Contos Populares do Brazil/Os tres coroados

II


Os tres coroados


(Sergipe)


Foi um dia, havia tres moças já orphãs de pai e mãi. Uma vez, ellas estavam todas tres na sacada de seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: «Se eu me casasse com aquelle rei, fazia-lhe uma camisa como elle nunca viu.» A do meio disse: «Se eu me casasse com elle, lhe fazia uma ceroula como elle nunca teve.» A caçula disse: «E eu, se me casasse com elle, paria tres coroados.»

O rei ouviu perfeitamente a conversa, e, quando foi no dia seguinte, foi ter a casa das moças e lhes disse: «Appareça a moça que disse que, se se casasse commigo, paria tres coroados.» A moça appareceu, e o rei levou-a, e casou-se com ella. As irmãs ficaram com muita inveja e fingiram não tel-a. Quando a moça appareceu gravida, as irmãs metteram-se dentro do palacio, com apparencias de ajudal-a em seus trabalhos. Aproximando-se o tempo de dar a rainha á luz, as suas irmãs se offereceram para servil-a e dispensar a parteira. Chegado o dia, ellas muniram-se de um sapo, uma cobra e um gato. Quando nasceram os tres coroados, ellas os esconderam dentro de uma boceta; e mandaram largar no mar. Apresentaram, então, ao rei, os tres bichos, dizendo: «Ahi estão os coroados, que aquella impostora pariu.» O rei ficou muito desgostoso e mandou enterrar a mulher até aos peitos, perto da escada do palacio, dando ordem a quem por alli passasse para cuspir-lhe no rosto. Assim se fez. Mas um velho pescador encontrou no mar a boceta, apanhou-a, e abriu e encontrou os tres meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou muito alegre, e levou-os para casa para crear. A velha, sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças. Quando estas cresceram a ponto de poderem ir para a escóla, foram e passavam sempre pelo palacio do rei. As cunhadas d'elle viram, por vezes, passar os meninos e os conheceram.

Um dia os chamaram, e se puzeram com muitos agrados com elles, e lhes deram de presente tres fructas envenenadas, a cada um a sua.

Os meninos comeram as fructas, e viraram todos tres em pedra. Os velhos ficaram muito afflictos com aquillo, e toda a cidade fallou no caso.

Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido: «Não tem nada; eu vou a casa do Sol buscar um remedio para as tres pedras virarem outra vez em gente.» Partiu montada a cavallo.

Depois de andar muito tempo, encontrou um rio muito grande e bonito. O rio lhe disse: «Ó minha avó, aonde vae?» A velha respondeu: «Vou a casa do Sol para elle me ensinar que remedio se deve dar a quem virou para pedra para tornar a virar para gente.» O rio lhe disse: «Pois então pergunte tambem a elle a razão porque, sendo eu um rio tão bonito, grande e fundo, nunca criei peixe.» A velha seguiu. Adiante encontrou um pé de fructa muito copado e bonito; mas sem uma só fructa. Ao avistar a velha, a arvore disse: «Onde vae, minha velhinha?» — «Vou a casa do Sol buscar uma mésinha para gente que virou pedra.» — « Pois pergunte a elle a razão porque, sendo eu tão grande, tão verde e tão copada, nunca dei um só fructo…» A caminheira seguiu. Depois de andar muito, passou pela casa de tres moças, todas tres solteiras e já passando da edade de casar. As moças lhe disseram: «Onde vae, minha avó?» A velha contou onde ia. Ellas lhe pediram para indagar do Sol o motivo porque, sendo ellas tão formosas, ainda se não tinham casado. A velha partiu e continuou a caminhar. Ainda depois de muito tempo é que chegou a casa da mãi do Sol. A dona da casa recebeu-a muito bem; ouviu toda a sua historia e encommendas que levava, e escondeu-a em razão de seu filho não querer extranhos em sua casa, e quando vinha era muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou vinha desesperado e estragando tudo o que achava:

«Fum… aqui me fede a sangue real!… aqui me fede a sangue real!…» — «Não é nada não, meu filho, é uma gallinha que eu matei para nós jantar.»

Assim a mãi do Sol o foi enganando, até que elle se aquietou e foi jantar. Na mesa da janta sua mãi lhe perguntou: «Meu filho, um rio muito fundo e largo porque é que não dá peixe?» — «É porque nunca matou gente.» Passou-se um pouco de tempo e a velha fez outra pergunta: «E uma arvore muito verde e copada, porque é que não dá fructa?» — «Porque tem dinheiro enterrado em baixo.» Pouco tempo depois outra pergunta: «E umas moças bonitas e ricas porque não casam?» — «Porque costumam mijar para o lado em que eu nasço.» Deixou passar mais um tempinho e perguntou: «E qual será o remedio para gente que tiver virado pedra ?» Ahi o Sol enfadou-se e disse: «O que querem dizer hoje estas perguntas?» A mãi respondeu: «Não é nada, meu filho; eu é que ás vezes, porque vivo aqui sósinha, me ponho a imaginar estas tolices.» O Sol foi e respondeu: «O remedio é tirar da minha bocca, quando eu estiver comendo, um bocado e botar em cima da pedra.» A velha, d'ahi a pouco, fingiu um espanto, levou a mão á bocca do Sol e tirou o bocado, dizendo: «Olha, meu filho, um cisquinho na comida!» E guardou o bocado. D'ahi a pedaço a mesma cousa: «Olha um cabello, meu filho!» E escondeu mais um bocado. N'uma terceira vez, ella fez o mesmo e o Sol se levantou aborrecido, fallando: «Ora, minha mãi, seu de comer hoje está muito porco; não quero mais.» Deitou-se, e no dia seguinte foi-se embora para o mundo. Sua mãi foi á velhinha, que estava escondida, e lhe contou tudo, dando os tres bocados. A velha pôz-se a caminho para traz. Passando por casa das moças, ahi dormiu, sem querer dizer a razão porque ellas não casavam. No dia seguinte, bem cedo, ella levantou-se e as moças tambem. Ellas correram logo para o logar onde costumavam ourinar voltadas para o nascer do sol. A velha as reprehendeu, dizendo: «É esta a razão de vocês não casarem; percam este costume de ourinar para a banda d'onde o sol nasce.» As moças assim fizeram e logo acharam casamento. A andadeira tomou o seu caminho e foi-se embora a toda a pressa. Chegando na fructeira, pôz-se debaixo d'ella a cavar sem dizer nada; quando puxou um grande caixão, então disse porque a fructeira não dava fructas. O pé da arvore começou logo a carregar que parecia praga. A velha seguiu. Ao chegar ao rio, elle lhe indagou do seu recado: «Logo lhe digo;» e a velha foi passando depressa. Quando se viu bem longe, gritou: «É porque nunca matou gente.» O rio botou logo uma enchente tão grande, que por um triz não matou a velha. A final foi ella ter em casa. Sem mais demora applicou os tres bocados em cima das tres pedras, e os meninos se desencantaram. A noticia d'estas cousas chegou aos ouvidos do rei. Elle mandou um dia convidar o velho com os tres meninos para jantarem em palacio. O velho não quiz ir, nem mandar os meninos; o rei o intimidou até que foram os meninos. Mas a velha ensinou aos meninos: «Quando vocês lá chegarem, meus filhinhos, que passarem pela escada, se ponham de joelhos e tomem a benção áquella pobre mulher que lá está enterrada, parecendo um cadaver, porque é a mãi de vocês. Na janta não queiram ir para a mesa sem que o rei mande desenterral-a, e botar tambem na mesa. Quando elle der a cada um o seu prato não comam e dêem todos tres a ella, que os ha de devorar n'um instante, pois está morta de fome. Ahi as duas moças que lá tem, que são tias de vocês, hão dizer: «Que barriga de monstro que cabe tres pratos de uma vez!» A isto vocês respondam, tirando os bonés e dizendo: «Não é de admirar que caiba tres pratos de comida, quando tres coroados!» e mostrem ao rei as cabeças. Assim foi: os meninos executaram fielmente as recommendações da velha. (Todas as cousas se repetiram pela fórma indicada pela velha adivinha com grande surpreza para o rei e desapontamento para as duas infames malfeitoras). Tudo acabado, o rei, que ficou vivendo com sua mulher, que voltou à sua antiga belleza, e os seus filhinhos em palacio, perguntou-lhes o que queriam que elle fizesse às duas damnadas. Os meninos responderam que «elle mandasse buscar quatro burros bravos e as amarasse nos rabos.» Assim fizeram, e ellas morreram lascadas ao meio.