, até que o trouxeram de novo.
No outro dia veio a velha outra vez para levar a moça para o baptisado.
A princeza se preparou, e, quando ia sahindo, passou por baixo da gaiola do papagaio, que deu uma gargalhada: «Como vae princeza, minha senhora, tão bandarranona! Princeza, minha senhora, quer ouvir uma historia do seu papagaio?» — «Pois não, meu papagaio!» — «Oh, criadas, vão buscar a cadeira e a almofada para princeza minha senhora se sentar, se recostar para ouvir uma historia do seu papagaio.» Elle começou:
«Uma vez havia n'uma cidade dous ourives: o ourives do ouro e o ourives da prata. O ourives do ouro era casado e sua mulher muito bonita, nunca apparecia na janella. — Tendo elle de fazer uma viagem, apostou com o ourives da prata que elle não era capaz de vêr nunca a sua mulher, e se não fosse verdade perderia todo o seu ouro; e se o ourives da prata perdesse tinha de lhe dar toda a sua prata. Feita a aposta, o ourives do ouro seguiu para sua viagem.
Foram-se passando os dias e nunca o ourives da prata pôde vêr a mulher do companheiro. Estava vendo perder a aposta, quando, indo uma velha lhe pedir uma esmola, e o vendo triste lhe perguntou o que era, e lhe contou o caso. A velha lhe disse: «Oh! chente, meu netinho, não é nada; eu vou passar esta noite na casa d'ella, e tomo-lhe bem as feições, vejo-lhe bem até os signaes de seu corpo e lhe venho contar.» O ourives aceitou. Quando foi de noite a velha bateu na porta da mulher do ourives do ouro. Vieram-lhe abrir a porta, e ella disse que queria fallar a sua filhinha que ella tinha creado em seus braços. A moça ficou muito admirada d'aquillo, porque nem era d'aquella terra, mas sempre appareceu e a velha lhe disse: «Oh! minha netinha, depois que te peguei n'estes meus braços nunca mais te vi! Hoje soube que teu marido andava de viagem e vim passar a noite comtigo para te fazer companhia.» A moça, sem desconfiar nada, aceitou; a velha foi dormir no quarto d'ella. — Fingiu que estava dormindo, e, quando a moça tomou seu banho, botou-lhe os olhos em cima, mirando bem o seu corpo para lhe descobrir algum signal.
A moça tinha um segredo no corpo, que vinha a ser um fio de cabello bem preto, que, sahindo de um signalzinho na coxa, lhe rodeava toda ella e vinha morrer no mesmo signalzinho. No outro dia largou-se a velha, e contou tudo ao ourives da prata: « Olhe, é uma moça assim, assim… tem um signal em tal parte, assim, assim…».
Quando o ourives do ouro chegou, o da prata lhe contou como era a sua mulher e até lhe revelou o segredo do cabello da côxa; ganhou a aposta. Acabada, esta segunda historia, disse o papagaio; «Agora, princeza minha senhora, já é tarde, e deixemos de baptisados de velha.» A alcoviteira sahiu desesperada, desconjurando do papagaio, e mandou-o pôr no lugar mais porco do palacio. No dia seguinte a mesma impertinencia da velha, querendo levar a moça para baptisado. O papagaio, quando a princeza ia sahindo, tornou a dar uma gargalhada, e convidou a sua senhora para ouvir outra historia. A historia era:
«Uma vez havia um rei e uma rainha; estavam um dia n'uma janella do palacio e viram ao longe um bichinho. O rei disse que era um coelho, e a rainha que era uma lebre: e é, não é, pegaram uma aposta que quem ganhasse matava um ao outro. Mandaram depressa vêr por um criado que bicho era, e o criado voltou dizendo que era um coelho. O rei foi quem ganhou a aposta; mas teve pena de matar a rainha, e mandou fazer um caixão, botou-a dentro d'elle e mandou largar no mar.
A rainha, que estava gravida, deu á luz um menino, que por ter nascido no mar e se ter alimentado dos goivinhos das pedras, se chamou o principe Lodo. A rainha e o principesinho foram dar n'uma tarde, onde um pescador os encontrou e levou para sua casa. Por lá elles contavam a sua historia. O rei pensando que a rainha já tinha morrido, já se havia casado outra vez; mas ouvindo fallar d'aquelle principe, meio desconfiado mandou-o chamar para ouvil-o. O pescador deu duas folhinhas ao principe, e lhe disse: «Quando lá chegar conte a sua historia direitinha ao rei, e quando elle se fôr zangando diga: Esta historia era meu bisavô que contava a meu avô, meu avô a meu pai, meu pai a mim e eu agora a conto a Vossa Magestade; e cheire esta folhinha que você ficará bem velhinho, e, quando elle for melhorando, cheire esta que tornará a ficar mocinho.» O principe Lodo, chegando a palacio, o rei lhe pediu para contar a sua historia. O principe lhe contou e fez tudo o que o pescador lhe ensinou; cheirou a folha e ficou velhinho com a cabeça branca como uma pasta de algodão[1]
Acabada esta terceira historia, a velha foi-se embora porque já era tarde, e acabou-se a funcção do baptisado; porque o principe no dia seguinte voltou das guerras, que se tinham acabado. Ahi o papagaio, que era um anjo, voou para os céos.
- ↑ Não nos foi possivel conseguir o final d'este ultimo e bello conto do papagaio, que por vezes ouvimos integralmente em Sergipe narrado no seio de nossa familia. Pedimos desculpa por similhantes lacunas, primettendo um dia, talvez suppril-as.